quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Carlos Carvalho Cavalheiro (Conto: O Violinista da Beira da Estrada)

Já faz cinco anos, mas ainda me lembro perfeitamente do caso do violinista da beira da estrada e que eu vou lhes narrar agora.

Eu estava numa feira de muares em Sorocaba, a primeira compra já havia sido feita há alguns minutos, os compradores desse gado se preparavam para partir. Mais ou menos uma hora depois partiam pelas ruas de Sorocaba e rumavam a caminho da ponte para São Paulo, seguidos dos gritos: “Rompeu a feira! Rompeu a feira!”. Mas não tinha essa compra se realizado em pouco tempo. Demorou e muito! Dia após dia, comprador e vendedor tentando fechar negócio.

E o comércio de animais continuou. O frio do inverno era compensado pelos divertimentos da feira, os jogos de cartas, os violeiros, as peças teatrais...

O que me deixava irritado era um violinista que pedia esmola, sentado no degrau de escada da porta do bar. Ele me dizia exatamente assim:

- Toco uma música que aos seus ouvidos vai agradar, sua viagem tornar-se-á mais agradável lembrando-se dessa melodia que por alguns cobres vou executar...

- Sinto muito, mas não tenho trocados.- respondi.

- Sou cego e outro modo de ganhar a vida não tenho!

- Já disse que não tenho trocados! – irritei-me.

- Por favor, senhor...

- Vosmecê é surdo?!

- Não, eu sou cego e...

Não o deixei terminar, dei um pontapé no seu violino, cuspi em seu rosto e ameacei-o de morte se não sumisse da minha frente.

Com o semblante triste e magoado ele apenas respondeu:

- O senhor quebrou o violino do meu pai. Deus ajude para que a assombração dele não o acompanhe em qualquer viagem solitária que vosmecê faça durante toda a sua vida! Deus o ajude.

Não dei importância para aquela praga que me rogava o pobre e cego homem. Ah, se eu soubesse...

Um mês depois parti. Solitário, como em todas as minhas viagens. Solitário não. Com a companhia de Deus e do meu cavalo malhado, bom de trote e forte como duas mulas.

A estrada por onde eu ia era pequena e poeirenta, cheia de curvas e com uma vegetação verdíssima em seu entorno. Acendi um cigarro de palha e fiquei pensando nas alegrias que tive na feira e planejando uma nova viagem para o próximo ano.

Ia chegando perto de uma curva quando o meu cavalo estacou sem que eu soubesse porque. Talvez tivesse se assustado com alguma cobra ou qualquer outro bicho matreiro. Passei a mão pelo seu pescoço, encorajando-o a continuar, ao mesmo tempo em que segurava a minha garrucha. Quem sabe o que tem atrás de uma curva de estrada? Podiam ser ladrões que procuravam viajantes desprevenidos.

A cada trote do meu cavalo, um arrepio surgia em minha pele. Meu coração começou a bater descompassadamente. “Meu Deus, que sorte me aguardava atrás daquela curva?”- pensei. De repente, surgiu uma ventarola e formou um redemoinho num capão de mato próximo.

Senti um frio que até hoje eu não sei se foi pela ventania ou se por medo.

A curva cada vez mais perto. Quando faltavam uns trinta metros para alcançá-la, adivinha o que eu fiz? Não, eu não fugi. Eu fui em frente, respirei fundo, armei a garrucha e disse para mim mesmo: “Tenha o que tiver naquela curva eu não vou me acovardar! Afinal de contas eu sou um homem e tou armado”.

Comecei a ouvir uma melodia que não modificou em nada a minha decisão. Segui em frente. Talvez essa melodia nem existisse, fosse fruto da minha imaginação, ou, se existisse, eu iria descobrir de onde provinha.

Medo?... eu não tenho medo de nada. Uma simples curva não pode intimidar um homem assim, só porque intimidou o seu cavalo!

A melodia cada vez mais nítida. Não era minha imaginação. Havia algo atrás daquela curva e eu iria, ou melhor, eu teria que descobrir o que era.

Finalmente a curva chegou e com ela a resposta para a minha pergunta. Era um violinista. Um velho e maltrapilho violinista. Acenei-lhe, dizendo:

- Que Nosso Senhor Jesus Cristo ilumine seus caminhos!

Não obtive resposta. O violinista parecia indiferente a tudo, como se não pertencesse a este mundo. Passei por ele. Não sei porque, mas não resisti à tentação de dar uma olhada com o canto dos olhos para trás. Inacreditavelmente o violinista sumira. Voltei o meu pescoço para olhar melhor. Ele realmente sumira. Procurei-o, voltei à curva e nada. Lembrei-me da praga do violinista cego da feira de muares de Sorocaba.

Coloquei a mão no saquinho de couro em que eu guardava as minhas moedas. Tinha ainda alguns cobres. Segurei firme a rédea do cavalo e num trote rápido voltei para Sorocaba. Encontrei o cego no mesmo degrau de escada do bar. Sem dizer nada, joguei-lhe o saco com as moedas. Era o suficiente para ele comprar outro violino e ainda sobrava algum para esmola. Ele em resposta deu-me um sorriso, como se dissesse: “Encontrou o meu pai?”.

Parti com a consciência limpa. Fui pela mesma estrada e o medo perdi ao chegar próximo àquela curva. Encontrei novamente, para o meu espanto, o mesmo violinista que havia sumido naquela beira de estrada. Passei por ele sem nada dizer. Quando estava de costas para ele, a música parou e uma voz disse:

- Que Nosso Senhor ilumine também os seus caminhos.

Não tive coragem de olhar para ver se ele ainda estava lá. Fui embora e no caminho, depois de muito pensar, resolvi fazer uma promessa: “Nem que for para salvar a minha vida, para Sorocaba eu não volto nunca mais”. E até hoje eu não voltei.

Fonte:
http://eptv.globo.com/caipira/int_causos.asp?id=1285

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