sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Celso "Marvadão" Ribeiro (Conto: O Sapo e o Escorpião)

(Reconto a história ao estilo de Millôr Fernandes, segundo a ótica do sapo).

E aí, desesperado no meio da tempestade e da inundação, o escorpião pediu socorro ao sapo:

_ Ó amigão anfíbio, sapo-rei da natureza, me acuda, me leve para o outro lado do rio.

O sapo olhou meio desconfiado, mas não iria deixar o pobre vivente morrer ali daquele jeito:

_ Tudo bem, vamos lá, suba aí na minha garupa e se agarre bem.

E lá foram ambos na travessia daquele quase dilúvio ( ou seria Delúbio?). O escorpião não se cansava de elogiar o benfeitor:

_ Sabe, observando bem, até que esse rajado lhe cai muito bem.

_ Croac, deixa disso, escorpião.

_ É verdade. E essa boca, então, combina perfeitamente com o formato do corpo...

_ Agradecido, croac, agradecido, mas preste atenção na correnteza, não vá se soltar.

_ Mais do que isso, amigo do peito e das costas. Nunca tinha observado direito, mas até a sua voz é maviosa e musical.

_ Jura? Depois da minha sapa, você é o primeiro que me diz isso.

_ Tá vendo? Falta aos demais espírito crítico, senso estético e bom gosto.

_ Puxa, mas que surpresa mais agradável. Você é mesmo gente fina. Eu sempre tive uma impressão não muito favorável sobre os escorpiões, a fama não é boa.

_ Que bobagem, é tudo lenda, fofoca.

_ Ó dileto aracnídeo, nada como uma situação crítica como essa para a gente descobrir as virtudes dos seres vivos, quem é mesmo de confiança.

_ Verdade verdadeira, meu bom-samaritano, minha versão caridosa da barca de Caronte. Você até parece o São Cristóvão, ajudando o semelhante a atravessar a correnteza.

O sapo ficou ainda mais inflado de orgulho. Emocionado, confidenciou:

_ Olha, escorpião, você, bacana assim, se for passear na praia, vão pensar que se trata de um siri ou caranguejo com um toque diferente. Nem perceberão o seu ferrão que, aliás, diga-se de passagem, é muito estiloso.

_ Obrigado, ó, batráquio anuro, quanta gentileza de sua parte. Eternamente grato por ter me salvado.

Já chegando a outra margem, o sapo teve uma súbita curiosidade:

_ Me diga aí, escorpião, posso saber qual é o seu signo?

Antes mesmo de responder e de apear do salvador, o escorpião finca o seu ferrão nas costas do sapo, que tomba e olha desesperado para ele:

_ Seu maldito, serpente do mal, tomara que caia numa CPI... Eu salvo a tua vida, te trato como um ser respeitável, e você me envenena, me mata...

E o escorpião, sem qualquer complexo de culpa:

_ Me desculpe, querido sapo, eu sei de tudo isso, mas não posso fazer nada. Essa é a minha natureza.

Já agonizante, o sapo ainda pediu para que o escorpião se aproximasse porque queria fazer um último pedido. O escorpião inocentemente chegou perto e recebeu um jato de mijo nos olhos, ficando cego na hora.

O sapo então sorriu e morreu.

(Moral. Fazer o bem sem olhar a quem é algo divino. Mas uma vingancinha na hora certa também traz felicidade).
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