A infância é um tema antigo, existe desde a literatura grega, com uma ressalva, porém: até antes do século XIX, de modo geral, os narradores apressavam o passo nos relatos infantis da vida das personagens. Que autores fizeram obras em que a criança se situa no centro dos acontecimentos, e em que a descoberta do mundo aparece como a grande aventura a ser narrada?
Charles Dickens, que ajudou a firmar o tema da infância como um forte componente dos relatos romanescos no século XIX, é um deles. Em Grandes esperanças (1861), expõe, através de Pip, a fértil imaginação da mente infantil, ao mesmo tempo que revela o dilema da criança diante da linguagem cifrada do mundo adulto.
A “infância dolorosa” tornou-se de fato um mito literário por esse tempo. Há ainda romances autobiográficos que reprisam a questão, como o de Jules Renard, Foguinho (1894), que mostra o protagonista como bode expiatório da mãe, que o submete a duras provas de aprendizagem da solidão e do medo. O imaginário sobre a infância também é alimentado pela figuração de crianças em grupo, como em Os meninos da rua Paulo (1907), novela, de inspiração autobiográfica, do húngaro Ferenc Molnár, na qual é relatada a briga de dois grupos por um troféu muito particular: um terreno baldio, em uma ainda acanhada Budapeste. Entendido como um espaço de liberdade, o lugar simboliza a ânsia de evasão própria da criança, e, assim, o livro tornou-se um clássico para inúmeras gerações – um modelo de memória de travessuras.
Em uma seleção de textos sobre a infância, nem por artes de abracadabra poderia faltar Reinações de Narizinho (1931) que, além de Lúcia e Pedrinho, conta com a disposição da sapeca Emília, para virar o mundo pelo avesso, à semelhança do que preconiza o espírito curioso da criança. Súmula do trabalho de Monteiro Lobato, no intento de reinventar a criança brasileira, dotando-a de um acervo de títulos literários capaz de tomá-la como parâmetro de si mesma e não apenas como projeto de um futuro adulto.
Há também registros alegóricos como O pequeno príncipe (1943), de Antoine de Saint-Exupéry. Um dos maiores méritos do frágil principezinho, famoso personagem da literatura de todos os tempos, até mesmo pelas célebres ilustrações do livro, é atenuar a imagem da criança como eterno aprendiz, mostrando-a, isso sim, como alguém dotado de uma sabedoria particular, cuja complexidade nem sempre é atingida pelos adultos.
Uma outra forma de apresentação da temática tem sido o texto de memórias, tal como em Infância (1945), de Graciliano Ramos. No livro, o escritor recorda, sem saudades, mas de modo comovido, o áspero cotidiano das crianças em um Brasil arcaico, movido a gritos e açoites – rudezas que denotam o desconhecimento da criança como indivíduo, salvo algumas raras brechas de ternura. Ainda no terreno das memórias, é importante a referência às de José Lins do Rego, Meus verdes anos (1953), que expõem a forte ambigüidade da narração na aparente sugestão idílica do título. No prefácio, Zé Lins, reportando-se às borboletas azuis de “Meus oito anos”, espécie de hino da infância à brasileira, conclui: “Em meu caso as borboletas estiveram misturadas a tormentos de saúde, a ausência de mãe, a destemperos de sexo”. Em 2003, Manoel de Barros publica suas Memórias inventadas: a infância, em que faz um inventário dos seres de seu tempo de menino. Desperta a atenção para o valor de relicário que empresta às coisas tidas como sem valor (rãs, lagartixas, lesmas, latas e pedrinhas).
Engana-se, porém, quem pensar que só de literatura vive a infância. Entendida como uma construção social, vem ela suscitando o interesse das ciências humanas no século XX. Philippe Ariès, ao escrever sua História social da criança e da família, colocou uma questão de base: desde quando a criança deixou de meramente espelhar o comportamento adulto?
História das crianças no Brasil é outra leitura imprescindível. Organizado pela historiadora Mary Del Priore, o livro transporta o leitor ao século XVI, quando flagra os “miúdos” chegando à Terra Brasilis provenientes de além-mar. Trata de práticas do cotidiano dos pequenos na Colônia, Império e República, até chegar às experiências bem recentes em que o trabalho nos canaviais é transferido a seus frágeis ombros.
Os dez livros
•Grandes esperanças, de Charles Dickens, Itatiaia
•Foguinho, de Jules Renard, Loyola
•Os meninos da rua Paulo, de Ferenc Molnár, Cosac Naify
•Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, várias editoras
•O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, Agir
•Infância, de Graciliano Ramos, várias editoras
•Meus verdes anos, de José Lins do Rego, José Olympio
•Memórias inventadas: a infância, de Manoel de Barros, Planeta
•História social da criança e da família, de Philippe Ariès, LTC
•História das crianças no Brasil, org. de Mary Del Priore, Contexto
Fonte:
Revista Entrelivros. edição 30 - Outubro 2007. Duetto Editorial..
http://www2.uol.com.br/entrelivros/
Imagem: Cartaz de Os meninos da rua Paulo, baseado em livro de Molnár, com direção de Zóltan Fábri, 1969
Charles Dickens, que ajudou a firmar o tema da infância como um forte componente dos relatos romanescos no século XIX, é um deles. Em Grandes esperanças (1861), expõe, através de Pip, a fértil imaginação da mente infantil, ao mesmo tempo que revela o dilema da criança diante da linguagem cifrada do mundo adulto.
A “infância dolorosa” tornou-se de fato um mito literário por esse tempo. Há ainda romances autobiográficos que reprisam a questão, como o de Jules Renard, Foguinho (1894), que mostra o protagonista como bode expiatório da mãe, que o submete a duras provas de aprendizagem da solidão e do medo. O imaginário sobre a infância também é alimentado pela figuração de crianças em grupo, como em Os meninos da rua Paulo (1907), novela, de inspiração autobiográfica, do húngaro Ferenc Molnár, na qual é relatada a briga de dois grupos por um troféu muito particular: um terreno baldio, em uma ainda acanhada Budapeste. Entendido como um espaço de liberdade, o lugar simboliza a ânsia de evasão própria da criança, e, assim, o livro tornou-se um clássico para inúmeras gerações – um modelo de memória de travessuras.
Em uma seleção de textos sobre a infância, nem por artes de abracadabra poderia faltar Reinações de Narizinho (1931) que, além de Lúcia e Pedrinho, conta com a disposição da sapeca Emília, para virar o mundo pelo avesso, à semelhança do que preconiza o espírito curioso da criança. Súmula do trabalho de Monteiro Lobato, no intento de reinventar a criança brasileira, dotando-a de um acervo de títulos literários capaz de tomá-la como parâmetro de si mesma e não apenas como projeto de um futuro adulto.
Há também registros alegóricos como O pequeno príncipe (1943), de Antoine de Saint-Exupéry. Um dos maiores méritos do frágil principezinho, famoso personagem da literatura de todos os tempos, até mesmo pelas célebres ilustrações do livro, é atenuar a imagem da criança como eterno aprendiz, mostrando-a, isso sim, como alguém dotado de uma sabedoria particular, cuja complexidade nem sempre é atingida pelos adultos.
Uma outra forma de apresentação da temática tem sido o texto de memórias, tal como em Infância (1945), de Graciliano Ramos. No livro, o escritor recorda, sem saudades, mas de modo comovido, o áspero cotidiano das crianças em um Brasil arcaico, movido a gritos e açoites – rudezas que denotam o desconhecimento da criança como indivíduo, salvo algumas raras brechas de ternura. Ainda no terreno das memórias, é importante a referência às de José Lins do Rego, Meus verdes anos (1953), que expõem a forte ambigüidade da narração na aparente sugestão idílica do título. No prefácio, Zé Lins, reportando-se às borboletas azuis de “Meus oito anos”, espécie de hino da infância à brasileira, conclui: “Em meu caso as borboletas estiveram misturadas a tormentos de saúde, a ausência de mãe, a destemperos de sexo”. Em 2003, Manoel de Barros publica suas Memórias inventadas: a infância, em que faz um inventário dos seres de seu tempo de menino. Desperta a atenção para o valor de relicário que empresta às coisas tidas como sem valor (rãs, lagartixas, lesmas, latas e pedrinhas).
Engana-se, porém, quem pensar que só de literatura vive a infância. Entendida como uma construção social, vem ela suscitando o interesse das ciências humanas no século XX. Philippe Ariès, ao escrever sua História social da criança e da família, colocou uma questão de base: desde quando a criança deixou de meramente espelhar o comportamento adulto?
História das crianças no Brasil é outra leitura imprescindível. Organizado pela historiadora Mary Del Priore, o livro transporta o leitor ao século XVI, quando flagra os “miúdos” chegando à Terra Brasilis provenientes de além-mar. Trata de práticas do cotidiano dos pequenos na Colônia, Império e República, até chegar às experiências bem recentes em que o trabalho nos canaviais é transferido a seus frágeis ombros.
Os dez livros
•Grandes esperanças, de Charles Dickens, Itatiaia
•Foguinho, de Jules Renard, Loyola
•Os meninos da rua Paulo, de Ferenc Molnár, Cosac Naify
•Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato, várias editoras
•O pequeno príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, Agir
•Infância, de Graciliano Ramos, várias editoras
•Meus verdes anos, de José Lins do Rego, José Olympio
•Memórias inventadas: a infância, de Manoel de Barros, Planeta
•História social da criança e da família, de Philippe Ariès, LTC
•História das crianças no Brasil, org. de Mary Del Priore, Contexto
Fonte:
Revista Entrelivros. edição 30 - Outubro 2007. Duetto Editorial..
http://www2.uol.com.br/entrelivros/
Imagem: Cartaz de Os meninos da rua Paulo, baseado em livro de Molnár, com direção de Zóltan Fábri, 1969
Nenhum comentário:
Postar um comentário