terça-feira, 16 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) XXIII – As Impressões de Tia Nastácia


Os meninos tinham tanta coisa a contar, que depois de tomado o café ainda ficaram na mesa até tarde.

— Que beleza, vovó! — dizia Narizinho. — Se a senhora pudesse imaginar o que é a Via-láctea, vendia este sítio e mudava-se para lá. Uma verdadeira horta cósmica de estrelas e cometas novinhos, calcule! E, por falar nisso, onde estão as estrelinhas que você trouxe, Emília?

— Aqui! — respondeu a boneca tirando do bolso do avental um punhado de astros do tamanho de grãos de ervilha, que espalhou sobre a mesa.

Que assombro! Aquelas ovas de estrelas brilhavam mais que diamantes — brilhavam tanto que Dona Benta teve de tapar os olhos com as mãos.

— E que vai fazer com elas, Emília? — perguntou Pedrinho. — Quer trocar três por um cometa? — e com grande espanto da vovó também tirou do bolso mais estrelas — estrelas não: cometas! Como estivessem com as caudinhas enroladas sobre os núcleos, à primeira vista pareciam estrelas.

— Estrelas! Cometas!... Mas isto é demais, meus filhos! Nunca imaginei uma coisa semelhante. E ainda há o anjinho. Onde anda ele?

Todos saíram correndo em procura do anjinho, que havia fugido dali e estava na cozinha conversando com Tia Nastácia e provando um bolinho de frigideira. A negra, plantada diante dele, babava-se de gosto.

— Este mundo está perdido! — dizia ela. — Quando eu havia de pensar que até os santos e os anjos haviam de comer os meus bolos fritos? Credo...

Nisto a voz de Dona Benta soou lá na sala, chamando-a.

— Já vou, sinhá! — respondeu a preta, e depois de lavar as mãos na bica foi ver o que a patroa desejava.

— Escute, Nastácia — disse Dona Benta. — Você ainda não me contou as suas impressões. Estou curiosa de saber como se arranjou lá por cima.

A boa negra botou as mãos como quem reza e revirou os olhos para o céu.

— Nem queira saber, sinhá! Credo! De manhãzinha, naquele dia, os meninos me empulharam — me deram para cheirar o tal pó mágico dizendo que era rapé. Eu, muito boba, cheirei, e no mesmo instante perdi os sentidos — e quando abri os olhos estava num lugar esquisito, que a votação disse que era a Lua.

— Parece incrível! — exclamou Dona Benta. — Não foi à toa que os astrônomos não acreditaram em coisa nenhuma e lá se foram danados com a Emília. Mas continue. E depois?

— Depois? Ah, nem queira saber, sinhá!... Depois apareceu aquele estupor do dragão que São Jorge vive matando com a lança lá na Lua — um bicho horrendo, sinhá, que a Emília diz que é mestiço de lagarto com flecha de índio.

— Por quê?

— Porque tem a língua e o rabo em ponta de flecha. Mas o tal bicho, que era verde, adiantou-se para o burro, lambendo os beiços, imagine! E então Emília, que é uma danada, avançou sem medo e esfregou o tal pó mágico no nariz do burro. E o coitado, vupt!... — se sumiu da Lua, ventando. Narizinho disse que ele tinha caído no “ete...”.

— É espantoso o que você me conta, Nastácia, e difícil de acreditar. Pobres dos astrônomos! Como poderiam engolir tudo isto? E depois?

— Depois, quer saber quem apareceu? Apareceu São Jorge em pessoa, sinhá, vivinho, com uma espécie de pratão de ferro — prato-travessa — no braço...

— Devia ser o escudo, Nastácia.

— ...e um pau comprido de ponta pontuda na mão...

— Devia ser a lança, Nastácia.

— ...e os meninos, sem medo nenhum, garraram a falar com ele como se falassem com Tio Barnabé lá na casinha da ponte. E o santo respondia com a maior delicadeza. Foi uma conversa que não tinha fim. Depois São Jorge me chamou e perguntou se eu queria ficar cozinhando para ele. Eu me atrapalhei toda na resposta; e então Narizinho respondeu e disse que eu ficava só por uns dias — e fiquei, sinhá, fiquei feito cozinheira de São Jorge, eu, uma pobre de mim, e ele aquele santo tão prepotente, com a fisolustria de escudo e espeto, numa correspondência da corte celeste...

A pobre negra estava outra vez falando difícil. Dona Benta fê-la voltar ao simples e perguntou:

— E você lá ficou a cozinhar? ...

— Que remédio, sinhá? Fiquei, apesar do medo que tinha do dragão. Que bicho feio, credo! Dava cada zurro de se ouvir nas estrelas. Acho que é por isso que elas piscam tanto...

— E onde mais estiveram os meninos?

— Não sei, sinhá. Eles que contem. É uma embrulhada que não entendo. Estiveram até num tal mundo que tem anéis do dedo — será possível?

— Sim, o planeta Saturno.

— Mas sinhá acredita que tenha anéis? — Eu... eu não sei. Eu acredito e desacredito tudo, porque acho tudo possível e impossível. Mas os meninos dizem que tem. E depois eles andaram galopando pelo “ete...”

— Éter, Nastácia.

— ...montados num cometa xucro, sinhá, de rabo dum tamanho sem fim.

— E onde acharam o anjinho?

— Eles dizem que foi na via de leite, que não sei o que é.

— Por falar no anjinho, Nastácia, como vai ser ele aqui? — perguntou Dona Benta.

— Vai ser muito bem, sinhá. Além da galanteza que é, não pode haver pessoinha mais bem-comportada e boa.

— Está claro. Desde que é anjo, tem que ser bom e bem-comportado.

— Podia ser anjo mau, sinhá — filho daquele tal Lúcifer... Mas sinhá pode ficar sossegada. Hei de tomar conta dele direitinho.

Nesse momento soou uma gritaria no pomar.

— Corra, Nastácia! Vá ver o que aconteceu — disse Dona Benta assustada.

A negra disparou na direção do barulho. Minutos depois reapareceu furiosa.

— Não foi nada de grave, sinhá — disse ela. — Foi o frango sura que deu outro pega no Doutor “Livinsto” e comeu o resto dos milhos que ele tinha no peito. Hoje mesmo esse frango vai para a panela. O diabo me paga...

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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