quarta-feira, 17 de janeiro de 2024

Humberto de Campos (Lâmpadas e ventiladores)

- A resistência física da mulher, Sr. conselheiro, - dizia-me, uma destas tardes, saboreando voluptuosamente o seu sorvete de melão, o meu velho amigo o conselheiro Abelardo de Brito, a resistência física da mulher é um fenômeno que merece a atenção dos fisiologistas e, principalmente, dos psicólogos. O poder da vontade é, nelas, maravilhoso, extraordinário, formidável. Senão, observe. Há um baile na sua casa, ao qual concorrem dezenas de moças. Com o entusiasmo que lhes empresta a alegria, essas encantadoras criaturas dançam, seguidamente, continuamente, valsa sobre valsa, polca sobre polca, mazurca sobre mazurca, ou, como hoje acontece, "ragtime" sobre "ragtime", "foxtrote" sobre "foxtrote", tango sobre tango, maxixe sobre maxixe.

- Perdão! - interrompi. Em minha casa não se dançaria isso!

- Eu sei! eu sei! - tornou o antigo magistrado, batucando a colherinha no fundo da taça, para dissolver o sorvete. - Eu sei disso. É uma simples comparação!

E continuou:

- Na festa, enquanto se dança ninguém se fatiga. As moças rodopiam, correm, pulam, divertem-se com alarido, sem atentarem para as horas, que se passam. Às três da manhã estão ainda tão lépidas, tão dispostas, como no momento em que entraram. E assim continuam, pela festa adiante. De repente, dá-se o baile por terminado. A musica retira-se, começam as despedidas, aproximam-se, buzinando, os "landaulets" (tipo de automóvel) dos convidados. E é uma calamidade: as moças, que, dois minutos antes, dançavam, riam, pulavam, mal podem, agora, dar um passo! Estão todas cansadas, fatigadas, com os pés arrebentados, de modo a ser necessário levá-las, uma a uma, pelo braço, para dentro dos automóveis!...

A tarde estava quente, abafada, ameaçando tempestade. Na sala da sorveteria onde tomávamos chá, os ventiladores ronronavam, como gatos, refrescando o ambiente. Lufadas ardentes, fortes, brutais, varreram, lá fora, o asfalto da Avenida. O céu escureceu, de repente, e um trovão estalou, rolando pelo céu. Nesse momento. as lâmpadas do salão, abertas àquela hora, apagaram-se todas, ao mesmo tempo que, dependendo da mesma corrente elétrica, os ventiladores foram, pouco a pouco, diminuindo a marcha, até que pararam, de todo, como aves que acabam de chegar de um grande voo. Estranhando aquela interrupção, ao mesmo tempo, da luz, e dos aparelhos, o meu venerando amigo levantou a cabeça venerável, e sentenciou, apontando o teto:

- As moças, meu velho, são assim. Apaguem as luzes do salão em que rodopiaram sem descanso, e elas se sentirão, em seguida, como esses ventiladores, cansadas, exaustas, quase mortas!

Lá fora, no ar pesado, um novo trovão estalou. E a chuva caiu, graúda, como grãos de milho, tamborilando descompassadamente no chão.

Fonte> Humberto de Campos. A Serpente de Bronze. Publicado originalmente em 1925. Disponível em Domínio Público.

Octaviano Joba (Poemas Avulsos)


A DOR DA SAUDADE

Ontem, visitei um jardim que fora meu
E  o encontrei tristemente desbotado...
A cor de alegria que tinha desvaneceu
E a tristeza se instalou por todo o lado.

Mas entre folhas secas, paus e cacos
Resistem duas flores lindas em pranto
Diante de tanta imundice, aridez e buracos
Que consumiu todo o verde manto...

E desejei que essas flores fossemos nós:
Eu e tu abraçados doce e eternamente...
Mas sinto que nem alcanço ouvir a sua voz
E o seu último olhar foi mui deprimente…
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LEMBRANÇAS

Vivemos um Paraíso enquanto nos amamos
E tudo na vida tinha algo de belo e doce
Mas, aos poucos, o Paraíso acabou-se 
E o que seria eterno, num instante, injuriamos.

Se de almas gémeas tornamos rivais
E vemo-nos pela rua como gato e rato,
Quem lembrará e será tão grato
Por esse tempo que vivemos como casais?

Eu guardo comigo grandes lições de vida,
Também guardo comigo grandes momentos...
Faça revisão dos seus antigos sentimentos...
Quem sorria pra mim, toda florida?!

Saiba que, enquanto eu viver e tu víveres,
Haverá sempre algo que nos torne semelhantes: 
(não olhe pro lado das coisas humilhantes)
- Lembraremos os mesmos beijos...os mesmos prazeres.
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RETRATO DE UM SONHADOR

Sou o que sempre fui, — eu mesmo.
E para sempre serei único e igual.
Não sou guiado pelo vento, não vivo à esmo. 
Serei igual ao que sou e fui: natural. 

Transformo-me na melhor versão de mim
Passando de geração em geração. . . 
Para tudo há Começo, Meio e Fim;
Também seguirá esta ordem o meu coração. 

Quem disser que sou mau que o diga:
Até Jesus foi entregue pelos seus. . . 
A amizade é uma semente, uma espiga, 
A da parábola que Jesus aprendeu de Deus. 

Valorizo a beleza e simplicidade da Natureza: 
Sou tão igual à qualquer indígena . 
Sobre o futuro, evito ter absoluta certeza 
Como esse que se expressa como alienígena. 

Tento ser humano, e o sou. . . Sou honesto:
Só engano a mim mesmo nas horas vagas. 
Uns dizem que valho, outros, que não presto, 
E é por isso que me lançam pragas.
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POEMA DA CONSTERNAÇÃO

De repente fez-se caco, o que era diamante
Fez-se cacto, o que era flor
Fez-se indiferença, o que era amor
De repente fez-se pálido, o que era brilhante.

De repente fez-se deserto, o que era mar 
Tornou-se inferno, o que paraíso
Tornou-se rugoso o que era liso
De repente fez-se selva, o que era pomar.

De repente fez-se inverno, o que era verão
Fez-se outono, o que era primavera
Fez-se pano, o que era bandeira
De repente fez-se crocodilo, o que era leão.

De repente fez-se calvário, o que era jardim
Fez-se desespero, o que era esperança
Fez-se tempestade, o que era bonança
De repente fez-se tristeza, o que era festim.

De repente fez-se mendigo, quem era patrão
Fez-se promessa do que seria o presente
Fez-se presente está dor insolente
De repente fez-se migalha, o que era pão. 

De repente fez-se Diabo, quem era Santo
Fez-se pagão, quem era Jesus
Fez-se apagão, o que era luz 
De repente tornou-se repulsa, o que era encanto. 

De repente fez-se agitação, do que era a paz
Fez-se paz, do que era agitação
Fez-se o que se faz numa "sã nação"(...)
De repente tornou-se cinza, o que era lilás.

De repente fez-se pimenta, o que era refresco
Fez-se burlesco, o que era sério 
Fez-se por emoção, o que seria por  critério
De repente fez-se pó, o que era gigantesco. 

De repente tornou-se velho, o "Homem-novo"
Tornou-se de um, o que seria comum
Enfim, tornou-se espinho o nosso "atum"
De repente separou-se a clara da gema (do antigo ovo).

Sempre de pedra a pedra, levando pedrada
De sol em sol, nos golpes das mãos em punho ...
Haverá uma luz que brilhe, sim, um outro Junho
Mais pomposo e glorioso que qualquer fada. 

De repente..."não mais que de repente"
"A mão armada" fez-se  "a mão amada"
"A mão amada" fez-se "a  mão armada"...
Vivemos feito relâmpagos(...) sempre de repente!

Quem olhar dentro de nós e ver algo, assim, eterno, 
Será em sonho, ou numa simples imaginação...
Eu, por exemplo, veterano da reincidente desilusão,
Só acredito em mim sonhando-me sempiterno.

Hinos de Cidades Brasileiras (São José dos Campos/SP)


Letra: Vítor Machado de Carvalho

Hino do Segundo Centenário

Ei-la envolta na neblina,
Debruçada na colina,
Sob o olhar da Mantiqueira
São José, a hospitaleira,
São José, bicentenária.

Das mãos de Anchieta nascida,
Desta terra legendária,
Que alegre vivas, unida,
No teu trabalho febril.
Que o orgulho sejas do Vale
"A cidade que mais cresce"
Pois o título desvanece
Todo São Paulo, e o Brasil.

Ei-la envolta na neblina
Debruçada na colina,
Sob o olhar da Mantiqueira
São José, a hospitaleira,
São José, bicentenária.

De operário a estudante,
Teu sangue novo, estuante,
Flui da escola à oficina.
E da fé, que te ilumina,
Unes o livro ao esmeril.

Terra do obreiro e do bardo,
Que tens Cassiano Ricardo,
O Poeta do Brasil.

Maria Amália Vaz de Carvalho (A propósito de um livro)

Há momentos em que eu não posso deixar de me sentir desconsolada. Parece-me nesses momentos que a humanidade está passando por uma das crises mais graves da sua vida de tantos séculos.

E quem terá forças para conservar-se espectador indiferente dessa dolorosa tragédia de que é teatro o mundo inteiro!

Teorias que se atropelam e se contradizem, sistemas políticos que mutuamente se combatem, opiniões tão variadas, acerca das coisas graves e das coisas insignificantes, que não nos resta meio algum de descortinar a verdade em meio de tão babilônica confusão.

Na prática o desmentido formal e permanente a todas as doutrinas que se pregam e se propagam!

Celebra-se a apoteose da família, e a família decadente, desnorteada, desunida, apresenta o reflexo fiel desta quadra de desalento e de incerteza!

Enquanto os sonhadores erguem um altar à justiça, como a deusa moderna que mais cultos merece, a injustiça aclamada, protegida, triunfante campeia neste mundo onde a vitória já não pertence ao mais forte, mas sim ao mais astuto!

A política, que parecia dever ser aquela ciência complexa e respeitável de conduzir as sociedades ao mais alto grau de aperfeiçoamento material e moral, não é senão um mercado abjeto, onde se debatem os mesquinhos interesses individuais, não aqueles interesses que são a base do bem coletivo, mas os que se traduzem na exploração do homem pelo homem.

A guerra aqui acesa e selvagem, de uma selvageria refinada e científica, acolá disfarçada e hipócrita, arma-se por toda a parte, como nos séculos que lá vão, igualmente funesta, embora a revistam mais prestigiosos aspectos.

Fala-se em paz, em fraternidade universal, prega-se uma religião humana que parece querer e dever suprir a religião divina, mas os modernos crentes d’esse dogma que assenta no direito, na justiça, no amor universal, atraiçoam tanto as suas doutrinas, como atraiçoavam a sua fé os católicos mal esclarecidos das épocas de ascetismo rude, e de fanática superstição.

Para onde vamos nós?

Se vamos para o Bem, o que é que origina esta dolorosa inquietação, que avassala e confrange todas as almas, este contraste incompreensível, entre o que se pratica e o que se pensa?

Se vamos para o Mal, para que nos falam do progresso, da perfectibilidade humana, das conquistas da civilização, dos arrojos felizes da ciência, de tudo que parece preparar ao homem uma quadra luminosa, feliz, nunca realizada até agora?

Dantes, nestas horas de dúvida, de angústia opressiva, íamos nós procurar consolação na palavra animadora e harmoniosa dos que, com os olhos fitos na estrela do ideal, indicavam ao homem o rumo que ele tinha a seguir, para não se perder na sua gloriosa ascensão.

Hoje, esses pilotos da nau do futuro estão mudos ou descreem também!

Mais doloroso ainda que o silencio desalentado, é o “rictus” sarcástico com que eles assistem a luta estranha e confusa de tantos elementos contraditórios e incompatíveis.

Depois a literatura, que é o espelho da alma das sociedades, é hoje por toda a parte um brado unanime de negação.

Não reconstrói, não modifica o que está feito, trata de o desmoronar pedra por pedra!

Há um homem em França que refaz, colocado num ponto de vista diverso, a obra colossal de Balzac.

O romancista mais admirável da França, aquele que fez do romance um ramo das ciências sociais, fez num momento, que tem por força de ficar, a síntese de sua época.

Pintou, e com que potência da verdade! Os reis, e os operários, as duquesas sentimentais, e os artistas convulsionados pela nevrose do seu tempo, os políticos, os sábios, os pensadores, os literatos; as pecadoras do alto mundo, e as pecadoras do mundo equívoco; os financeiros, e os lutadores ambiciosos; os que vinham perder a alma e gastar o corpo nessa Paris elétrica e absorvente, que atrai os gênios e os monstros, e os que vinham ali conquistar a fortuna, o poder, a soberania omnipotente.

Na sua obra complexa, enorme, que às vezes tem na distância um não sei que de monstruoso, encontra-se viva, palpitante, com os seus vícios, com as suas paixões, com o seu talento ardente, com a sua magnética e irresistível sedução, uma das épocas mais características da civilização da França, o que significa a civilização da Europa.

Se em Balzac encontramos as florescências rubras do mal, nem por isso nos seduzem menos as suavidades castas da virtude.

Ao pé de Madame de Marneffe, a pequenina e graciosa fera parisiense, felina e nervosa, com carícias que mordem e furores que acariciam, há a doce figura de Eugenia Grandet, a mais dolorosa virgem, que a imaginação moderna ainda concebeu e idealizou.

Ao pé de Luciano de Rubempré o ambicioso efeminado e mórbido; de Vautrin o brutal lutador que seria um líder do século XVI e que só pôde ser um forçado no século XIX; ao pé de Marsay o político sagaz, que faz dos homens, das mulheres e das coisas, meros instrumentos da sua fortuna, que não tem lei nem fé, e que é capaz de assassinar com um sorriso de dândi, temos de Artes o pensador austero, e pobre escritor para quem a literatura é um magistério e não um ofício, temos Cesar Birotteau, a sublimidade burguesa, o honesto comerciante que tem palavra de duque, que é perfumista com a mesma nobreza de abnegação e de honradez, com que se é sacerdote, e que glorifica toda uma classe de que se riem os frívolos, sem saber quanta heroicidade é precisa para saber guardar imaculada em um peito de burguês, a honra de um paladino.

Dizem que o vício poluía na obra de Balzac com uma exuberância de vegetação inacreditável.

Ele não foi mais do que o analista apaixonado da sua época.

Adorou-a pelo que ela tinha de grande, compreendeu que lhe podia desnudar as chagas, visto que ao lado delas podia mostrar tão admiráveis belezas.

Foi implacável na sua justiça.

O seu tempo seduziu-o pelo que havia de brilhante nos seus vícios, de fecundo e poderoso nas suas paixões, de arrebatado e criador no seu gênio, de raro e dedicado nas suas virtudes.

Hoje no artista que segue as pisadas de Balzac, que não tem a sua potência criadora, mas que tem como ele, e talvez mais metodicamente do que ele, o estudo paciente e investigador, que vemos nós que possa dar-nos aquela sensação de prazer agudo que a leitura conscienciosa de Balzac dá a um verdadeiro artista?

Emilio Zola também descreve a sua época.

É artista, porque sente e sabe fazer sentir.

Diz-se imparcial!

Faz viver nos seus livros a sociedade de que faz parte; entra nos palacetes de pedraria rendilhada dos modernos financeiros, os reis do mundo atual, percorre os salões dourados e os vestuários femininos fantasistas, as salas de jantar, onde se reúnem as relíquias mais preciosas de umas poucas de civilizações, janta nos restaurantes de mais fama, visita nos seus camarotes da ópera ou dos italianos as mundanas mais elegantes, as altas sociedades mais admiradas e invejadas, está no segredo de todas as operações da Bolsa, escutou a uma porta todas as combinações e convênios diplomáticos, penetrou com a sua perspicácia tenaz no interior da alma que anima o seu tempo, falou com os artistas, com os sábios, com os poetas, com as mulheres; subiu aos oitavos andares onde dormem amalgamados numa dolorosa e medonha promiscuidade os miseráveis dessa Paris, cuja superfície é tão sedutora e tão brilhante; viu os farrapos que cobriam o corpo desses indigentes, e os vermes que corroíam a alma desses párias; escutou as perfumadas confidências que murmuram devagarinho uns lábios frescos e vermelhos, por detrás dum leque onde dançam a gavotte (dança) umas pastorinhas de Watteau.

Observou de perto o que há de mais brilhante e o que há de mais abjeto, o que há de mais puro e o que há de mais ignóbil.

Dessa observação tão variada e tão completa que resultado colheu?

Não o posso dizer ao certo, sei só que não há nada mais desolador e mais triste do que a leitura de um livro de Zola.

E Zola é, depois de Tlambert, o grande mestre que morreu, o escritor de mais pulso da moderna geração realista.

Os outros não têm o talento dele, não têm o alcance funesto ou bom, mas em todo o caso poderosíssimo da sua obra, não têm a sua paciência de beneditino, exercida com os processos da nova escola.

Isto não é dizer mal dos que trabalham agora, é notar e assinalar um dos assinalar da confusão que hoje nos desnorteia.

Acudiam-me todos estes pensamentos, imagina como, leitora?

Ao ler um novo livro de Feuillet, ultimamente publicado em Paris Le journal d’une femme.

Feuillet é por excelência o escritor elegante e delicado.

No fundo, pode ser que a obra dele tomada no seu conjunto não seja de uma moralidade tão cauterizadora como a que resulta dos livros de Zola.

Ninguém diga que Zola é um escritor imoral, não; ele é simplesmente um escritor misantropo: vê as coisas pelo lado mais negro, e as suas bacantes, nuas como são, não têm efeitos enervantes, doem como um cáustico aplicado sobre uma úlcera aberta.

Ao lê-lo, a gente não tem de certas tentações de imitar os seus deploráveis heróis; pelo contrário. Sente-se ferida, humilhada, quase que angustiada, e exclama tristemente: Meu Deus! Pois a humanidade é isto!

Octavio Feuillet é, por assim dizer, o contraste do seu ilustre contemporâneo.

Escreve das mulheres e para as mulheres com pena de ouro e nácar.

Feuillet é o último romântico, depois do romantismo ter morrido, como Balzac é o primeiro realista antes do realismo nascer.

Para Feuillet, o delicado observador, as paixões são doenças da alma; para Zola, o anatomista implacável, as paixões são doenças do corpo.

O convulso e repugnante histerismo das mulheres de Zola não tem nada que ver com a sentimentalidade melancólica das mulheres de Feuillet.

Nenhuma delas — deixe-se isto bem claramente registrado para honra e felicidade do sexo feminino — nenhuma delas é a verdadeira mulher, a que tinha a obrigação de ser a mulher do futuro, já me não atrevo a dizer da que o será.

Octavio Feuillet, que está talvez perto demais das cruas pinturas do realismo, intentou neste seu último livro, chamado Le journal d’une femme, reabilitar as ideias românticas, que visto perderem tantas mulheres, podem também salvar algumas.

Ele que sabe tão bem dar vida às suas pálidas e nervosas heroínas, que têm na boca o sorriso da esfinge, que têm na voz uns feitiços misteriosos, que têm no gesto uma graça irrequieta e caprichosa, que sabem arrastar o homem até a beira do crime com um aceno das suas mãos esguias e aristocratas, ele, o criador do Conde de Camors, esse último produto da literatura byroniana, que endoideceu de amor literário tanta mulher, ei-lo que se propõe desta vez o difícil tema de explicar a que nobres e altos sacrifícios o romantismo bem entendido pode levantar uma mulher.

Foi arrojada a empresa; arrojada, mas feliz.

Le journal d’une femme, livro que eu já daqui recomendo a todas as minhas leitoras, é uma joia admirável, cinzelada pela mão de um artista de coração.

E depois são tais os exageros e desmandos da chamada escola realista, é tal o amesquinhamento a que ela reduz a humanidade, que é bom que um escritor de tão prestigiosa eloquência como é Octavio Feuillet mostre que, ao fim de contas, nem tudo era mal na geração que os moços de hoje tentam destronar com tão arrogante desdém.

Roubar ao homem e sobretudo a mulher aquele ideal em que até agora todos punham a mira embora o julgassem inacessível, é despir a vida das poucas flores que ela pôde ter.

Não; o homem não é só um ser organizado que pensa, é também uma alma que ama, espera e crê!

Nesta era de transformação e de incerta claridade, é bom que uma voz se erga e diga bem alto que a paixão só é criminosa quando mal dirigida, que o excesso do sentimento só é ridículo quando mal aplicado, que a abnegação inteira e absoluta tem gozos superiores a todos os gozos da matéria, e que as almas boas e as almas grandes descobriram uma linguagem misteriosa, na qual falam com Deus.

Não basta descrever minuciosamente com uma perversão de gosto, deveras deplorável, tudo que há mau, grotesco, ou vicioso na criação; não basta ter em si tão acentuada preocupação horrível, que se deseje ver com o microscópio do naturalista, para bem lhe distinguir os defeitos, as anfractuosidades, as máculas, os vermes, de tudo que à simples vista seria harmonioso e belo.

Aquele a quem se roubam todas as ilusões salutares cumpre apontar para algum bem que ainda lhe ficará na terra, bem verdadeiro que o compense de todas as suas perdidas alegrias mentirosas!

Não basta negar, é necessário afirmar com convicção robusta; não basta demolir, é preciso ao lado dos edifícios que se derrubam e desmoronam construir novos edifícios mais ricos e mais seguros.

Octavio Feuillet fez este livro, como um protesto de escola, sem, contudo, perder com esta qualidade um tanto dogmática, o seu interesse dramático, a vida intensa, tão indispensável às verdadeiras obras d’arte.

Dado o caso de se chamar romantismo ao excesso de certos e determinados sentimentos, a concepção mais ou menos quimérica que temos das coisas da vida, resta provar se o romantismo pode ou não pode ser nocivo conforme o terreno em que medrar e o meio em que se desenvolver.

A principal heroína do romance, aquela que escreve o seu Diário, ao qual dá o título de livro, é uma rapariga apaixonadamente romântica, tudo quanto há mais romântico, quer dizer tudo quanto há de menos prático e real.

Por isso sendo moça, formosíssima, sentindo cantar dentro da sua alma a festiva e triunfante formosíssima dos vinte anos, tendo uma destas belezas características que dão a certas mulheres um aspecto de deusas, amando com aquela primeira e casta ternura das virgens um homem em tudo digno dela, sacrifica todas estas superioridades da natureza, todas estas radiosas promessas de felicidade a quem? A que?

A um pobre mutilado que morria de amor por ela, a um soldado que voltara da guerra sem uma perna e sem um braço, informe, grotesco, irremediavelmente desgraçado, e que, assim mesmo do fundo do abismo em que o destino o lançara, ousou amar aquela mulher olímpica, e teve a audácia de tentar morrer por causa dela.

Enquanto ele viveu, foi-lhe fiel como as mulheres dignas o sabem ser, consolou-o de tudo que perdera, levou a luz da sua caridade bendita aos antros em que aquela pobre alma se debatera inutilmente por tanto tempo.

Mais tarde quando o marido morre, abençoando-a como se abençoa um anjo, ela, livre de novo, torna a encontrar o homem que amou uma vez, e que não soube esquecer.

Esse é então marido da amiga, da infância, da juvenil viúva.

Não são felizes, os dois, mas ela, a intrépida, a caridosa criatura, lá está tentando da abnegação de cada um deles fazer a felicidade de ambos.

Não o consegue, e quando a amiga, culpada e arrependida se mata para fugir ao horror de mentir eternamente a seu marido, só ela no mundo recebe a confidência do seu crime, confidência que numa carta repassada de dor a doída criança lhe pede que transmita ao esposo ultrajado.

Ficaram ambos livres em face um do outro, ambos viúvos, ambos tendo cumprido a missão que o destino lhe confiara.

Nada os desune agora, nada, a não ser uma dúvida que punge o ânimo daquele, que hoje ela ama perdidamente com a paixão concentrada de tantos anos de sacrifício.

— Porque foi que a minha mulher se matou? – pergunta ele então. Às vezes lembro-me que foi talvez o desamor que eu não soube ocultar bastante. Se assim for, fugirei. Não quero gozar uma ventura de que não sou digno. Se eu matei uma inocente e casta criança, quem me dá direito de ser ainda feliz na terra?

Só ela o sabe, só dela depende aquela ventura divina, de que o dever e a caridade a fizeram fugir noutro tempo.

Pois a ninguém revelou o segredo da sua amiga morta, da doce criatura que a paixão fustigara e que a paixão matou!

Calou-se, deixou que o noivo da sua alma se afastasse para sempre, pungido por um remorso que o separava da ventura, e olhando para o berço da filha escreveu estas palavras que vertem lágrimas, as santas lágrimas, que os realistas não conhecem:

«Restas-me tu, minha filha... Escrevo estas linhas ao pé do teu bercinho... Espero que um dia estas páginas façam parte do teu enxoval de noiva; talvez elas te digam que queiras muito a tua pobre mãe, tão romântica!... Dela saberás talvez que a paixão e o romance podem ser bons, com a ajuda de Deus, porque elevam os corações e ensinam-lhes os deveres superiores, os grandes sacrifícios, as elevadas alegrias da vida. É verdade que eu choro ao dizer-te isto, mas olha que há lagrimas que causam inveja aos anjos.”

Fonte: Maria Amália Vaz de Carvalho. Contos e Phantasias. Publicado originalmente em Porto, 1880. Convertido para o português atual por J. Feldman. Disponível em Domínio Público.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

José Feldman (Analecto de Trivões) 20

 

Mensagem na Garrafa – 81 –

Clarice Lispector
(Chaya Pinkhasivna Lispector)
Chechelnyk/Ucrânia, 1920 – 1977, Rio de Janeiro/RJ

INSÔNIA INFELIZ E FELIZ
 
De repente os olhos bem abertos. E a escuridão toda escura. Deve ser noite alta. Acendo a luz da cabeceira e para o meu desespero são duas horas da noite. E a cabeça clara e lúcida. Ainda arranjarei alguém igual a quem eu possa telefonar às duas da noite e que não me maldiga. Quem? Quem sofre de insônia? E as horas não passam. Saio da cama, tomo café. E ainda por cima com um desses horríveis substitutos do açúcar porque Dr. José Carlos Cabral de Almeida, dietista, acha que preciso perder os quatro quilos que aumentei com a superalimentação depois do incêndio. E o que se passa na luz acesa da sala? Pensa-se uma escuridão clara. Não, não se pensa. Sente-se. Sente-se uma coisa que só tem um nome: solidão. Ler? Jamais. Escrever? Jamais. Passa-se um tempo, olha-se o relógio, quem sabe são cinco horas. Nem quatro chegaram. Quem estará acordado agora? E nem posso pedir que me telefonem no meio da noite pois posso estar dormindo e não perdoar. Tomar uma pílula para dormir? Mas e o vício que nos espreita? Ninguém me perdoaria o vício. Então fico sentada na sala, sentindo. Sentindo o quê? O nada. E o telefone à mão.

Mas quantas vezes a insônia é um dom. De repente acordar no meio da noite e ter essa coisa rara: solidão. Quase nenhum ruído. Só o das ondas do mar batendo na praia. E tomo café com gosto, toda sozinha no mundo. Ninguém me interrompe o nada. É um nada a um tempo vazio e rico. E o telefone mudo, sem aquele toque súbito que sobressalta. Depois vai amanhecendo. As nuvens se clareando sob um sol às vezes pálido como uma lua, às vezes de fogo puro. Vou ao terraço e sou talvez a primeira do dia a ver a espuma branca do mar. O mar é meu, o sol é meu, a terra é minha. E sinto-me feliz por nada, por tudo. Até que, como o sol subindo, a casa vai acordando e há o reencontro com meus filhos sonolentos. 

Hinos de Cidades Brasileiras (Balneário Camboriú/SC)


Letra e Música: Mário Carlos Gonçalves

I
Balneário Camboriú
De belas praias altaneiras
Seus recantos verdes montes
Orgulho dos brasileiros
Onde suas águas mais azuis
Enchem de encanto
O mundo inteiro
Com seu povo alegre e amigo

II
Recebe a todos o ano inteiro
Com o Cristo Luz em amplo abraço
Abençoando os passageiros
Suas noites são festivas
E aproximam corações
Cidade hospitaleira
Quem a conhece
Nunca mais a esquecerá
Princesa do meu Brasil
Cidade de belezas mil.

Contos e Lendas do Mundo (Honduras: A mina Clavo Rico)

A lenda da mina de Clavo Rico faz parte de outra daquelas histórias de Honduras que, tanto por extensão quanto por simplicidade, costumam ser contadas mais do que tudo aos pequenos da casa, quando não são eles que os leem para si mesmos ou outras variantes dessa possibilidade, como ouvi-la na Internet, por exemplo.

Além de toda a história, fornece uma bela moral, tudo começou no veio, ou rachadura cheia de minerais exploráveis, que foi descoberta em 1585 na Choluteca, durante o período colonial. A futura mina foi muito explorada devido aos muitos recursos valiosos que dela foram extraídos e isso significa que ainda hoje é explorada, mas em menor escala.

Muitos comparam esta rica montanha com o famoso Dorado que os espanhóis vieram buscar, inspirados na busca do ouro jorrando, aquela cidade mítica cujas ruas eram feitas de ouro e não podiam ser encontradas por mais que procurassem. Talvez o mais próximo disso tenha sido ver os esplêndidos trabalhos que os incas fizeram, por exemplo, com o mineral, mas, além de minas como Clavo Rico, não encontraram grandes fontes de ouro.

Embora para compensar a decepção de Clavo Rico, eles tiraram muitas pepitas de ouro, já que o mineral é abundante na América Latina, que foram enviadas à monarquia espanhola que financiou expedições e o assentamento na nova extensão de seu império.

Mas Clavo Rico, de acordo com histórias de Honduras, ficou sem ouro na superfície e é por isso que eles tiveram que começar a cavar. A primeira grande escavação da mina teve um quilômetro de extensão. Os trabalhadores trabalharam lá por muitos meses até encontrarem um muro que não poderiam derrubar facilmente até que muitos homens, passo a passo, removessem as pedras.

Depois de derrubar a parede, encontraram atrás dela um enorme lagarto dourado que era completamente feito de ouro puro, muito parecido com aquele que em outras histórias de Honduras podemos ver que sua cauda está cortada. Uma vez que o líder da escavação descobriu, ele ficou muito feliz e ordenou que eles o extraíssem, proferindo ameaças ao céu, segundo as quais nem os anjos poderiam vê-lo depois que aquele lagarto foi extraído.

Mas assim que os trabalhadores colocaram a primeira mão no lagarto, a caverna estremeceu e desabou completamente, deixando todos mortos sob o peso de terem caído no topo de uma montanha inteira.

De toda esta história tiramos a ideia ou a moral de que é importante respeitar os mistérios e os seres míticos e extraordinários que são da natureza, independentemente de serem ouro e por razões comerciais dos humanos queremos aproveitá-los para enriquecer fortunas e populações, enfim, que embora o dinheiro seja muito importante, o respeito é muito mais importante.

domingo, 14 de janeiro de 2024

Trova ao Vento – 006

Mensagem na Garrafa – 80 –

Guilherme de Almeida
(Guilherme de Andrade e Almeida)
Campinas/SP, 1890 – 1969, São Paulo/SP

ESTA VIDA

Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.

Laé de Souza (Desconversa)

Chegou em casa taciturno, tirou o paletó e avisou a mulher que, após a janta, haveria uma reunião familiar. 

A vontade do filho era que fosse logo, para evitar expectativas e apreensões, mesmo porque a vontade de jantar já se fora. Mas quem ousava tocar no assunto quando Ambrosiano estava naqueles dias?

Intimamente, todos passaram em revista suas últimas vaciladas e se perguntaram se não seriam o motivo daquela conversa, que parecia ser séria.

Após o silencioso jantar, Ambrosiano abriu a reunião com um discurso sobre a crise do país e a necessidade de corte nos supérfluos, fixando-se numa blusa nova da mulher, que avermelhou-se e encolheu as pernas para esconder um sapato do anúncio da TV. Falou que, a partir daquele momento, estava instituído o controle das despesas e que ele faria anotações de tudo o que fosse gasto na casa, tostão por tostão. A mesada dos filhos seria reduzida, dentro de uma realidade econômica e das necessidades de jovens da idade deles.

A mulher sentiu-se indignada com o tal controle, que mais parecia desconfiança do que economia. Mais do que ela fazia, era impossível, tirar mais o quê? 

Joãozinho, duvidou que ele soubesse quais as necessidades do jovem de hoje: "Teu tempo era outro e as marcas são da nossa geração."

Ambrosiano contra-argumentou que o preço que se pagava pela marca era ilusório e que se vestia bem com preços menores. De qualquer forma, não estavam discutindo o que se iria comprar, mesmo porque, as compras estavam suspensas. Joãozinho deu uma risadinha, não conseguindo ver-se com as tais roupas e bateu pé firme contra a redução da mesada.

Ambrosiano dispunha-se a não baixar o valor da mesada, mas seria criado um desconto para ajuda na manutenção do lar, A crise existe e nós temos que nos adaptar aos novos tempos.

A mulher questionou-o sobre em que estava ele sendo afetado pela crise, vez que seu salário continuava igual e ao que se sabia, os preços estavam estabilizados. 

Agora, disse ela, se tu parar com essa coisa de dar uma mãozinha para os teus parentes, será necessário este tal arrocho?

Joãozinho aproveitou a deixa da mãe para perguntar ao Ambrosiano se também estava nos planos dele cortar a cerveja e começar a ir trabalhar de ônibus.

Ambrosiano não respondeu nem a um, nem a outro, percebendo que a coisa ia continuar do mesmo jeito. De cara feia, dirigiu-se ao quarto, torcendo para que no dia seguinte estivesse na lista de corte na empresa e, aí sim, eles iriam perceber que estamos mesmo em crise e, em pouco tempo, aprenderiam com quantos paus se faz uma canoa.

Fonte> Laé de Souza. Acredite se quiser. SP: Ecoarte, 2000. Enviado pelo autor

Caldeirão Poético LXXVI


Cid Silveira 
São Vicente/SP, 1910 – ????

CAIS

Na faina do porto gemia o guindaste,
jogando no pátio de pedras, de chofre,
a mercadoria pendendo-lhe da haste,
dezenas de sacos de pedra de enxofre.

Os trabalhadores das docas, externos,
não usam camisa, mas faixa na ilharga.
Trabalham nas furnas do pior dos infernos,
porões tenebrosos dos buques de carga.

O ar a empestado, sufoca; dá nojo
o pó amarelo, pesado, que dança
por cima dos homens que arrancam do bojo
do barco esse enxofre que ao porto se lança.

E o porto, ressoante de silvos, é teatro
de cenas medonhas, protestos, clamores!
Mas como o cargueiro sairá logo às quatro,
prossegue o trabalho dos estivadores.

Gaivotas inquietas esvoaçam à tona
das águas oleosas do estuário parado.
E finda o serviço só quando, com a lona,
se cobre o profundo porão esvaziado.

Mas logo no dia seguinte, de novo
começa o trabalho, com pragas e cantos.
É heroica a existência dos homens do povo,
dos trabalhadores das docas de Santos.
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Dorothy Jansson Moretti
Três Barras/SC, 1926 – 2017, Sorocaba/SP

POETA

… reconheceram a canção que cantariam,
se soubessem cantar .
Helena Kolody

Nunca lhe falta a sensibilidade,
a sutileza, o dom de transferir
às palavras toda a expressividade
na alegria ou na mágoa do sentir.

O poeta é assim, é versatilidade…
Seja o que for que intente traduzir,
mergulha em vida, em sonho, em realidade,
faz de uma noite a aurora reflorir.

Transcende as dores de um mundo sofrido,
pisa os mistérios do desconhecido,
traz as estrelas para o nosso chão.

E quem o escuta, exclama, fascinado:
“Era assim que eu queria ter cantado,
se soubesse escrever minha canção!”
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Francisco José Pessoa 
(Francisco José Pessoa de Andrade Reis)
Fortaleza/CE, 1949 – 2020

EXCESSO DE BAGAGEM

Se promessas são dívidas ou não
Eis-me aqui, são e salvo neste frio,
Vindo do norte de um calor bravio
Para provar a minha gratidão.
Pus poesia no meu matulão*
Mandei o Haroldo* reservar passagem
Viemos juntos para esta viagem
Trazendo tanto, tanto, tanto amor
Que no check-in, acredite o senhor,
Foi registrado EXCESSO DE BAGAGEM.

Mas eu paguei feliz o tal imposto
E pagaria tudo uma outra vez
Só pelo fato de estar com vocês
E poder abraçá-los rosto a rosto.
Falar ao vivo tem um outro gosto 
Participar dessa camaradagem
Amizade fiel, sem maquiagem,
E de tanta afeição, tenho certeza
No check-in ao voltar pra Fortaleza,
Vou pagar outro EXCESSO DE BAGAGEM!
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* Matulão: Saco onde os retirantes nordestinos carregavam seus pertences.
** Haroldo a que o poeta se refere, é outro poeta, Haroldo Lyra.
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Lucas Munhoz
Indaiatuba/SP

O ESPELHO DO MAR

Olha-me, pelo espelho... Os meus poderes!
Lembro-me, se cessar os teus fulgores;
Lembro-me, ao meu olhar dos ditadores
Ao luar poderoso, sem tolheres!...

 D´água que chora o Deus, pelos colheres!
 A lua primorosa, e os teus rigores
 Dos ares perfumosos, pelas flores
 Tens os entes perfeitos dos cozeres.

 Quanto a ti, pelos sonhos desejáveis!
 Lua, e os meus corações que me conheces
 São os deuses amáveis e adoráveis.

 Ao mar dos corações, pelo carinho!
 Amo-te, agora foste o mar que teces...
 Olho-te, pelo véu limpo, sozinho.
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Vicente de Carvalho 
(Vicente Augusto de Carvalho)
Santos/SP, 1866 – 1924

SONETO DA DEFENSIVA

Enganei-me supondo que, de altiva,
Desdenhosa, tu vias sem receio
Desabrochar de um simples galanteio
A agreste flor desta paixão tão viva.

Era segredo teu? Adivinhei-o;
Hoje sei tudo: alerta, em defensiva,
O coração que eu tento e se me esquiva
Treme, treme de susto no teu seio.

Errou quem disse que as paixões são cegas;
Veem... Deixam-se ver... Debalde insistes;
Que mais defendes, se tu'alma entregas?

Bem vejo (vejo-o nos teus olhos tristes)
Que tu, negando o amor que em vão me negas,
Mais a ti mesma do que a mim resistes.