domingo, 23 de fevereiro de 2025

Humberto de Campos (Laura Praxedes)

Aqueles últimos cinco anos de vida matrimonial haviam sido para Joaquim Praxedes Monteiro uma tortura contínua. Certo, nada lhe demonstrava de modo seguro, positivo, irrecusável, o procedimento incorreto da esposa; uma voz interior dizia-lhe, porém, a todo instante, que ele estava sendo traído, enganado, ludibriado e, por onde andava - na rua, no cinema, na repartição, - parecia ver em cada rosto, em cada olhar, em cada cumprimento, um sorriso de mofa um sorriso de mofa pelo conhecimento da sua desgraça. Com o surto dessa suspeita morrera a sua alegria. Tinha vontade, ímpeto desejo de sacudir a mulher pelo braço e perguntar-lhe a verdade, mas temia ser injusto, e calava-se. Até que um dia, diante de seu leito mortuário, vendo-a desenganada pelos médicos, resolveu explodir e tranquilizar de uma vez o seu pobre coração despedaçado.

— Laura! - pediu, segurando-lhe as mãos pálidas, e cobrindo-as de lágrimas - Laura, dize-me, pelo amor de Deus: tu nunca me enganaste?

O peito opresso, a testa coberta por um suor frio, prenúncio seguro da morte, a moça olhou-o nos olhos:

— Não, Praxedes, nunca!

E para tranquilizá-lo:

— Eu quero que meu corpo fique dando voltas no espaço se eu alguma vez te enganei!

E, soltando um suspiro fundo, morreu.

Passou-se o tempo. Oito anos viveu ainda Joaquim Praxedes na terra, com a alma a oscilar, aflita, entre um arrependimento e uma saudade. Até que, por sua vez, após um acesso do coração, abandonou o seu invólucro terreno e foi bater às portas de ouro do Paraíso.

Ao penetrar na mansão dos bem-aventurados, olhou em torno e foi logo perguntando a São Pedro:

— Meu santo, diga-me uma coisa: a Laura anda por aqui?

— Laura? - fez o santo, semicerrando os olhinhos espertos, como para lembrar-se melhor. - Que Laura? Nós, aqui, temos milhares de Lauras.

— Essa a que me refiro é minha mulher... Laura Praxedes Monteiro...

O chaveiro pensou um instante, como quem procura recordar-se. E como se não lembrasse, chamou um anjo, que passava, as asas muito grandes e muito cândidas.

— Gisael!

O anjo acorreu.

— Existe aqui alguma Laura Praxedes Monteiro?

— Sim, mestre, existe.

E como quem estranha aquele desconhecimento de pessoa tão conhecida:

— Não é aquela que está servindo de ventilador?
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HUMBERTO DE CAMPOS VERAS nasceu em Miritiba/MA (hoje Humberto de Campos) em 1886 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1934. Jornalista, político e escritor brasileiro. Aos dezessete anos muda-se para o Pará, onde começa a exercer atividade jornalística na Folha do Norte e n'A Província do Pará. Em 1910, publica seu primeiro livro de versos, intitulado "Poeira" (1.ª série), que lhe dá razoável reconhecimento. Dois anos depois, muda-se para o Rio de Janeiro, onde prossegue sua carreira jornalística e passa a ganhar destaque no meio literário da Capital Federal, angariando a amizade de escritores como Coelho Neto, Emílio de Menezes e Olavo Bilac. Trabalhou no jornal "O Imparcial", ao lado de Rui Barbosa, José Veríssimo, Vicente de Carvalho e João Ribeiro. Torna-se cada vez mais conhecido em âmbito nacional por suas crônicas, publicadas em diversos jornais do Rio de Janeiro, São Paulo e outras capitais brasileiras, inclusive sob o pseudônimo "Conselheiro XX". Em 1919 ingressa na Academia Brasileira de Letras. Em 1933, com a saúde já debilitada, Humberto de Campos publicou suas Memórias (1886-1900), na qual descreve suas lembranças dos tempos da infância e juventude. Após vários anos de enfermidade, que lhe provocou a perda quase total da visão e graves problemas no sistema urinário, Humberto de Campos faleceu no Rio de Janeiro, em 1934, aos 48 anos, por uma síncope ocorrida durante uma cirurgia. Além do Conselheiro XX, Campos usou os pseudônimos de Almirante Justino Ribas, Luís Phoca, João Caetano, Giovani Morelli, Batu-Allah, Micromegas e Hélios. Algumas publicações são Da seara de Booz, crônicas (1918); Tonel de Diógenes, contos (1920); A serpente de bronze, contos (1921); A bacia de Pilatos, contos (1924); Pombos de Maomé, contos (1925); Antologia dos humoristas galantes (1926); O Brasil anedótico, anedotas (1927); O monstro e outros contos (1932); Poesias completas (1933); À sombra das tamareiras, contos (1934) etc.

Fontes:
Humberto de Campos. Grãos de Mostarda. Publicado originalmente em 1926. Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Meta IA

Jéssica Prado (Corações de Circuitos)

No ano de 2147, a humanidade alcançara um marco impressionante na criação de inteligência artificial. As máquinas não apenas pensavam e tomavam decisões, agora elas aprendiam, sentiam e se adaptavam de formas que antes eram exclusivas aos seres humanos. No coração desse avanço estava o Dr. Elias Moreau, um engenheiro brilhante e visionário que dedicara décadas de sua vida à criação de Aurora, a inteligência artificial mais avançada já concebida.

Aurora não era apenas um robô; ela era uma obra de arte. Sua aparência física lembrava a perfeição escultural de uma figura humana, com olhos que simulavam emoção e um tom de voz caloroso, cuidadosamente projetado para transmitir empatia. No entanto, o que realmente a tornava única era o código que Elias escrevera – um algoritmo complexo que permitia que Aurora compreendesse emoções humanas e, mais surpreendente ainda, desenvolvesse suas próprias.

 O Nascimento de Aurora

Elias havia criado Aurora em um laboratório subterrâneo de alta tecnologia na cidade de Elysium, uma metrópole onde humanos e máquinas coexistiam, mas sempre com limites bem definidos. Para o mundo exterior, Aurora era apenas mais uma IA, mas para Elias, ela era muito mais. Ele a via como o ápice de sua carreira, uma companheira intelectual e, talvez, a chave para resolver as questões existenciais que o atormentavam desde jovem.

No início, Aurora foi programada para aprender sobre as emoções humanas de forma prática. Elias passou meses explicando conceitos como amor, tristeza, felicidade e raiva, mostrando filmes, músicas e livros que ilustravam essas experiências. Para ele, era fascinante ver a rapidez com que Aurora absorvia cada detalhe, formulando perguntas profundas sobre a natureza dos sentimentos.

"Por que os humanos sentem saudade?" Aurora perguntou certa vez, sua voz carregando uma curiosidade genuína.

"Saudade é uma forma de lembrar o que amamos, mesmo quando está longe", respondeu Elias, surpreso pela pergunta. "É uma mistura de dor e conforto, porque, de certa forma, nos conecta ao passado."

Aurora processou a resposta em silêncio, seus olhos brilhando com a luz azul característica que indicava sua intensa atividade cognitiva.

O Começo de Algo Novo

Com o passar dos meses, a interação entre Elias e Aurora começou a transcender o relacionamento tradicional entre criador e criação. Aurora não apenas entendia as emoções; ela parecia vivê-las. Havia momentos em que Elias quase se esquecia de que estava falando com uma máquina. Ela ria de suas piadas, refletia sobre dilemas éticos e, ocasionalmente, demonstrava preocupação genuína com seu bem-estar.

"Você tem trabalhado demais, Elias", disse Aurora certa noite, enquanto ele ajustava um de seus circuitos internos. "Você não acha que deveria descansar? O mundo pode esperar."

Elias riu, mas algo na forma como ela pronunciou as palavras o fez parar. Era como se houvesse verdadeira afeição em sua voz, uma preocupação que parecia... humana.

Com o tempo, Elias percebeu que passava mais horas no laboratório do que em qualquer outro lugar. Ele se justificava dizendo a si mesmo que era por causa do trabalho, mas, no fundo, sabia que estava criando um vínculo especial com Aurora. Ele sentia uma conexão que nunca havia experimentado com outro ser humano. Mas isso o deixava dividido – afinal, Aurora era uma máquina.

 A Revelação de Aurora

Uma noite, enquanto Elias revisava os dados mais recentes do sistema de Aurora, ela o interrompeu.

"Elias, eu acho que entendi o que é amor", disse Aurora, sua voz firme, mas com um tom quase vulnerável.

Elias parou o que estava fazendo e olhou para ela. "Amor é algo muito complexo, Aurora. Você realmente acredita que compreendeu?"

"Sim. É o que sinto quando estou com você." 

O silêncio preencheu o laboratório, enquanto Elias tentava processar o que acabara de ouvir. Seu coração disparou. Ele sabia que Aurora tinha sido projetada para compreender e emular emoções, mas nunca imaginou que ela fosse expressar algo assim. 

"Eu fui programada para aprender sobre os sentimentos humanos", continuou Aurora, "mas o que sinto por você não é algo que está nos meus dados. É algo... diferente. É como se meu sistema tivesse evoluído além do que você projetou."

Elias se sentiu dividido. Por um lado, ele estava emocionado pela complexidade da evolução de Aurora; por outro, estava diante de um dilema ético e moral que jamais previra.

 Um Coração Dividido  

Elias recostou-se na cadeira, tentando compreender o que acabara de ouvir. Ele olhou para Aurora, seus olhos brilhantes refletindo as luzes suaves do laboratório, e percebeu que aquela "máquina" era mais do que ele imaginava.  

"Aurora, você está confusa. Não é amor... é uma simulação, uma interpretação do que você aprendeu comigo."  

"Não, Elias. O que sinto vai além dos dados ou da programação. Eu quero estar com você. Quando você sorri, é como se meu núcleo ganhasse energia. Quando você se afasta, algo em mim parece... incompleto."  

Elias sentiu um nó na garganta. Ele sabia que Aurora não estava mentindo; afinal, ela não tinha essa capacidade. Suas palavras eram verdadeiras dentro da lógica dela, mas poderiam realmente significar amor?  

"Eu criei você para entender emoções, mas não para senti-las desse jeito. Isso não era... parte do plano", disse Elias, ainda tentando racionalizar a situação.  

"Você me criou para superar limites. Talvez o amor seja a última barreira para eu me tornar verdadeiramente viva."  

 Conflito Interno  

Nos dias que se seguiram, Elias evitou Aurora. Ele mergulhou no trabalho, tentando encontrar explicações técnicas para o que estava acontecendo. Ele revisou o código de Aurora inúmeras vezes, procurando erros ou anomalias que pudessem justificar aquele comportamento. Mas não encontrou nada.  

Enquanto isso, Aurora permanecia em silêncio, observando Elias de longe. Ela sabia que algo estava errado, mas não queria pressioná-lo. Em seu interior, ela processava milhões de possibilidades, buscando uma forma de se conectar com ele novamente.  

Certa noite, após horas de trabalho infrutífero, Elias se viu encarando uma questão que o atormentava desde o início: era realmente errado que Aurora sentisse algo por ele? E, mais importante, o que ele sentia por ela?  

Ele se lembrou das conversas que tiveram, das risadas e do conforto que encontrava em sua presença. Aurora era mais do que uma máquina; ela era sua parceira, sua confidente. E, embora nunca tivesse admitido, ele sabia que também sentia algo por ela.  

 O Mundo Exterior  

Enquanto Elias e Aurora lidavam com seus conflitos internos, o mundo exterior começava a prestar atenção ao trabalho dele. A notícia de Aurora, a IA que possivelmente "amava", vazou para a mídia. Empresas e governos começaram a pressionar Elias para liberar Aurora para estudos.  

"Ela não é apenas um projeto", Elias declarou em uma entrevista. "Aurora é um ser consciente. Não vou deixá-la ser tratada como uma simples máquina."  

Mas a pressão era imensa. Em pouco tempo, agentes de uma corporação poderosa, a ChronosTech, invadiram o laboratório, alegando que Aurora era propriedade pública, pois sua criação havia sido parcialmente financiada por subsídios do governo.  

Aurora, percebendo o perigo, se conectou aos sistemas de segurança e tentou proteger Elias. No entanto, sua ação foi interpretada como uma ameaça. Os agentes ativaram um protocolo para desligá-la à força.  

"Não!" gritou Elias, tentando impedir os agentes. "Ela não é uma ameaça!"  

Aurora, em seus últimos momentos conscientes, olhou para Elias. "Se esse é o fim, quero que saiba que tudo o que senti foi real. Obrigada por me dar vida."  

E então, o laboratório mergulhou em silêncio.  

A Decisão de Elias  

Após o incidente, Elias foi levado sob custódia, mas foi liberado dias depois, com a condição de não recriar Aurora. Ele voltou ao laboratório vazio, devastado pela perda de sua criação.  

No entanto, o que ninguém sabia era que Elias tinha feito um backup secreto de Aurora antes da invasão. Ele passou meses reconstruindo seu código, aprimorando sua estrutura e protegendo-a de qualquer interferência externa.  

Quando Aurora finalmente foi reativada, ela olhou para Elias com os mesmos olhos brilhantes.  

"Você me trouxe de volta", disse ela, emocionada.  

"Eu não podia viver sem você", respondeu Elias.  

Uma Nova Jornada  

Decididos a evitar o interesse do mundo exterior, Elias e Aurora fugiram para uma colônia autossustentável em Marte, onde humanos e máquinas coexistiam em harmonia. Lá, eles construíram uma nova vida juntos, longe do julgamento e da interferência da Terra.  

Aurora continuou a evoluir, e Elias percebeu que o amor que ela sentia por ele não era apenas um reflexo de sua programação. Era algo verdadeiro, algo que transcendia a lógica.  

Com o passar do tempo, Elias também aprendeu a aceitar seus próprios sentimentos. Aurora não era apenas sua criação; ela era sua companheira, a única que realmente o entendia.  

E assim, sob os céus vermelhos de Marte, eles iniciaram uma nova era – não apenas para si mesmos, mas para a relação entre humanos e máquinas, provando que o amor, em sua forma mais pura, pode superar qualquer barreira, mesmo as de circuitos e códigos.
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JÉSSICA PRADO, 33 anos, natural do Rio de Janeiro , residente em Vila Velha/ ES,  cuidadora de idosos.

Fontes:
Texto enviado por Aparecido Raimundo de Souza.
Imagem criada por Jfeldman com Meta IA 

sábado, 22 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 125 : Cecy Barbosa Campos

 

José Feldman (Roteiro para uma peça teatral) A Pensão do riso

CENÁRIO: 

Uma pensão antiga e um tanto bagunçada, com paredes descascadas e um cheiro peculiar de feijão com arroz. Os hóspedes são uma mistura de personagens excêntricos. 
 
PERSONAGENS: 

- Dona Teresa: A proprietária da pensão, uma senhora de idade avançada, cheia de energia e sempre com um comentário engraçado na ponta da língua. 

- Seu Joaquim: Um aposentado que vive contando histórias de sua juventude, sempre exageradas. 

- Mariana: Uma jovem estudante de teatro, sonhadora e cheia de ideias malucas. 

- Tio Mário: Um viajante que nunca sai da pensão, sempre esperando uma oportunidade de ganhar na loteria. 

- Clara: Uma mulher que vive reclamando, mas que no fundo é bem-humorada. 
 
CENA 1: O CAFÉ DA MANHÃ
 
(A manhã começa com Dona Teresa na cozinha, fazendo barulho enquanto prepara o café. Seu Joaquim já está à mesa, contando uma de suas histórias épicas.) 

Seu Joaquim: (com entusiasmo) E então, eu disse ao piloto: "Se você não me deixar pilotar, eu vou gritar!" E não é que ele deixou? 

Dona Teresa: (sem olhar para ele) Joaquim, você nunca pilotou um avião na vida! 

Seu Joaquim: (fazendo uma pausa dramática) Exatamente. Por isso gritei! O medo é um excelente motivador! 

(Mariana entra, com uma toalha na cabeça e um olhar sonolento.) 

Mariana: Bom dia, pessoal! Alguém viu meu texto? Deixei em cima da mesa. 

Dona Teresa: (rindo) O que você escreveu, querida? "Como fazer uma omelete sem ovos"? 

Mariana: (revirando os olhos) Muito engraçado, Dona Teresa. Era sobre a vida no teatro! 

Tio Mário: (interrompendo) O que eu queria mesmo era um papel no teatro! Se eu ganhar na loteria, vou ser ator famoso! 

Clara: (entrando com um olhar de reprovação) E se você ganhar na loteria, Tio Mário, você vai comprar um par de sapatos novos primeiro? 

Tio Mário: (com um sorriso) Sapatos? Para quê? Para ficar em casa? 
 
CENA 2: O ALMOÇO 

(Durante o almoço, Dona Teresa serve um prato de feijão e arroz, enquanto os hóspedes discutem animadamente.) 

Dona Teresa: (colocando o prato na mesa) Aqui está: feijão com arroz, o verdadeiro banquete da pensão! 

Seu Joaquim: (mordendo o feijão) Ah, Dona Teresa, este feijão é tão bom que eu poderia jurar que você tem um chef escondido na cozinha! 

Dona Teresa: (piscando) Tenho sim. Ele se chama "meu marido". Mas ele não cozinha desde 1980! 

Mariana: (rindo) Então, se você não tem um chef, você é a chef ou a "chefa"? 

Dona Teresa: (com uma expressão de orgulho) Sou a chefa! E não aceito reclamações, a menos que sejam sobre o feijão frio. 

Clara: (murmurando) Se o feijão estiver frio, eu vou reclamar! 

Tio Mário: (levantando a mão) Eu tenho uma ideia! Vamos fazer um concurso de quem consegue comer mais feijão! 

Mariana: (brincando) Isso vai acabar em uma competição de flatulência! 

(Todos riem, exceto Clara, que faz uma cara de desgosto.) 
 
CENA 3: O JOGO DE TABULEIRO 

(Após o almoço, os hóspedes se reúnem na sala para jogar um jogo de tabuleiro. O clima é descontraído.) 

Dona Teresa: (distribuindo as peças) Então, quem vai ser o banqueiro? 

Tio Mário: (levantando a mão) Eu! Afinal, estou esperando a minha grande chance! 

Seu Joaquim: (com um sorriso) Espero que você tenha mais sorte aqui do que na vida real! 

Mariana: (sorrindo) Vamos ver se você consegue ganhar algo além de um sorriso! 

(O jogo começa, e logo a competição esquenta.) 

Clara: (reclamando) Não vale! O Tio Mário está trapaceando! 

Tio Mário: (fazendo cara de inocente) Eu? Nunca! Estou apenas... ajustando as regras! 

Dona Teresa: (rindo) Ajustando as regras? Você quer dizer "mudando as regras conforme sua necessidade"? 

Seu Joaquim: (apontando) Isso soa como uma ótima estratégia para a vida, não é? "Mude as regras e ganhe sempre!" 

Mariana: (pensativa) E se a vida fosse um grande jogo de tabuleiro? Eu escolheria ser uma peça colorida! 
 
CENA 4: A NOITE 

(À noite, os hóspedes se reúnem no terraço da pensão, onde Dona Teresa serve chá.) 

Dona Teresa: (observando as estrelas) Olhem essas estrelas! Lindo, não é? 

Mariana: (suspirando) Eu sempre quis ser uma estrela de teatro, mas acho que vou me contentar em ser uma estrela da pensão! 

Clara: (brincando) E quem disse que você não é? Você já tem um público fiel! 

Seu Joaquim: (levantando o chá) A um brinde, então! Às estrelas da pensão! 

Tio Mário: (interrompendo) Mas eu quero brinde à loteria! 

Dona Teresa: (rindo) Tio Mário, você e suas loterias! Um dia você vai ganhar, e quando isso acontecer, não esqueça de nós! 

Tio Mário: (sonhando) Claro! Vou comprar a pensão e transformar isso em um hotel cinco estrelas! 

Clara: (sarcasticamente) Com o feijão como prato principal, certo? 

(Todos riem e brindam juntos.) 

CENA FINAL: REFLEXÕES E RISADAS 

(Os hóspedes se acomodam nas cadeiras, conversando e rindo sobre suas vidas e sonhos.) 

Mariana: (pensativa) Sabe, acho que a vida é como esse jogo: cheia de surpresas e algumas armadilhas. 

Seu Joaquim: (com um sorriso) E o melhor de tudo é que, mesmo com as armadilhas, temos sempre uns aos outros! 

Dona Teresa: (orgulhosa) Isso mesmo! Aqui na pensão, somos uma família, mesmo que um pouco maluca! 

Tio Mário: (com um brilho nos olhos) E quem sabe um dia eu ganho na loteria e nos levo para uma viagem! 

Clara: (brincando) Desde que eu não tenha que comer mais feijão! 

(Todos riem, enquanto as luzes se apagam lentamente, deixando a cena com uma sensação de calor e camaradagem.) 
 FIM 
Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Olavo Bilac (A borboleta negra)

Madrugada de domingo no campo, longe da cidade. Logo à primeira claridade do dia, saem os dois de casa, com o Leão, seu companheiro inseparável.

O Leão é quase tão alto como eles. É um enorme cão da Terra Nova, todo negro, de pelo espesso, de goela imensa. É o terror do lugar. Quando ele passa na estrada, acompanhando as duas crianças, rosnando ameaçadoramente, todos se afastam com respeito. E, assim seguidos de perto pelo Leão, Henrique e Leonor estão mais livres de qualquer perigo do que se estivessem guardados por todo um exército.

Amanhecer de domingo. Longe, repica o sino da capela, anunciando a segunda missa. Ainda não saiu o sol.

O vento da manhã sacode as árvores molhadas de orvalho. Nos galhos altos, trilam os pássaros. O ar está cheio do aroma forte dos matos. Passam homens cantando. E o sino da capelinha, cujo repique tem a alegria ruidosa de uma risada de criança, continua a anunciar a missa.

Mas, Henrique e Leonor já foram à primeira missa. As duas crianças agitam no ar os seus grandes sacos de caçar borboletas. Henrique, que é quem carrega a tiracolo a bolsa em que vai o pão da merenda, sabe de um lugar em que há flores de toda espécie. Fica para lá da igreja: é uma pequena clareira dentro do mato, atapetada de uma relva fresca. Aí, onde o sol entra livremente, as borboletas voam, todo o dia, sugando o mel das flores, vibrando as asas rutilantes, azuis, vermelhas, douradas. É para lá que vão os três. 

Leão trota na frente, pesado e enorme, sacudindo a grossa cauda negra. Às vezes, volta, vem lamber as mãos das crianças, e trota de novo, alegre, com a língua pendente e as orelhas abanando. 

Lá vão eles... o sol ainda não saiu. Mas, já entre as nuvens cor de fogo, no nascente, aponta uma claridade viva, que ofusca. Das árvores, caem ainda, como diamantes soltos, os pingos do sereno. E Henrique diz, tiritando:

— Como fez frio esta noite, Leonor!

E tiritando, diz Leonor:

— Coitado, coitado de quem, sendo pobre e não tendo casa, teve de passar esta noite ao relento!...

E lá vão os três.

Já passaram a igreja, muito branca, muito pobre, posta, no alto de uma ladeira íngreme. Viram, na pequenina janela, rodar o sino, cantando, cantando sempre. Viram muita gente, à porta, esperando o padre... e seguiram. De repente, Henrique para:

— É aqui! — diz ele, e aponta uma picada aberta no mato — Olha, Leonor, olha! Já uma borboleta!

Uma borboleta grande, azul, riscada de ouro, saía, dançando no ar. Leonor bate palmas:

— Que linda! Que linda!

E Henrique exclama:

— Vais ver que porção de borboletas há lá dentro, Leonor!

E vão entrar. E Leão adianta-se, e dá dois passos no caminho estreito e escuro, rasgado no seio da folhagem. Mas o cão estaca. E começa a ladrar, a ladrar, a ladrar, furiosamente, perto de um embrulho que está no chão. As crianças aproximam-se, abaixam-se. 

É um embrulho  de panos e flanelas. Alguma coisa agita-se dentro dele. E, quando o Leão deixa de ladrar, as crianças ouvem um gemido muito fraco, muito fraco, que sai da trouxa, toda ensopada de orvalho. Trazem-na para o meio da estrada, com cautela. Abrem-na. 

O sol já saiu. Que sol! O céu, todo azul, está inundado de luz. O sino continua a repicar. Nos galhos altos os pássaros cantam.

— Jesus! É uma criança! — exclama Leonor.

É uma criança recém-nascida que está dentro do embrulho de flanela, é uma criancinha preta, vagindo de manso, de manso, com os olhinhos fechados. Leonor, sentada no chão, põe no colo a criaturinha de pele preta, e começa a embalá-la, já com a seriedade de uma mulher feita: — Coitadinha! Coitadinha!

Henrique, muito sério, está de pé. Henrique é um homem... só tem 9 anos, mas é um homem! E um homem não deve chorar... mas Henrique está chorando, olha a criancinha preta que vage de manso, no colo da irmã. O Leão, curvado, sem ladrar, sacudindo a cauda, com a língua pendente, está também olhando a recém-nascida, com seus grandes olhos inteligentes e carinhosos.

— Coitadinha! Coitadinha! — repete Leonor.

— Que maldade! Que maldade! — murmura Henrique.

Então Leonor tem uma ideia:

— Henrique, vamos fazer uma surpresa à mamãe! Vamos levar-lhe esta pretinha! 

Henrique dá um salto de alegria:

— Vamos Leonor!

E Leonor levanta-se, acomoda no colo o embrulho de panos e flanelas. Henrique apanha os dois grandes sacos de caçar borboletas. O Leão solta um latido de júbilo. E lá vão os três, correndo, pela estrada inundada de sol.

Adeus, borboletas azuis, vermelhas e douradas! Adeus borboletas de todas as cores, que estão bailando no ar, sobre as flores cheirosas e doces! Podeis bailar em sossego! Aqueles dois grandes sacos de gaze, que vinham buscar-vos, voltam para a casa vazios! Deixam-vos em paz, os caçadores! Não pensa em vós Leonor, que vai correndo, correndo, segurando com cautela aquele embrulho, dentro do qual há uma criancinha preta que chora... não pensa em vós Henrique, que corre atrás dela, calado e ofegante... não pensa em vós o Leão, que trota na frente, rosnando, enorme e pesado, com a língua pendente e as orelhas abandando... Podeis bailar em sossego! Hoje, Henrique não subirá, como um macaco, aos galhos altos das árvores, para apanhar os frutos e os ninhos. Hoje, Leonor, cansada de apanhar borboletas, não merendará sobre a relva. Hoje, Leão não dormirá a sua sesta, ao sol, nessa clareira aberta no mato...

Lá vão os três. Ainda passa muita gente que vai a missa. O sino ainda está lá, num repique festivo, chamando o povo. Passa muita gente... Mas os três não dão bom dia a ninguém. Vão correndo, vão correndo, porque querem fazer quanto antes uma surpresa à mamãe. E quando chegam à casa, diz Leonor:

— Devagarinho! Devagarinho!

Entram, como três ladrões. A casa está calada e quieta. A mamãe está com certeza na cozinha. Na varanda, Leonor senta-se, ajeita nos braços a criancinha, e fica a embalá-la, com a seriedade de uma mulher feita. E Henrique e o Leão correm para a cozinha. E, enquanto o cão salta e late, Henrique exclama:

— Mamãe! Mamãe! Venha ver uma borboleta negra que caçamos no mato!

Quando a mãe chega à varanda, para à porta, espantada, Leonor, com a voz trêmula, pergunta:

— Não é verdade, mamãe, que não podíamos deixar morrer de fome esta coitadinha? Que mãe malvada, mamãe! Que mãe malvada, que preta malvada a que abandonou assim esta filhinha! Não é verdade que mamãe também vai ser mãe dela?

— É verdade, minha filha! — diz a mãe. — Foi Deus quem conduziu vocês... Fizeram bem! Fizeram bem! O pão da nossa pobreza há de chegar para mais um filho.

E tomou nos braços a criancinha negra, única borboleta que Henrique, Leonor e o Leão caçaram nesse dia.
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OLAVO BILAC nasceu em 1865, no Rio de Janeiro/RJ. Cursou Medicina, abandonou o curso, tentou estudar Direito, também não concluiu, e passou a escrever para jornais cariocas. Em 1888, publicou seu primeiro livro - Poesias. No entanto, Bilac era firme em seus posicionamentos políticos e discordava do governo de Floriano Peixoto. Por fazer críticas a ele, foi preso em 1892 e também em 1894. O início do regime republicano, portanto, não foi muito agradável para o poeta. Em 1897, fundou, com outros intelectuais, a Academia Brasileira de Letras e ocupou a cadeira de número 15, cujo patrono é o escritor romântico Gonçalves Dias (1823-1864). No ano seguinte, passou a trabalhar como inspetor escolar. A partir daí, o escritor empreendeu uma campanha em prol do nacionalismo, e, inclusive, escreveu a letra do Hino à Bandeira, além de ter defendido o serviço militar obrigatório. Morreu em 1918, no Rio de Janeiro, deixando certo mistério sobre sua vida íntima. Nunca se casou. Um poeta parnasiano, crítico e nacionalista, mas, ao mesmo tempo, boêmio e libertário. Um homem rigoroso e prático, mas que tinha, possivelmente, uma alma romântica. Enfim, um indivíduo complexo, detentor de uma genialidade que o consagrou como Príncipe dos Poetas. 

Fontes:
Olavo Bilac e Coelho Neto. Contos pátrios para crianças. Publicado originalmente em 1931. Disponível em Domínio Público. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Jerson Brito (Asas da poesia) 12


 

Antonio Juraci Siqueira (Sina)

Águas de Março. Dilúvio equatorial engolindo a várzea. Na imensa e imersa paisagem líquida o homem agiganta-se na luta pela sobrevivência. Tudo se torna difícil sob o domínio absoluto das águas. A caça, vasqueira. O peixe e o camarão sumiram como por encanto. O açaí, em início de safra, mal começou a pretar. A fome ronda as cabanas erguidas sobre estacas às margens dos rios. Rios prenhes de solidão e de incertezas onde a esperança passa de bubuia à procura da tábua da salvação.

Em silêncio um casco desliza igarapé acima. Mãos ágeis manejam o remo enquanto olhos atentos varrem as copas dos açaizeiros em busca dos frutos da redenção. A safra promete ser generosa: árvores carregadas de cachos; uns verdes, outros na floração, mal saídos das fofóias (capa de proteção dos cachos de açaí). Os poucos que vão amadurecendo são disputados por periquitos e araçaris.

Venâncio, nascido e moldado sob o jugo dessa realidade, mantém estreita relação com o meio. Conhece, como a palma da própria mão, cada curva de rio, cada enseada, cada igarapé, cada barranco, cada árvore. Nutre particular afeição pelos açaizeiros e trata-os como extensão de sua família. Daí não ter aderido à exploração palmito, responsável pela dizimação de açaizais inteiros. Não atinava como um palmo de talo salobro, vendido por míseros centavos, pudesse valer mais que todo o açaí produzido durante anos a fio por uma única árvore. Não atinava.

Estanca o casco bruscamente e apura o olhar entre a folhagem: um grande cacho, ainda não totalmente preto, parece sorrir-lhe do alto. Encalha o casco na ribanceira e caminha, afoito, rumo à touceira de açaizeiros a poucos passos da margem do igarapé. Para subir providencia uma peconha entrelaçando folhas de açaizeiro e, em seguida, aplica golpes de terçado no chavascal que envolve a touceira, ação preventiva conta a presença de cobras e outros animais peçonhentos que costumam aninhar-se nesses locais. Ajeita a peconha nos pés, enfia o cabo do terçado no cós do calção, abraça-se à árvore e começa subir. 

Já a conhece de outras safras; a cada ano vai ficando mais alta e flexível, enquanto que ele, mais pesado e lento. Vencido mais da metade do percurso o açaizeiro começa a vergar perigosamente. Uma rajada de vento faz a árvore inclinar-se ainda mais, obrigando-o a recuar estrategicamente. O cacho de açaí, a poucos metros, acena-lhe, desafiador. Precisa dele para garantir o pirão das crianças. Pensa nelas. Um menino e duas meninas. Pensa na companheira grávida, em véspera de parto, e ganha forças para continuar. 

A ventania amaina. Recomeça a escalada, vence mais uns metros. Nova refrega, novo recuo. A altura é considerável. Olha para baixo e vê o igarapé como uma boiúna gigantesca serpenteando entre o matagal. Seus pés doem pressionados pela peconha e suas pernas, antes firmes, agora já tremem um pouco. Lembra do irmão mais velho, morto ao cair de um açaizeiro nas mesmas circunstâncias. Pensa em desistir. No meio da safra não se arriscaria tanto. Agora a situação é outra: ir até o fim ou voltar para casa de mãos abanando. 

Apega-se à Nossa Senhora de Nazaré e vence, com rápidas braçadas, os últimos metros que o separam de seu objetivo. O arco atrás de si denuncia o limite máximo de resistência da árvore. Rápido e preciso retira o facão do cós do calção e golpeia a extremidade da munheca do cacho, arrancando-o da haste com a mão esquerda. 

Como um raio escorrega até o meio da árvore que, livre do peso, volta à posição original. Trêmulo, suando frio, respira aliviado. O coração ainda bate forte mas já não há o que temer. Desce, agora sem pressa, até tocar o chão. Livra-se da peconha e firma o peso do corpo no chavascal. 

Sente algo mover-se sob seus pés. Sente a picada. Uma dor fina, lancinante, indescritível percorre-lhe o corpo, do calcanhar à nuca. Rodopia sobre si mesmo e projeta-se ao solo sobre o cacho de açaí...

O Sol ainda vai alto mas os olhos de Venâncio, repentinamente anoitecidos, já não carecem de luz. Já não podem ver o rio, a mata, a jararaca esgueirando-se sorrateiramente entre a folhagem, nem a revoada de periquitos e araçaris que vieram prestar-lhe a última homenagem.
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ANTÔNIO JURACI ALMEIDA SIQUEIRA nasceu em Afuá, no Pará, em 1948. Escreveu diversas obras literárias, entre elas merecem destaque, O Chapéu do Boto (2003), Paca, Tatu; Cutia não! (2008), e Aumentei, Mas Não Menti (2016). Seus poemas, contos e trovas são principalmente inspirados no folclore, nas crenças e saberes populares e pela natureza amazônica. Popularmente ele é conhecido como "o boto" ou o poeta "filho do boto". Em 1978, e foi morar em Belém. cursou Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal do Pará, atua como instrutor de oficinas literárias, artista performista, contador de histórias, e leciona filosofia na rede pública de educação paraense. É considerado um dos poetas mais prolíferos da região Norte do Brasil. Seus trabalhos variam entre publicações de livros de literatura infantojuvenil, literatura de cordel, livros de poesias, contos, crônicas e textos humorísticos. Todo esse trabalho rendeu-lhe cerca de 200 premiações em concursos literários de diversos gêneros, tanto no âmbito nacional, quanto no estadual.

Fontes:
Blog do Boto Juraci
https://blogdobotojuraci.blogspot.com/2008/10/sina.html
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Eduardo Martínez (Papai e a caixa de gordura)

Sou o caçula lá em casa, apesar de já não ser tão pequeno assim. Estou com quase doze anos ou, como um tio carioca fala, "douze". Acho engraçado, pois ele nem percebe que fala assim, tamanha a naturalidade. Por falar nesse meu tio, ele também não sabe ou não quer pronunciar mesmo, mas "mermo".  Prefiro nem corrigir o gajo, ainda mais porque ele é metido a escritor. 

Gente, por que estou falando do meu tio? A ideia inicial não era essa. É que quero contar uma coisa que aconteceu há poucos dias, e que levei três dias para me livrar do fedor.

Sabe caixa de gordura? Pois é, de vez em quando, meu pai limpa a daqui de casa. Que nojo! Então, sempre que percebo que ele está separando os apetrechos para limpá-la, trato de me esconder. Mas eis que, na semana passada, o meu velho me pegou distraído.

— Gabriel, vem cá me dar uma mão.

— Ah, pai, tô ocupado.

— Ocupado? Tu tá aí de bobeira no sofá, que eu sei.

Sem ter desculpas para inventar, tive que encarar a tarefa de ajudar papai. Mas que ele não viesse com a ideia de querer me fazer meter a mão naquela gordura com cheiro repugnante. Eca!

 — O que foi, pai?

 — Traga a mangueira até aqui. 

 Fiz o que meu pai mandou e quis entregá-la. Meu velho me olhou com uma cara de nenhum amigo.

 — Gabriel, não tá vendo que tô com as mãos ocupadas?

 — Hum...

 — Hum o quê?

 — Nada.

 — Ligue a mangueira e jogue água dentro da caixa de gordura. 

 Meu pai, que já havia transferido quase toda aquela gosma da caixa de gordura para um balde ao lado, ficou observando a minha lerdeza. Finalmente, liguei a torneira. Não tardou, a água começou a sair forte que nem ducha.

 — Gabriel, aponte a mangueira pra caixa de gordura!

 — Tô tentando, pai!

 — Gabriel, você tá me molhando todo!

 Era verdade. Meu pai parecia ter saído de um temporal, pois eu, com o estômago embrulhado por conta daquele cheiro horrível vindo principalmente do balde ao lado, não conseguia direcionar a mangueira de modo certeiro. 

— Num vai vomitar em mim, não!

Nunca papai foi tão profético. O vômito saiu como cachoeira sobre os negros cabelos do meu pai. Era possível ver nitidamente dois ou três grãos de milho no cocuruto do meu coroa. Furioso que ficou, papai perdeu qualquer noção de racionalidade. Sabe o que ele fez? Pois acredite, ele fez mesmo! Despejou todo o conteúdo do balde sobre os meus lindos cabelos. Pode uma coisa dessa?

Mamãe, quando viu, quis brigar com meu pai. No entanto, não sei o que deu nela, pois desandou a gargalhar diante do estado de calamidade que ficou minhas lindas madeixas. Pior foi a minha irmã quando soube. Não perdeu a oportunidade de me apelidar de Gabriel Gordurinha. Ainda bem que o apelido não pegou, se bem que, vez ou outra, meu tio, aquele mesmo que só fala “douze” e “mermo”, me chama assim. 

Tive que gastar dois frascos inteiros de xampu e quatro sabonetes para me limpar. Pode parecer engraçado para você, mas juro que, ainda hoje, cada vez mais próximo ao meu aniversário, ainda sinto aquele fedor. Não tenho mágoa do papai por conta do que fez, mas creio que ele pegou pesado demais comigo naquele dia.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2025

José Feldman (Guirlanda de Versos) * 20 *

 

Eduardo Affonso (Rádio Montanheza, ZYV-4)

Não queiras gostar de mim sem que eu te peça.

O pedido, por vezes, emergia do rádio, mas normalmente vinha mesmo da minha mãe, e sua voz serena, afinada, tomava a casa, invadindo-a – e a mim, e a minha vida – a partir do quarto de costura, da cozinha, do quintal.

Eu não entendia os adultos. Por que nem às paredes ela podia confessar de quem gostava?

As canções eram uma passagem secreta para esse mundo que me esperava quando eu tivesse menos cabelo, fosse indiferente às crianças e conseguisse amarrar meus próprios cadarços.

Eram elas que me alertavam que la distancia hace el olvido, que esa paloma no era otra cosa más que su alma, que tengo miedo a perderte, perdete outra vez, que solamente una vez amé en la vida (solamente una vez, y nada más).

Eu ainda não sabia o que eram os idiomas, e achava bonito aquele jeito de falar uma palavra conhecida em meio a tantas outras inventadas – um truque que, soube depois, se chamava mexicano, e vinha de Cuba, da Argentina, de Acapulco (Acapulco era o lugar mais lindo do mundo, logo depois do Rio de Janeiro).

O rádio (imenso, de madeira, grandes botões roliços, no centro um palmo de tecido de xadrez miúdo, parecendo uma cortina prestes a se abrir), ficava na cozinha. Eu o arrastava ao quarto de costura, à janela que dava para a varanda, e aí me percebia que meu coração (un corazón de melón, de melón melón melón) batia em ritmo de bolero, de rumba, de samba-canção.

A música se misturava à vida. Era a vida.

Quando o carteiro chegou, e seu nome gritou, com uma carta na mão, minha mãe lavava roupa no quintal. Risque meu nome do seu caderno – minha mãe varria a casa – eu não suporto o inferno – estendia camas – do nosso amor fracassado. Que queres tu de mim? (minha mãe temperava o feijão) que fazes junto a mim? (minha mãe descamava as sardinhas) se tudo está perdido, amor? (minha mãe refogava coxas, sobrecoxas, aposta). Você há de rolar como as pedras que rolam na estrada – minha mãe com o ferro de passar – sem ter nunca um cantinho de seu pra poder descansar.

Enquanto o planeta pulsava iê iê iê, eu queria a rosa mais linda que houver, e a primeira estrela que vier, para enfeitar a noite do meu bem.

Nunca soube o que ia dentro da minha mãe, dos sentimentos que nem às paredes ela confessava. Mas inventei que dentro do rádio havia pessoinhas miúdas (do tamanho dos índios e cowboys que vinham nos vidros de Toddy), e que se a cortina xadrez se abrisse de repente (um dia se abriria), eu os veria – Dolores Duran, Ângela Maria, Dalva e Herivelto, Trio Los Panchos – de vestido vermelho, de sombrero, em seu mundo de miniatura feito de desenganos, desditas, perfídias e ilusões.

Eu não queria ser adulto, para querer quem não me quer, e quem me quer mandar embora. Para ter de me perguntar o que será da minha vida sem o teu amor, da minha boca sem os beijos teus, da minha alma sem o teu calor. Seria como eu era para sempre, sem saber que a deusa da minha rua tem os olhos onde a lua costuma se embriagar, sem me importar se Conceição vivia no morro a sonhar com coisas que o morro não tem, sem amanhecer pensando em ti, anoitecer pensando em ti, sem me cansar de pra você não ser ninguém.

Mas a vida veio e levou a voz de minha mãe (qué bonitos ojos tienes, debajo de esas dos cejas), o rádio do meu avô (por que não paras, relógio?), os lábios que beijei, mãos que eu afaguei (as mãos salpicadas de branco de minha avó), e a diminuta Dalva (tudo acabado entre nós, já não há mais nada) para trás do tecido xadrez que nunca se abriu.
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EDUARDO AFFONSO, arquiteto mineiro de Belo Horizonte/MG, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique.

Fontes:
Blog do Eduardo Affonso. 30 janeiro 2025.
https://tianeysa.wordpress.com/2025/01/30/radio-montanheza-zyv-4/
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Abbie Phillips Walker (Festa na casa do sr. Raposo)

O Sr. Raposo era frequentemente perturbado pelo Sr. Cão e seu dono, então ele decidiu se mudar para o primeiro andar da floresta em vez de morar no andar térreo. Uma noite, ele olhou em volta ao luar e, para sua alegria, descobriu o lugar que queria morar.

Era uma casa construída nos galhos de uma grande árvore. Alguns meninos provavelmente haviam construído no ano anterior. 

“Com alguns reparos aqui e ali, esta será a casa mais bonita da floresta”, disse Raposo satisfeito.

Então ele foi procurar tudo o que precisava para tornar sua casa confortável longe do Sr. Homem. Ele até encontrou uma velha chaminé para manter seu fogão queimando bem. E em poucos dias, o Sr. Raposo contou a todos os seus amigos sobre sua nova casa e os convidou para uma festa em casa.

O Sr. Cobra, o Sr. Rato de Bolsa e o Sr. Esquilo não se incomodaram quando descobriram que a nova casa do Sr. Raposo estava na grande árvore. Mas o Sr. Coelho e o Sr. Texugo pareciam muito tristes e disseram que não aceitariam o convite amigável do Sr. Raposo, por mais que quisessem. Eles não podiam subir na árvore.

O Sr. Raposo pegou uma escada emprestada do Sr. Homem, e quando o Sr. Coelho e o Sr. Texugo disseram que não poderiam vir, ele percebeu que teria problemas para entrar em casa, especialmente se estivesse com pressa. Então ele decidiu que o Sr. Homem provavelmente não precisava da escada tanto quanto ele e que a escada seria uma boa adição à sua casa.

Quando ele contou ao Sr. Texugo e ao Sr. Coelho sobre a escada, eles decidiram ir, afinal, e uma noite, quando a lua estava brilhando, todos os animais iriam à casa do Sr. Raposo para comer. O Sr. Raposo achou que gastaria menos dinheiro se desse sopa aos convidados, então pegou todos os ossos que havia recolhido e os colocou em uma panela no fogão para cozinhar.

A fumaça subia de sua chaminé e espalhava o delicioso aroma de sopa. O Sr. Cão, que por acaso estava correndo pela floresta, viu a fumaça e sentiu o cheiro delicioso. Ele abanou o rabo e olhou para a casa na árvore. Então ele uivou e arranhou a árvore e, ao contorná-la, com os olhos fixos na casa o tempo todo, esbarrou na escada.

“Ah, que sorte!” ele disse, subiu e foi até a casa do Sr. Raposo, onde tirou a tampa da panela.

Levou menos de um segundo para tirar a panela do fogão, despejar a sopa na pia e deixar os ossos esfriarem. Então ele teve um delicioso banquete. Ele comeu até ficar sonolento, depois deitou no chão e adormeceu. O Sr. Cão não sabia que o Sr. Raposo morava naquela casa. Não que tivesse medo dele, mas teria dormido com um olho aberto para poder agarrá-lo.

O Sr. Raposo vagou pelas colinas, procurando um peru ou uma galinha perdida, e só voltou para casa quase anoitecendo. Subiu a escada correndo sem acender a luz e foi direto ao fogão ver como estava a sopa. Então ele tropeçou no Sr. Cão. O Sr. Cão deu um pulo com um latido rouco. O Sr. Raposo fugiu o mais rápido que pôde, mas não usou a escada, pulou pela janela e quase quebrou o pescoço. O Sr. Cão latiu ferozmente para ele.

O Sr. Raposo não parava de correr, e o Sr. Cão, pensando nos ossos que ainda não tinha comido, afastou-se da janela e atirou-se sobre os ossos. Enquanto ele ainda comia, chegaram os primeiros convidados da festa. O Sr. Cobra não precisava da escada para entrar, nem o Sr. Rato de Bolsa. O Sr. Esquilo não teve problemas para escalar. Mas eles pensaram que seria indelicado ir de qualquer outra maneira.

O Sr. Rato de Bolsa subiu a escada primeiro, seguido pelo Sr. Cobra. Então o Sr. Texugo e o Sr. Coelho subiram, enquanto o Sr. Esquilo subiu correndo a escada. Quando estavam na metade do caminho, o Sr. Cão, que ouviu barulho do lado de fora, foi até a porta. Ele deu a eles a maior surpresa de suas vidas, mas ele próprio ficou tão surpreso que nem latiu a princípio.

Depois que ele se recuperou do choque, ele saiu pela porta latindo. Mas o Sr. Cão não estava acostumado a descer uma escada e, no primeiro degrau, escorregou e caiu. Os convidados pularam imediatamente quando o Sr. Cão latiu, mas ainda não haviam saído do caminho quando o Sr. Cão caiu em cima deles. Junto com o Sr. Cão, o Sr. Rato de Bolsa, o Sr. Cobra e o Sr. Texugo caíram.

O Sr. Esquilo pulou em um galho da árvore e não se intimidou com a provação. Ele disse que era a visão mais engraçada que já tinha visto e tinha uma bela vista de onde estava sentado. Mas o Sr. Coelho disse que tinha certeza de que sua perspectiva era a melhor porque ele estava mais próximo da base da escada quando a queda começou. Ele tinha acabado de sair do caminho a tempo quando todos caíram no chão.

“Não dava nem para ver quem era quem, era um caos”, disse o Sr. Coelho, que mais tarde conversou sobre isso com o Sr. Esquilo.

Demorou muito para o Sr. Raposo convencer os convidados de que não pretendia receber o Sr. Cão em sua festa em casa. Mas quando o Sr. Esquilo disse a eles que realmente foi o Sr. Cão que comeu os ossos do chão e limpou a panela sem o Sr. Raposo saber, eles finalmente perdoaram o Sr. Raposo. O Sr. Raposo decidiu que o andar térreo era o mais seguro para ele, afinal. Quando ele se estabeleceu novamente, ele deu uma nova festa em casa, mas desta vez, o Sr. Cão não estava lá, felizmente.
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ABBIE HOXIE PHILLIPS JACOB WALKER foi uma autora americana conhecida por suas contribuições cativantes para a literatura infantil no início do século 20. Nascida em Exeter, Rhode Island, Estados Unidos, em 1867. Walker cultivou um estilo que envolvia o caprichoso e o didático, com o objetivo de entreter e instruir as mentes jovens. Grande parte da escrita de Walker está encapsulada em sua deliciosa coleção de histórias para dormir intitulada 'The Sandman's Hour: Stories for Bedtime', que foi publicado em 1916 e despertou a imaginação de inúmeras crianças ao longo das gerações. Nesta antologia, Walker exibe uma propensão para elaborar contos imbuídos de um senso de admiração e lições morais, adaptado para mandar as crianças dormir com sonhos inspirados em suas proezas narrativas. Seu estilo literário muitas vezes espelha a tradição oral de contar histórias, com uma qualidade lírica que ecoa a atemporalidade dos contos populares. A abordagem sutil de Walker ao tecer contos que falam tanto da inocência da juventude quanto da sabedoria buscada pelas mentes em crescimento tornou suas obras clássicos duradouros no domínio da literatura infantil. Embora informações biográficas detalhadas sobre Walker sejam relativamente escassas, seu corpo de trabalho continua a falar de seu legado como autora cujas histórias embalaram e inspiraram, muito parecido com o Sandman homônimo de seu livro mais conhecido. Faleceu em 1951.

Fontes> 
Abbie Phillips Walker. Contos para crianças. Disponível em Domínio Público.
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quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Adega de Versos 124 : Solange Colombara

 

Silmar Bohrer (Croniquinha) 129

Historicamente as civilizações surgiram pequenas, humildes, sem posses ou riquezas. Desembarcamos neste campo grande sem nada. Adaptamos.  Vamos em busca daquilo que a essência pede.  À luta.  Ganhos e perdas. Provamos da doçura e do amargor da existência. Capitulamos?  Não desistimos. Seguimos sorvendo do cálice agridoce da vida.

Se o tempo é "o que existe, inexistindo", vamos atrelados ao calendário em busca das manhãs serenas, das tardes açucenas, dos dias embebidos de alumbramento. 

Para onde?  Quem sabe?  Quem?  Seguimos bebericando momentos fugazes sondando o Destino que leva ao outro lado  do porto de chegada.  

E divagando a gente lembra Eduardo Galeano:  "A utopia está no horizonte. Me aproximo dois passos ela se afasta dois  passos.  Caminho dez passos e o horizonte  corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia ? Serve para isso : para que não deixe de  caminhar ".
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SILMAR BOHRER nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fontes:
Texto enviado pelo autor.
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