sábado, 29 de dezembro de 2012

Raquel Ordones (Poemas em Gotas)


NOVO ANO

Momentos não esperam por mim, nem por ninguém
A carga perante a vida é individual, é intransferível
Você é capacitado para escrever sua história, além
Respeitando os demais, sem julgar,e sendo flexível.

Ame sempre, sem esperar que o dígito do ano mude
A vida é processo contínuo, não faz pausa nesse dia
Olhe a sua volta sempre,em caso de precisão, ajude
Não tenha esperança que o “ano novo” traga alegria

As perspectivas do novo ano podem começar agora
A esperança é sua,está dentro de você não nos dias
Se obrigue a ser feliz,buscando esse feito toda hora.

“Ano novo” é fábula, afinal os algarismos só sobem
É só um “novo ano” que vem para dividir os tempos
Os dígitos dizem: Serão menos os seus momentos!

QUERO FUGIR COM AS FLORES

Ao passar pelo jardim, que as flores me acompanhasse
Que todas elas sorrissem e que juntas fugissem comigo
Fizessem em volta de mim uma roda, que eu a olhasse
No fundo da pétala onde o perfume se deita em abrigo!

Que todas as flores dançassem ao vento ao meu redor
Que exalassem por toda minha alma a sua fragrância
Fizessem com que eu degustasse um toque de amor
E deliciar-me nesse momento de abissal importância!

Que as flores fujam comigo, quero fugir com as flores
E as borboletas não ficam fora da minha imaginação
E essa imagem está tatuada em cores no meu coração.

Quero flores; do jardim do lado e do jardim da frente
Quero as flores da alma dos seres em nuança de amor
Quero fugir com as flores no outono, inverno e calor!

ABISMAL

Há fundura insondável na solidão
Ruína que assola o corpo e a alma
É um habitar sem fim na escuridão
Oceano de aflição que não acalma.

O coração se descobre em alcantil
Há caos, despenhadeiro de tristeza.
Um matiz preto toma conta do anil
Toda fé é trucidada pela incerteza.

Noites contínuas do ser, falta de luz
Estrelas de emoções boas se apagam
É pregar-se transitoriamente na cruz.

Buraco bolado pela fraqueza interior
Há uma precisão de se jogar a pá fora
Agarrar pelas cordas firmes do amor!

O PODER DA PALAVRA

Feita em poesia a palavra se modifica
Inventa, relata, surpreende, faz sorrir.
Vem e traz agrado que no coração fica.
Verse o verbo na boa palavra a proferir!

O domínio da palavra descreve a carícia
Ouvida ou lida na hora correta traz paz
Pela veia se mistura ao ser; uma delícia.
Pelas profundezas, de tocar ela é capaz.

A palavra cantada aformoseia, até cura
Lida com a alma é parte do nosso mundo
Dita com o cerne para sempre se perdura.

Palavras acariciam, sustentam seu poder
Mas pode ser artilharia que abre a ferida
Algo que dá vida ou algo faz vida fenecer!

SEJA NATAL

Enfeite a árvore do seu viver
Mostre que o seu brilho reluz
Deixe o coração transparecer
Acenda seu pisca-pisca Jesus.

Decore o seu olhar com fulgor
Laço branco de paz na alma
Revele na expressão toda cor
Estenda sua mão que acalma.

E desembrulhe o seu coração
Doe presentes a todo mundo
Carinho, bondade e o perdão!

Dê amor, cace a reconciliação.
Use os estoques por toda vida
Vibre em guirlandas de oração!

...E A PRIMAVERA PARTE

A primavera se despede e o céu dança
Algumas pétalas continuarão a colorir
É eterna essa estação, jamais se cansa
Os raios de sol permanecerão a sorrir!

O cheiro se exalará por todos os ares
Odorante o verão que agora se inicia
Escrita na alma irá a todos os lugares
Primavera é perene musa da poesia!

Flores nascem e moram nos corações
Era que entra e sai leva e deixa pétala
Graça que é essência, exala emoções.

Nuanças e entretons; ornam ocasiões
Presente que nos toca a profundeza
No imo; viagem. Gosto de inspirações.

APENAS DESCULPAS

Sentada a porta: espero
Com o olhar a distância
Emoção pura, sem mero
Sentindo tua fragrância.

Sentada a porta: sonho
Com a tua volta, enfim
Cerne quase fica risonho
Vendo-te vir para mim.

Parada à porta da vida
Vejo escusa, nada mais
Desculpas são os sinais

O amor é sem desculpas
Quem ama somente ama
Justificação só engana!

VIOLETAS NA JANELA

Tons lilases eu vejo através da janela
Com um verde se mistura a paisagem
Combinam-se em matizes da aquarela
Vejo borboletas voando nessa imagem.

O ar toca a tez da pétala, voa cortina.
Um sopro de vento que adentra e beija
Encanta e causa o sorriso da menina
Uma delicada fragrância por ali adeja

Violeta em tons violeta me dá bom dia
Enfeita a janela e atinge minh’alma
Vejos-as; delas vêm algo que acalma.

Violetas fazem do meu imo um jardim
Expostas à janela são olhos da casa
Uma admiração que invade e dá asa!

SOU BARDA

Talvez isso já venha da concepção
Eu não me rememoro muito bem
Sinto que desde lá tive inspiração
E ela desde sempre comigo vem.

Quem sabe deixei alguma prova
Nas paredes do útero rabisquei
Uma palavra, um verso ou trova
Na alma um coração eu gravei?

Sou barda, sou poesia inacabada
Sou a escrevedora da minha vida.
No ato do verbo amar, concebida.

De Deus eu sou fruto exclusivo
Uma pluralidade única... Afinal
Escrevo: em mim é incondicional.

SER FORTE

Ser forte é chorar e a sua lágrima assumir
É manter-se de pé com imo em ventania
É sentir consternação e ainda assim sorrir
É enfrentar um combate e faz dele poesia.

Ser forte é abrir para qualquer um a mão
É dividir com saber aquilo de que possui
Ouvir em silêncio o que vem do coração
É renovar-se e acompanhar o que evolui.

Ser forte é deitar-se a espera do amanhã
No fim da tarde trazer o dever cumprido
Respeitar de cada um o espaço deferido.

Vestir-se de Deus e expor o amor de fato.
Usar menos físico e mais finura é ser forte
Viver feliz ciente do encontro com a morte!

SEMEAR-TE-EI AMOR

Em meu coração há uma semente
Que semeada em ti nasce uma flor
É simples, satisfaz-te ter em mente
Que adubes tua terra para o amor!

Arranque do cerne o que te faz mal
Comece a sorrir, sinal de solo bom
Abrace todo carinho incondicional
Apoie em quem avaliares ter dom!

Teu coração tornar-te-á um jardim
Perfumará a essência de tua alma
E tua beleza far-te-á ser de calma!

Em meio às pétalas e a fragrância
Saberá desvencilhar-te de espinhos
E serenará a dor dos teus caminhos!

CONVERTENDO-ME

O momento é esse; esse é o tempo certo.
De fazer um novo arranjo em minha vida
Tirar poeiras da minh’alma de imo aberto
Abraçar-me, me tornar mais esclarecida.

Rever conceitos sem perder a identidade
Acomodar os meus princípios ao mundo
Com respeito e acima de tudo a verdade
Não permitindo que me invada o imundo

Limpar os armários e gavetas do meu ser
Coloca-los em disposição mais confortante
O momento é esse, é esse o exato instante.

Deixar em minha bagagem o que preciso
Introduzir o hoje sem jogar o ontem fora
Arrumar-me ao novo no sempre do agora.

AMOR... ACESSO LIVRE!

Comecei a escrever um poema
Imaginei que já o havia escrito
Enleei-me; vi-me num dilema
Até que o contexto era bonito.

O poema falava do livre acesso
Do amor, inda resistido instala
Não acata nem aceita processo
Sem regra, grita e também cala.

É força além de nós; é soberano
Tem fragrância, rima com tudo
Tem sorriso largo feito oceano.

Capaz de fazer a tez suar paixão
É capaz de guilhotinar a guerra
Capaz de dividir meado do pão.

QUE SAUDADE DA FAZENDA!

A estrada, a poeira
Os empreiteiros na roça
O burro e a carroça
Sabiá na laranjeira
Na cerca uma parreira
Que saudade da fazenda
A mamãe tecia renda
Os porcos lá no chiqueiro
As galinhas no poleiro
Fim de semana na venda!

De manhã lá no curral
Leite direto na caneca
De sabugo a boneca
Uniformes no varal
Pendurado o avental
Que saudade da fazenda
A mamãe tecia renda
Papai plantava feijão
Dedilhava violão
Fim de semana na venda!

Bem acima um açude
As vacas fazem aguada
O chapéu, a cavalgada
Azul bolinha de gude
Aquele mascate rude
Que saudade da fazenda
A mamãe tecia renda
Cavalo e ferradura
Garapa e rapadura
Fim de semana na venda!

Pela manhã à escola
Ovo cozido e pão
Já feita toda a lição
Cadernos e a sacola
Recreio: jogo de bola
Que saudade da fazenda
A mamãe tecia renda
Fogão de lenha, o rango!
Quiabo, molho de frango
Fim de semana na venda!

Sol descia no horizonte
Luzinhas de vagalumes
As flores e os perfumes
Papai vindo lá na ponte
Trazendo água da fonte
Que saudade da fazenda
A mamãe tecia renda
A lua linda lá no céu
Brincava passando anel
Fim de semana na venda!

Tínhamos todo espaço
O boizinho de abacate
Cachorro que sempre late
Manga corria no braço
No cabelo aquele laço
Que saudade da fazenda
A mamãe tecia renda
Ao deitar a oração
Família é religião
Fim de semana na venda!

VIVER EM POESIA

Posso tentar explicar: viver em poesia é assim
Ter uma vida normal similar à de todo mundo
Estar ciente dos espinhos e apreciar o jasmim
Deixar fluir pela caneta sentimento profundo.

Viver em poesia é fazer de um verbo um verso
Converter esse verso em uma história sem fim
É percorrer com a imaginação todo o universo
Trafegar muito além dos limites visíveis, enfim.

Viver em poesia é mirar com olhos do coração
Mesmo sabendo que existe o mau e ele judia
É possuir alma inquieta em constante euforia.

Viver em poesia é gritar na grafia os segredos
É sentir sua verdade sendo tomada pelo leitor.
É se declarar. É pôr nas palavras todo o calor!

SOSSEGO

Não me importa que os raios do sol nasçam um por um
Que as manhãs cheguem taciturnas, bem de mansinho.
Não me implico com o silêncio matinal de jeito nenhum
Não me importa que antes das flores nasça um raminho!

Não me amola o tempo com o andamento que ele tem
Não me apoquenta a sequência tradicional das estações
O vento em seu ritmo manso aborda-me, só me faz bem.
Gosto da assiduidade com que me chegam às emoções!

Nada me influi que a manhã troque de turno com a tarde
Que os anoiteceres declinam singulares logo em seguida
Existe nisso tudo um encantamento, uma razão de vida!

Existe uma quietude que se perdeu no ambiente externo
Que tenta danificar nossa alma por mais que gritemos não
Não há sossego maior do que aquele que jaz no coração!

SER POETA

Ser poeta é permanecer em conexão
De todos os sentimentos e imaginação
De todas as senhas e suas revelações
De todos os arquivos e suas extensões

Ser poeta é tirar o sonho do anonimato
Não se importando com o seu formato
É digitar os versos, as estrofes e fatos
Em desenhos de rima e enviar relatos.

Ser poeta é ser real virtual, encantado
É digitar, e da mente não ser deletado.
É entusiasmo criador na vida anexado

Ser poeta é hakear o backup do coração
Em um clique, copiar e colar a expressão
Fazer da palavra aos olhos, uma emoção!

Fontes:
- http://raquelordonesemgotas.blogspot.com.br/2012_12_01_archive.html
- Formatação sobre imagem obtida em Orkugif.

Manoel Santos Neto (Universo Poético da Cidade de São Luís do Maranhão III)

O jornalista e escritor Erasmo Dias (1916-1981) foi um intelectual maranhense que se notabilizou não apenas por escrever textos que tratam do sentido da vida, da solidariedade, do amor, da amizade, da devoção à pátria, das angústias, das grandezas e heroísmos da natureza humana. Ele publicou obras hoje pouco conhecidas, nas quais refletiu a claridade de sua cultura e de seu talento literário. São textos que, na sua quase totalidade, espelham meio século de vida maranhense, e constituem, por isso mesmo, um testemunho e um documento. Erasmo Dias, esse autor que somente agora começa a ser resgatado por uma nova – embora ainda tímida - leva de estudos e pesquisas, é dono de uma formidável produção literária, na qual ele procura retratar a gente, a cultura, as ruas, os mistérios e as mazelas de São Luís.

Com a força de sua expressão poética, o escritor Nauro Machado, ajustado à fonte inspiradora de tantos outros amantes da cidade, compõe também uma homenagem especial a São Luís com os versos do poema Pão Maligno com Miolo de Rosas, publicada em livro homônimo. Esta não é a primeira vez que o poeta publica uma ode a São Luís, sendo que a diferença é ser uma única peça poética em 95 páginas. Antes, ele editou Lamparina da Aurora, que reúne cerca de 100 poemas sobre a cidade. Escrito em redondilha maior, Pão Maligno com Miolo de Rosas tem um significado marcante para Nauro que, na hora de expressar o amor pela terra natal, vai além do aspecto físico da cidade. “Tento mostrar São Luís não só em sua esfera arquitetônica, mas em sua atmosfera moral, a sua decadência”, afirma. Daí o título do livro, Pão Maligno com Miolo de Rosas, que resume a idéia de mostrar em versos as belezas e as mazelas da cidade. O poema, inicialmente, integrava outro livro, Trindade Dantesca, que traria três trabalhos do poeta. O desmembramento da obra começou com a publicação de A Rocha e a Rosca. Nas 95 páginas, o poeta recria em versos viscerais os caminhos da cidade que aprendeu a amar, apesar dos problemas vivenciados em seu cotidiano. O título resume o objetivo do livro: falar da magia e dos desencantos da Ilha.


“São Luís, meu universo,
como uma noturna faixa,
apregoando verme e verso
para a dor que em mim se racha,”

Diz em uma das estrofes do poema dedicado, à cidade e às netas Luísa e Júlia. A cada rima, o poeta reconstrói São Luís, com sua gente, cultura, ruas, belezas e tragédias.

“No Mercado, que é Central,
meu canto palafitou-se,
ó Gavião de pedra e cal,
cemitério que é tão doce” (...)

“Nas ruas de São Luís,
nas ruas do Precipício,
da Palma e também do Giz,
da virtude igual ao vício,”
.

Tanto quanto Erasmo Dias e Nauro Machado, outros maranhenses ilustres, e de produção recente, merecem ser objeto de releituras, como Bernardo Coelho de Almeida (1927-1996) e Lago Burnett (1929-1995). Aliás, Burnett, numa de suas crônicas antológicas, publicada no Sul do País, faz um formidável louvor a São Luís, lembrando que o tema da cidade e seus signos é um velho fascínio que transcende o universo da ficção literária para encontrar sólidas raízes na filosofia, nas artes plásticas e, obviamente, na arquitetura. Desde as cidades ideais de Platão à decantada Paris do século XIX, repensada por Walter Benjamin (1892-1940), através da obra de Charles Baudelaire (1821-1867), da Alexandria prostituída e cheia de odores de Lawrence Durrell (1912-1990) às labirínticas arquiteturas de Jorge Luís Borges (1899-1986), é possível reconstituir o inventário dos lugares por onde andaram o pensamento e a imaginação humanas, ao redimensionar, em grau maior ou menor de realidade, a sua organização espacial.


A Última Canção da Ilha
Lago Burnett

Trarei sempre verde
gaivotas e sal:
a lembrança não perde
a ilha inicial

Nem descuido as brisas
o mar de imundícies
(minhas pesquisas
bóiam às superfícies)

A obsessão do cerco
por ínvias águas
é o em que me perco
entre - agora - mágoas

Autêntico Atlântico
aleou-me todo
quanto de romântico
mergulhou-me em lodo

Oh! velas belas
ao ritmo transeunte
vosso, belas velas
que eu me unte

Trago-me à retina
de mastros e quilhas
cheia a sina
de todas as ilhas

Código pressago
de pássaro marítimo
na alma trago
canto e ritmo

Que é quanto me sobre
por ter-me feliz
ao sol que encobre
minha São Luís

Onde era só
com hábil engenho
quanto virou pó
tudo que não tenho

Idéias descalças
desfiando saias
longas como valsas
pelas praias

A primeira estância
ao céu abstrato
coisas como infância
ritmando com mato

Outros poucos casos
como águas insípidas
nos olhos rasos
saudades líquidas

(Os Elementos do Mito / l953)

–––––––––-
Continua…
Fonte:
Suplemento Cultural e Literário JP Guesa Errante
Edição 116. 20 de janeiro de 2006

Raul Pompéia (A Mona do Sapateiro)

I

Ela servia bem...

Era redondinha, rosada, bonita. Sobretudo era nova, novíssima mesmo...

Uns dezesseis anos se tanto.

Fernando e Emílio espiavam-na. Viam-na à porta da lojinha do pai, o sapateiro Cândido, um Cândido preguiçoso, ébrio e pobre. Achavam tentadora, ó diabo! a melancolia da menina, com o rosto colado ao portal da loja, observando quem passava e seguindo com um olhar expressivo as mocinhas de sua idade que transitavam de carro, ou vinham pelo passeio, a pé, apanhando garbosamente a seda farfalhante das saias para não roçarem pelo vestidinho enxovalhado e sujo, que lhe caía dos quadris.

Não trabalhava quase a filha do sapateiro. A ociosidade do pai a escusava ante a própria consciência e a opinião pública, isto é, o veredict da vizinhança.

Demais, a Joaninha vivia desgostosa. O pai, quando se embebedava, (e isto era freqüente) maltratava-a muito, injuriava-a desabridamente; chamava-a descarada, cadela... Mortificava aquilo. E ela não tinha gosto pelo trabalho. Levava as horas num farniente lânguido, aborrecida, dissolvendo-se cm mórbida tristeza, ou erguendo castelos de ouro, sobre as suas ilusões de menina ambiciosa...

Fechava-se, por exemplo, num biombo escuro existente nos fundos da loja, seu quarto de dormir; despia-se de alguns dos panos mal asseados que a cobriam, e punha-se a olhar para o corpo. Um sorriso estranho ressaltava-lhe, palpitante e ardentes, as maçãs do rosto. Joaninha deitava timidamente olhares em roda de si, como a gazela, antes de mergulhar o focinho na fonte para saciar-se; depois, cheia de feminino orgulho, passava os dedos pela epiderme velutínea dos braços e do seio. Entretanto, segredava de si para si que não ficaria mal naquele corpo uma camisinha fresca, mole, transparente, toda enfeitada de rendas... Cingia o pulso com o polegar e o dedo médio, em forma de pulseira, e imaginava o efeito de uma argola de ouro luzente, cavando-lhe ali uma cintura na carne...

E nada tinha para si, além dos maus tratos do pai e dos galanteios de alguns vagabundos atrevidos!

Os castelos perdiam-na numa ficção azul, donde a realidade a tirava com uma violência semelhante à do menino que deixa voar a avezinha atada pelo pé, e puxa então o cordel para fazê-la bater no chão e atordoar-se.

Por mais cruel entretanto, que fosse a realidade, jamais se dissipava do cérebro da moça o pensamento de melhorar de condição no mundo, subir...

Tinha ouvido dizer uma vez que a mulher tudo alcança pela formosura. Ela não era feia. Consultara o seu pequeno espelho a esse respeito e vira lá dentro uma carinha a rir de satisfeita. Era chic, bem chic. Então de corpo!... Quem seria mais elegante do que ela? Que braços mais lindos do que os seus; que cintura mais bem talhada?...

Não era sem motivo que certo moço da vizinhança lhe dava tanta atenção. Este moço não passava pela porta da loja, quando ela aí estava, que não lhe deitasse um olhar significativo - não chegava à janela da sua casa, pouco distante da loja, sem verificar se havia certa pessoa à porta daquela sapataria...

Ela era querida. Ser querida, eis a questão. Joaninha sentia-se no princípio da carreira...

Quase sempre as suas meditações eram interrompidas pelo pai.

Ou ele entrava da rua com a cabeça aquecida e a língua ardente pela ação do álcool e gritava:

Oh, Joaninha!... Onde se meteu esta peste?!... Oh, endemoninhada!...

Ou, sem estar embriagado, sentia acessos de amor paternal e chamava Joaninha, para acariciá-la, e dar-lhe conselhos. e, se estava trabalhando, deixava tudo, ia em busca da moça, bater à porta do biombo.

A Joaninha não fora possível dizer quando lhe era mais desagradável o chamado, se para a repreensão, se para o afago. Tinha contudo a necessária paciência para suportar uma cousa e outra.

Sofria tudo, confiando no futuro e adorando no fundo do peito ao jovem vizinho, como o alicerce das suas esperanças.

II

O sapateiro Cândido gostava muito de palestra. Era o seu natural... que fazer?...

Aos domingos, quando não se achava toldado pelo vinho, sentava-se à entrada da oficina, no seu banquinho de pano listrado e pernas em X, e esperava o primeiro conhecido para a prosa.

Os conhecidos vulgares não eram os mais apreciados pelo sapateiro. Ele preferia conversar com gente de gravata lavada, como um militar, uma autoridadezinha de polícia, um estudante, etc. Gente que percebesse as considerações mais ou menos digeridas que ele desenvolvia a propósito disto, ou daquilo, ou mesmo sem propósito nenhum.

Esta preferência revelava a face principal do caráter de Cândido. Não era homem de afazer-se à sua posição social. Dizia-se degradado pela necessidade. Não nascera para aquilo que era. Por isso estimava as palestras com gente boa. Tinha até predileção pelos homens ilustrados. Sim, porque ele não era qualquer ignorantão. Em pequeno, chegara a aprender geografia; e os quarenta anos que lhe pesavam nos ombros o tinham feito um tanto entendido na ciência...

Daí a amizade que ele travou com dois moços estudantes que moravam nas imediações da sapataria.

Um desses jovens era alto, magro, amorenado, cabelos negros, olhos negros, bigode vasto e queixo rapado; o outro de estatura vulgar, cheio de corpo, sangüíneo, bigode recurvado para cima, pupilas ameigadas, maneiras de conquistador; quanto ao mais trajavam ambos rigorosamente e gozavam da fama de ricos...

O moreno chamava-se Emílio; o alvo era seu companheiro de casa e colega; chamava-se Fernando.

Temos falado de ambos ao leitor.

Insinuante mancebo que era Emílio! Modos afidalgados, mas corteses, sorriso bom sempre a correr nos lábios. Fernando era insinuante como o outro, porém de gênero diverso. Derramava em torno de si uma chuva de olhares qual mais eloqüente e dizendo tanta cousa que uma mulher honesta e casta não podia afrontá-los. Punha de alcatéia os pacatos burgueses; e, mais de uma vez, o simples fato de sua passagem por junto de uma mocinha fizera agitar-se o pretropolis de honrado papai.

Fernando simpatizava com a Joaninha. Dize-lo basta para fazer evidente a atração que ligava o sapateiro e o estudante.

Travaram, pois, conhecimento Cândido e Fernando; Emílio por intermédio do amigo, entrou também na roda...

Era uma satisfação para o primeiro ter à sua porta os estudantes... Sentia-se menos sapateiro, lidando com os doutores. Pobre homem!

III

Certa ocasião, num dia santo (dia de... S. Sebastião, por sinal) os dois moços pararam à porta da sapataria; perguntaram a Cândido como ia da saúde, etc. O pai de Joaninha convidou-os a entrar. Sabia que eles eram democratas, não coravam de transpor o limiar de uma humilde oficina... Os democratas acederam ao convite. Era fim da tarde e já os lampiões da iluminação pública salpicavam a meia sombra crepuscular com as chamas esbranquiçadas do gás. A rua toda parecia respirar na sonolência inexprimível dos dias desocupados. Pouco movimento, nenhum rumor notável. No céu, nevoeiros empastados, prenhes de chuva, anunciavam uma próxima mudança de tempo. Pelo ar, espalhava-se alguma eletricidade, que impressionava os nervos, predizendo trovoada.

Os estudantes e o sapateiro conversavam. Davam à taramela a respeito de tudo, primeiro a respeito da atmosfera; depois, de S. Sebastião; em seguida, das festas de Igreja; por tocarem nisso, meteu Cândido as botas nos padres, especialmente no vigário da paróquia, um patife tão baixo para com os ricos, quanto arrogante para com os pobres, um bandalho, etc...

Entretanto, passou o caixeiro da venda do Manoel corcunda.

Escurecera completamente, mas o sapateiro tinha acendido o lampião de querosene, a cuja luz trabalhavam os seus empregados em dias de serviço. Conquanto amortecida, essa claridade enchia a oficina, desenrolando uma toalha avermelhada até ao meio da rua...

O caixeiro espiou, sorrindo de ver na oficina o Dr. Fernando R. e o Dr. Emílio ....

- Querem alguma cousa? perguntou.

Os estudantes cruzaram um olhar...

- Queremos, disse Fernando. Traga cerveja e...

- A branca!... completou Cândido.

E Fernando atirou ao caixeiro uma nota de cinco mil-réis...

O caixeiro abriu a boca, mostrando os dentes sujos, num riso malicioso, e foi-se...

Minutos depois, estava tudo aí: troco dos cinco, cerveja, a branca, bebedeira.

Os moços deram o exemplo. Dois copos e uma caneca fizeram de cristais. Começou a orgia. Saltavam as rolhas e a cerveja surgia espumosa como a saliva de um gotoso à beca das garrafas...

... As negrinhas estão babando! gritava Cândido, e estendendo o copo para colher aquela espumarada atraente...

- Vamos bebendo! diziam os estudantes.

Note-se que Fernando bebia moderadamente.

O sapateiro entusiasmou-se. Descompôs a sociedade que o maltratava, e o destino, que o perseguia; maldisse de tudo, em altas vozes, revelando raros dotes de uma oratória inchada e de má gramática.

Os moços discutiam com ele, e o faziam beber cada vez

Principiou então a perder o fio das idéias. Dissertando sobre a conveniência da instrução, apostrofava subitamente os seus empregados que lhe comiam o dinheiro sem trabalhar.

- Corja de bêbados! urrava...

Iam-lhe as palavras tornando pegajosas de mais a mais, a língua pesava-lhe sobre os dentes inferiores, e os estudantes a ministrarem-lhe copos sobre copos...

O bêbado afastava os cantos da boca num sorriso bestial, as pálpebras caíam-lhe como bambinelas e, nos olhos semicerrados, moviam-se languorosamente as pupilas, como se estivessem também embriagadas.

Emílio e Fernando riam gostosamente, oferecendo ao sapateiro mais cerveja e mais aguardente. O infeliz, encantado pela transparência brilhante dos copos, deixava-se atordoar e ia bebendo... bebendo.

Numa porta que se rasgava como um paralelogramo negro ao fundo da loja, assomou um vulto. Parecia uma coluna de fumo alvacento a flutuar nas trevas. Os moços sentiram-no. Emílio voltou a cabeça; Fernando voltou a cabeça. Era a menina!...

Joaninha percebera os rumores da orgia. O que seria? Convinha ver...

Estivera espreitando.

O estado do pai confrangia-lhe o coração, à força de causar-lhe nojo. Aquilo já não era beber! Porque nascera ela daquele homem? Deus não podia ter-lhe dado um pai menos borracho? E tinha de amá-lo!... E ela o amava, mesmo; sentia-o às vezes... Que miseráveis eram aqueles que ali estavam a escarnecer do pobre homem?

Devia verificá-lo e censurar os malvados. Quis entrar na loja...

Os homens, porém, tinham voltado o rosto e ela que já os suspeitava viu que eram os dois vizinhos, aquele que lhe dava muita atenção, e o companheiro...

A figura do pai, com a cabeça pendida, balanceando à toa como a de um morto; as pernas distendidas e os braços caídos como pedaços de chumbo, desfez-se-lhe, com o deslumbramento que lhe causou o olhar de um dos moços, de Fernando.

Fernando era o seu namorado, isto é, o moço que podia servir-lhe. Um belo rapaz; tanto melhor. O que a dispusera para amá-lo, para notar-lhe as feições, fora o ser Fernando um moço de fortuna como revelava pelo rigor do traje e pelo seu modo de vida. Demais o estudante gostava dela, não havia que duvidar. Disso possuía mil provazinhas galantes que o moço lhe dava e que ela compreendia sem custo. Com Fernando se casaria.

Por que não?

Ela pobre, mas bonita; ele namorado e rico...

IV

Adiantara-se muito a noite. A rua ficara sem viva alma. Alguns trovões pouco intensos abalavam de longe em longe o ar. Na loja do sapateiro Cândido são havia como lá fora pessoa alguma, a não ser o indivíduo que dormia sobre um assento, encostado à parede. Era o bêbado. Os estudantes tinham desaparecido.

Emílio propositalmente deixara Fernando só e fora-se para a casa. O namorado de Joaninha, tendo recostado como melhor pôde o sapateiro, adormecido na mais absoluta embriaguez, encaminhara-se para a porta onde vira a Joaninha mostrar-se.

A mocinha não estava mais aí. Fernando olhou para trás, como temendo que o pai da sua querida despertasse e adiantou-se para o interior. Sabia que Joaninha era órfã de mãe, e, naquela casa, residia com o pai unicamente. Não eram, pois, de recear encontros.

Barafustou por vários aposentos, onde não se distinguia um só objeto, na massa compacta de negruras que havia neles. O coração palpitava-lhe violento como se não estivesse a gosto no tórax. O cheiro de couros e graxas que corrompia o ambiente incomodava-lhe o olfato...

Sem saber como, viu-se o moço em uma saleta mais clara (menos escura, fora melhor). Uma janela envidraçada apresentava um pedaço de céu sombrio, um pouco menos, contudo, que as paredes da saleta. Relâmpagos brancos, demorados, iluminavam os caixilhos da vidraça como clarões brincando num painel fantástico. Estes clarões faziam uma rápida solução de continuidade em a noite. Um dia veloz penetrava na saleta e fugia num instante, mal permitindo que se visse no centro da sala uma mesinha coberta de objetos insignificantes e um velho sofá vizinho da janela.

Neste sofá estava sentada Joaninha. Quando um relâmpago mostrou-lhe o namorado a entrar, ela sorriu e baixou o rosto acanhadamente.

- Até que enfim meu anjo! disse Fernando, com voz um tanto comovida.

O moço estava habituado às entrevistas; mas aquela era de ordem excepcional. Fora tão longamente preparada, que, quando a grande hora chegou, o herói sentiu-se abalado. A filha de Cândido gozava um sobressalto delicioso. Havia se retirado da loja, para ser seguida pelo dileto do seu coração. Ali estava ele.

A um segundo relâmpago, a mocinha viu junto de si o mancebo e, apenas voltou a escuridão, sentiu um braço musculoso enlaçando-lhe a cintura, apertando-a com arrebatamento contra um peito largo, onde havia palpitações que eram marteladas.

Joaninha pendeu a cabeça para o ombro daquele homem.

Caiu numa dormência povoada de visões. A noite pareceu-lhe sulcada por mágicas irradiações de esquisito fulgor, a cruzarem-se no espaço, como para circundar uma figurinha de criança que lhe sorria de longe, agitando as mãos...

Quando terceiro relâmpago clareou a saleta, os dois namorados cingiam-se num abraço de despedida.

- Meu noivo!... dizia a moça com os lábios sobre a face de Fernando.

- Minha noiva! ciciava este ao ouvido dela...

E lá fora o trovão rufava com força, fazendo estremecer a vidraça.

V

Em seguida Joaninha conduzia seu noivo até à porta da rua.

Na oficina jazia o sapateiro estendido no chão, a dormir como um porco. Escorregara do assento, em que o tinha deixado Fernando.

Chovia bastante, àquela hora, e a água, entrando pelo vão da porta da loja, inundava o chão. Cândido parecia boiar num lago.

Os noivos não lhe deram atenção... Apertaram-se as mãos e Joaninha perguntou graciosamente:

- Como se chama, mesmo, você?...

- Felizardo... flor...

- Bem... Agora, Felizardo, até...

- Logo, Joaninha...

Dando esta resposta, Fernando abriu o guarda-chuva que trouxera.

- Adeus! atirou-lhe a filha do sapateiro.

- Adeus! disse ele, sorrindo.

E partiu.
.......................................................

Pouco depois, Fernando e Emílio conversavam em sua casa.

- Com que, graceja Emílio, conseguiste, meu felizardo, plantar uma lança em África!...

- Sabes que sou decidido, observou Fernando, pavoneando-se... Mas o principal é que temos de nos mudar desta casa, já e já... não quero que a pequena me torne a ver...

- Fazemos a mudança amanhã mesmo; olha, o Z mudou-se há dois dias; temos a casa dele...

- O diabo é esta chuva... parece que o céu está chorando...

Todo estudante é mais ou menos poeta. A frase de Emílio inspirou-lhe uma idéia.

- Deixa estar, Fernando, que hei de dedicar-te um soneto com este título: a queda de um querubim, onde farei o céu deplorando uma virgem...

- E eu, replicou o companheiro distraidamente e rindo, hei de dedicar-te um com este outro titulo: a mona do sapateiro.

Fonte:
http://leituradiaria.com

Soares de Passos (Últimos Momentos de Albuquerque)

Ao meu amigo A. Aires de Gouveia.

Companheiros, sinto a morte
Pairando já sobre mim;
Cessaram vaivéns da sorte,
Desço à terra donde vim...
Do cálice da desventura
Eis esgotada a amargura;
No leito da sepultura
Terei descanso por fim.

Terei: a campa é um asilo
Que ao ímpio deve aterrar,
Mas eu dormirei tranquilo
Sob a lájea tumular.
Eu... desgraçado, que digo!
Nem lá espero um abrigo,
Que os meus restos no jazigo
Irão talvez insultar.

Murmurando: «aqui repousa
Um desleal português»,
Irão partir minha lousa,
Meu nome calcar aos pés;
E o guerreiro que descansa
Não poderá, por vingança,
Brandir na dextra uma lança,
Cingir ao peito um arnês...

Quais foram, rei, os meus crimes
Para haver tal galardão?
Porque a fronte assim me oprimes
Com a tua ingratidão?
De vis intrigas cercado
Ouviste seu ímpio brado,
E sobre as cãs do soldado
Lançaste negro baldão.

Não merecia tal prémio
Quem debaixo deste céu,
Da roxa aurora no grémio
Um novo império te deu;
Quem à custa duma vida
Nas batalhas consumida,
Ante as quinas abatida
A Índia inteira rendeu.

Por dar-te a c'roa brilhante
Que em tua fronte reluz,
Fiz a meus pés arquejante
Cair a opulenta Ormuz:
Malaca sentiu meu raio,
E em Goa, roto o Sabaio,
Entre o sangue, entre o desmaio,
Alcei o pendão da cruz.

Então desde o Nilo ao Ganges
Cem povos armados vi,
Erguendo torvas falanges
Contra mim e contra ti;
Vi os filhos do deserto
Em ondas rugindo perto;
Mas com ferro em campo aberto
Às suas iras sorri.

Contra as lanças portuguesas
A Índia lutou em vão,
Que em troca d'ouro e riquezas
Veio comprar seu grilhão.
Aos golpes dos meus soldados
Vi seus tronos abalados,
Vi ante mim ajoelhados
Reis d'Onor e de Sião.

Mas d’Ásia não pôde o ouro
Cegar-me com seu fulgor,
Porque a honra ó o tesouro
Dos meus passados, senhor.
Eu quis adornar-te a frente
Cum diadema refulgente:
Ganhei o ceptro do Oriente,
E a teus pés o fui depor.

Nesses campos de batalha,
Onde audaz o conquistei,
Das armas sob a mortalha
Porque exangue não findei?
Entre os louros da vitória
Morrera ao menos com glória;
Do teu soldado a memória
Não a mancharas ó rei.

Eu desleal?! se meus brados
Podem chegar até vós,
Erguei-vos, restos sagrados
De meus extintos avós!
Erguei-vos da campa fria,
E com sangue, à luz do dia,
Lavai a nódoa sombria
Que arrojaram sobre nós!

Eu desleal?! mas ao mundo
Que vale queixas mandar?
As vozes dum moribundo
Não vão na terra ecoar...
Surge, ó morte!... e vós, amigos,
Sócios de tantos perigos,
Vinde... nem só inimigos
Me restam ao expirar.

No reino vos deixo um filho –
N ossos feitos lhe ensinai;
Dizei-lhe qual foi o trilho
Que em vida seguiu seu pai...
Dizei-lhe qual foi meu norte;
Mas, enquanto à minha sorte,
Oh! não lhe aponteis a morre,
A vida só lhe apontai...

E se falardes um dia
A dom Manuel, o feliz,
Dizei-lhe que na agonia
Albuquerque o não maldiz;
Que à beira da sepultura,
Para um filho sem ventura,
Invoco sua ternura,
Se alguns serviços lhe fiz.

E vós... e vós, portugueses,
Nossa pátria defendei;
Dai-lhe os peitos por arneses,
Seja a pátria vossa lei.
Num trono que ela não tinha
Eu vo-la deixo rainha,
Mas não sei o que adivinha
Meu pensamento... não sei...

Entre as sombras do futuro,
Meu Deus! a pátria em grilhões!...
Pelo mar em vão procuro
Seus orgulhosos pendões...
Coberta d'amargo pranto,
Lá se envolve em negro manto...
Lá roja a face em quebranto...
Ela, a grande entre as nações!...

Oh! se este braço pudera
A fria lousa quebrar,
Este braço inda se erguera
Da tumba, para a salvar;
Apontando-lhe a vingança;
Inda lhe dera esperança,
E empunhando a antiga lança,
À morte a fora arrancar.

Mas eis marcado o momento
No livro d'além dos céus...
Eis a morte... o passamento...
São findos os dias meus...
Companheiros da vitória,
De tantos dias de glória,
Guardai... guardai na memória,
D'Albuquerque o extremo adeus...

A morte... a morte... que anseio!
Sinto um gelo sepulcral...
Abre-me, ó terra, o teu seio,
Quero o repouso final.
Desce, guerreiro cansado,
Desce ao túmulo gelado...
Mas a afronta... desonrado...
Índia... filho... Portugal!...
Fonte:
Poesias de Soares de Passos. 1858 (1ª ed. em 1856). http://groups.google.com/group/digitalsource

Mitos e Lendas (O Carneiro Encantado)

No lugar Passagem de Santo Antonio, Maranhão, fronteira com o Piauí, margem do rio Parnaiba, os viajantes vêem um carneiro gigantesco com uma estrela resplandescente na testa... Às vezes o brilho da estrela parece extinguir-se, mas bruscamente se aviva com luminosidade deslumbrante.

Dizem que há muito tempo, os ladrões assassinaram um monge missionário que voltava ao convento carregado de esmolas.

Mataram e roubaram o frade.

Terminando o crime, tocados pelo remorso, resolveram sepultar o cadáver enterrando também as esmolas junto com o corpo.

De vez em quando o monge aparece durante a noite, transformado no grande carneiro branco e tendo na testa estrela deslumbrante símbolo da pureza enterrada.
Fonte:
Colhido por Jerônimo B. Monteiro e publicado em sua coluna Lendas, mitos e crendices
Jangada Brasil. Setembro 2010 - Ano XII - nº 140. Edição Especial de Aniversário

Clássicos do Cancioneiro Popular (O Boi Barroso)

Meu bonito boi barroso
Que eu já contava perdido
Deixando o rastro na areia
 Foi logo reconhecido

Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora
E grite: aperta, gente
Que o meu boi se vai embora!

No cruzar de uma picada
Meu cavalo relinchou
Dei de rédea para a esquerda
E o meu boi me atropelou

Ajudai-me, companheiros
Não me deixem morrer só
Ali vem o boi barroso
Estralando o mocotó!

Nos tentos levava um laço
Com vinte e cinco rodilhas
Pra laçar meu boi barroso
Lá no alto das coxilhas

Mas no mato carrasquento
Onde o boi ‘stava embretado
Não quis usar o meu laço
Pra não vê-lo retalhado

E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré

E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga

E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia-cara

Estribilho
Meu boi barroso
Meu boi pitanga
O teu lugar
É lá na canga

Fonte:
Jangada Brasil
Setembro 2010 - Ano XII - nº 140
Edição Especial de Aniversário

Adriana Abujamra Aith (Sozinha)

Sozinha, coitada.
Nunca estava acompanhada.
Pega-pega, sozinha não tinha.
Queimada, sozinha não dava.
Então, ela sentava a pensar.
Mas estava tão sozinha que nem pensamento vinha.
Se Sozinha assim estava,
mais sozinha ia ficar,
Porque o S da Sozinha resolveu se mandar.
Mal Ozinha se deu conta, o O aproveitou o embalo e saiu rolando.
Desolada, sentia-se uma zinha qualquer.
"Ô, Zinha", disse o Z.
E zapt, fugiu ligeiro, deixando Inha para trás.
"Inha, Inha, inhaaaá!"
Desandava a chorar.
Chorava, chorava até a lágrima secar.
E agora, o que fazer?
Olhou para um lado.
Olhou para o outro.
Para lá, para cá.
Até que seu pé se animou. Levantou a Inha e se pôs a sambar.
Ali de cima, os olhos de Inha observavam o seu pé,
que sacudia e sacudia.
E sacudindo contagiou o joelho,
que remexeu a coxa e fez o bumbum rebolar.
Do bumbum para a barriga foi um estalo.
Os ombros, que não são bobos, entraram logo no embalo.
Quando Inha percebeu, do pescoço para baixo estava um grande alvoroço.
Só faltava a cabeça. Então a boca disse: "Entre na dança." Êba! Vamos lá!
A alegria era tanta que atraiu muita gente. E todos os pés ali presentes convenceram seus donos a participar.
Inha estava contente, mas tão contente, que nem se lembrava mais do tempo em que tinha um S, um h e um Z,
que a deixavam Sozinha.
Deles queria distância. Mas não entendam mal. O S para um samba,
o O num oi e o Z para um ziriguidum seriam sempre bem-vindos.

Fonte:
Revista Nova Escola

Machado de Assis (Enéias Galvão: Miragens)


MEU CARO POETA, — este seu livro, com as lacunas próprias de um livro de estréia, tem as qualidades correspondentes, aquelas que são, a certo respeito, as melhores de toda a obra de um escritor. Com os anos adquire-se a firmeza, domina-se a arte, multiplicam-se os recursos, busca-se a perfeição que é a ambição e o dever de todos os que tomam da pena para traduzir no papel as suas idéias e sensações. Mas há um aroma primitivo que se perde; há uma expansão ingênua, quase infantil, que o tempo limita e retrai. Compreendê-lo-á mais tarde, meu caro poeta, quando essa hora bendita houver passado, e com ela uma multidão de coisas que não voltam, posto desse lugar a outras que as compensam.

Por enquanto fiquemos na hora presente. É a das confidências pessoais, dos quadros íntimos, é a deste livro. Aos que lho argüirem, pode responder que sempre haverá tempo de alargar a vista a outros horizontes. Pode também advertir que é um pequeno livro, escolhido que não cansa, e eu acrescentarei, por minha conta, que se pode ler com prazer, e fechar com louvor.

Que há nele alguns leves descuidos, uma ou outra impropriedade, é certo; contudo vê-se que a composição do verso acha da sua parte a atenção que é hoje
indispensável na poesia, e uma vez que enriqueça o vocabulário, ele lhe sairá perfeito. Vê-se também que é sincero, que exprime os sentimentos próprios, que estes são bons, que há no poeta um homem, e no homem um coração. Ou eu me engano, ou tem aí com que tentar outros livros. 

Não restrinja então a matéria, lance os olhos além de si mesmo, sem prejuízo, contudo, do talento. Constrangê-lo é o maior pecado em arte. Anacreonte, se quisesse trocar a flauta pela tuba, ficaria sem tuba nem flauta; assim também Homero, se tentasse fazer de Anacreonte, não chegaria a dar-nos, a troco das suas imortais batalhas, uma das cantigas do poeta de Teos.

Desculpe a vulgaridade do conceito; ele é indispensável nos que começam. Outro que também me parece cabido é que, no esmero do verso não vá ao ponto de cercear a inspiração. Esta é a alma da poesia, e como toda a alma precisa de um corpo, força é dar-lho, e quanto mais belo, melhor; mas nem tudo deve ser corpo. A perfeição, neste caso, é a harmonia das partes.

Adeus, meu caro Poeta. Crer nas musas é ainda uma das coisas melhores da vida. Creia nelas e ame-as.

Fonte:
Machado de Assis. Crítica Literária. Pará de  Minas/ MG: Virtualbooks, 2003.

Teatro de Ontem e de Hoje (Estrada do Tabaco)


Segundo espetáculo do Teatro Popular de Arte, marca a estréia do diretor italiano Ruggero Jacobbi, no Brasil e é considerado por alguns críticos o primeiro espetáculo naturalista do teatro brasileiro.

Estrada do Tabaco, estreada com nome de Tobacco Road, de Erskine Caldwell e Jack Kirkland, é escolhida pelo empresário Sandro Polloni em virtude do sucesso da montagem na Broadway, onde atinge mais de 3 mil récitas. Depois de realizar Anjo Negro, enfrentando a baixa popularidade de Nelson Rodrigues, na época, o Teatro Popular de Arte - TPA convida para assumir o trabalho de direção Ruggero Jacobbi. No entanto, em depoimento à pesquisadora Tania Brandão, Sandro Polloni afirma, 30 anos depois, que quem dirigiu os atores foi Itália Fausta e que Ruggero Jacobbi "colaborou, porque trouxe idéias novas",1 o que explica a falta do crédito relativo à categoria direção no programa do espetáculo.

O texto mistura doses de hiper-realismo a um humor corrosivo. A história se passa no universo de uma família de famintos cuja única fonte de renda é a venda da madeira de um carvalho. As terras pertenciam ao avô, plantador de tabaco, até que a propriedade e a lavoura foram sendo gradativamente degradadas pelos herdeiros. Na primeira parte da peça, a ação apresenta os pequenos conflitos e as atividades rotineiras dos miseráveis. Subitamente, recebem o anúncio da visita do dono das terras e passam a acreditar que a vinda dele possa melhorar a vida do grupo.

O cenário de Laszlo Meitner procura unir realismo e síntese: o palco coberto de terra, barris com água e destroços reais de um velho automóvel. A direção, sem fugir do risco da monotonia, investe na lentidão do tempo naturalista, valorizando as pequenas ações e a ambientação. O crítico Henrique Oscar, ao comentar o espetáculo, faz referência ao pioneiro do naturalismo, André Antoine, e à sua companhia, o Théâtre Libre. A interpretação dos atores, no entanto, destoa da proposta geral, que se evidencia com precisão nos elementos visuais.

As apreciações críticas divergem quanto ao resultado final. Décio de Almeida Prado faz ressalvas à encenação que, segundo ele, transforma o realismo em caricatura e empobrece o texto. A interpretação cômica de Ziembinski para o velho Lester e o tom melodramático de Itália Fausta na cena final merecem reprovações, embora a atriz receba na maioria das críticas elogios à segurança e maestria de sua interpretação. Sergio Britto escreve, no Diário de Notícias, que o espetáculo resulta paradoxal: "é uma tragédia que se assiste rindo".2

Notas 

1. POLONNI, Sandro. Depoimento. In: SILVA, Tania Brandão da. Peripécias modernas: companhia Maria Della Costa. 1998. 398 p. Tese (Doutorado em História da Arte)-Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. p. 174.

2. BRITTO, Sergio. Citado em In: SILVA, Tania Brandão da. Peripécias modernas: companhia Maria Della Costa. 1998. 398 p. Tese (Doutorado em História da Arte)-Instituto de Filosofia e Ciências Sociais. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1998. p. 177.

Fonte: