A geração que fez os estudos em Coimbra, depois da Reforma Pombalina de 1759, encontrou oportunidades novas de formação científica. Os brasileiros as agarraram com notável sofreguidão, sendo proporcionalmente grande o número dos que seguiram cursos de matemática, ciências naturais e medicina. Além disso, começam a ir segui-los em outras universidades européias, como Edimburgo e Montpellier, alargando os horizontes mentais. Não nos esqueçamos que eram médicos formados nesta Jacinto José da Silva, um dos principais acusados no processo da Sociedade Literária, e Manuel de Arruda Câmara, mentor dos liberais pernambucanos, enquanto um dos ideadores da Inconfidência Mineira, José Álvares Maciel, estudara ciências naturais e química, em Coimbra e na Inglaterra.
Ocorre então um fato ainda não bem estudado — o da quantidade de jovens bem dotados e de boa formação que, não obstante, se perdem para a vida científica, ou não tiram dela os frutos possíveis. É que a multiplicidade das tarefas que então se apresentam os solicita para outros rumos, enquanto a pobreza do meio condena a sua atividade ao empirismo, ou ao abafamento pela falta de repercussão. Isto, não só para os que trabalham na pátria, mas ainda para os que servem na metrópole. O motivo se prende em parte à própria estrutura social, pois a inexistência de estratos intermédios entre o homem culto e o homem comum, bem como a falta de preparação dos estratos superiores, os forçava às posições de liderança administrativa ou profissional. Eram por assim dizer aspirados pelos postos de responsabilidade, quaisquer que eles fossem — vendo-se o mesmo homem ser oficial, professor, escritor e político; ou desembargador, químico e administrador. Outros, que logravam ficar nos limites da sua especialidade, viam os seus trabalhos votados ao esquecimento, inéditos por desinteresse do meio ou dispersos pela desídia e desonestidade.
De qualquer modo, representam um triunfo relativo das Luzes, e muitos marcaram o seu tempo. Poucas vezes o Brasil terá produzido, no espaço dum quarto de século, numa população livre que talvez não atingisse dois milhões, na absoluta maioria analfabetos, homens da habilitação científica de Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e Almeida, José Bonifácio de Andrada e Silva, Francisco de Melo Franco, José Vieira Couto, Manuel Ferreira da Câmara de Bittencourt e Sá, seu irmão José de Sá Bittencourt Câmara, José Mariano da Conceição Veloso, Leandro do Sacramento — para citar os de maior porte, deixando fora uma excelente segunda linha de estudiosos e divulgadores, que se contam por dezenas.
Todos, ou quase todos estes homens tinham, como era próprio às concepções do tempo, uma noção muito civil da atividade científica, desejando que ela revertesse imediatamente em benefício da sociedade, como proclamavam tanto um Rodrigues Ferreira no último quartel do século XVIII, quanto o matemático Manuel Ferreira de Araújo Guimarães em 1813, na apresentação da sua revista O Patriota. A eles devemos os primeiros reconhecimentos sistemáticos do território, em larga escala, seja do ponto de vista geodésico (Lacerda e Almeida), seja zoológico e etnográfico (Rodrigues Ferreira), seja botânico (Veloso, Leandro), bem como as primeiras tentativas de exploração e utilização científica das riquezas minerais (Vieira Couto, Câmara). Entre eles se recrutaram alguns dos líderes mais importantes da Independência e do Primeiro Reinado, como o naturalista José Bonifácio, os matemáticos Vilela Barbosa e Ribeiro de Resende, pois muitos deles passaram (consequência natural da filosofia das Luzes, e solicitação de um meio pobre em homens capazes) da ciência à política, da especulação à administração.
Ao seu lado avulta um segundo grupo (a que muitos deles pertencem igualmente), também formado sob o influxo das reformas do grande marquês: são os publicistas, estudiosos da realidade social, doutrinadores dos problemas por ela apresentados, como José da Silva Lisboa (1756-1835), divulgador da economia liberal entre nós, porta-voz dos interesses comerciais da burguesia litorânea; ou Hipólito José da Costa Pereira (1774-1823), o nosso primeiro jornalista, que a partir de 1808 empreendeu no Correio Brasiliense, publicado em Londres, uma esclarecida campanha a favor da modernização da vida brasileira, sugerindo uma série de medidas do maior alcance, como responsabilidade dos governadores, representação provincial, abolição do cativeiro, imigração de artífices e técnicos, fundação da Universidade, transferência da capital para o interior.
Figura de relevo foi a de D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1743-1821), que talvez encarne como ninguém as tendências características da nossa Ilustração — ao mesmo tempo religiosa e racional, passadista e progressista, realista e utópica, misturando as influências dos filósofos ao policiamento clerical. A sua obra de educador no famoso Seminário de Olinda é considerada o marco do ensino moderno entre nós, enquanto o Ensaio econômico (1794) entra pelo devaneio e o plano salvador (que tanto nos caracteriza daí por diante), procurando associar o índio ao progresso graças ao aproveitamento das suas aptidões naturais, canalizando-as para a navegação, e esta para o comércio do sal, reputada fonte revolucionadora de riqueza.
Com este bispo ilustre, tocamos num terceiro grupo intelectual que desempenhou papel decisivo nas nossas Luzes e sua aplicação ao plano político: os sacerdotes liberais, diretamente ligados à preparação dos movimentos autonomistas. Núcleo fundamental foi, por exemplo, o que se reuniu em Pernambuco à volta do padre Manuel de Arruda Câmara (1752-1810), provavelmente de caráter maçônico — o chamado Areópago de Itambé — e se prolongou através do proselitismo do padre João Ribeiro Pessoa, seu discípulo, formando OS quadros das rebeliões de 1817 e 1824, a que se ligam outros tonsurados liberais: os padres Roma e Alencar; os frades Miguelinho e Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825), este, panfletário e jornalista de extraordinário vigor, teórico do regionalismo pernambucano, fuzilado pelo seu papel na Confederação do Equador.
Os oradores sacros se desenvolveram então em grande relevo, graças à paixão de D. João VI pelos sermões; e muitos deles, além de contribuírem para formar o gosto literário, usaram o púlpito como tribuna de propaganda liberal, sobretudo na preparação final da Independência e no Primeiro Reinado, sendo muitos deles maçons praticantes, como Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), companheiro de Gonçalves Ledo no jornal Revérbero Constitucional. Outros, como os frades Sampaio e Monte Alverne, chegaram a exercer acerbamente o direito de crítica em relação às tendências autoritárias do primeiro imperador. Assim, pela mistura de devoção e liberalismo, o clero brasileiro do primeiro quartel do século XIX — classe culta por excelência — encarnou construtivamente alguns aspectos peculiares da nossa Época das Luzes, ardente e contraditória.
O quarto grupo nos traz de volta aos escritores propriamente ditos, os literatos, que então eram quase exclusivamente poetas. Entre 1750 e 1800 nascem umas duas gerações, unificadas em grande parte por caracteres comuns e, no conjunto, nitidamente inferiores às precedentes. Árcades, eles ainda o são; mas empedernidos, usando fórmulas que muitos deles começam a pôr em dúvida. Como recebem algumas influências diversas, ampliam, por outro lado, as preocupações, ou modificam o rumo com que elas antes se manifestavam. É o caso de certo naturismo didático ou meditativo, que aprendem no inglês Thomson, nos franceses Saint-Lambert e Delille, e ocorre nalguns versos de José Bonifácio (1765-1837) e Francisco Vilela Barbosa (1769-1846). E se este não sai, poeticamente falando, do âmbito setecentista, o primeira chega a interessar-se por Walter Scott e Byron, enquanto sua boa formação de helenista o conduz a traduções e imitações, reveladoras de um Neoclassicismo diferente do que, entre os árcades anteriores, decorria da leitura assídua de autores em língua latina.
Se um Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811) é continuador puro e simples dos aspectos neoquinhentistas da Arcádia, José Elói Ottoni (1764-1851) opta decididamente pelas cadências melodiosas da poética bocagiana, usando o decassílabo sáfico (acentuado na 4a, 8a e 10a sílabas) de um modo bastante próximo ao dos futuros românticos.
Estes costumavam dizer de dois outros poetas — padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814) e frei Francisco de São Carlos (1763-1829) — que haviam sido seus precursores, por se terem aplicado à poesia religiosa em detrimento das sugestões mitológicas. A opinião é superficial, ao menos quanto ao segundo, e se explica pelo desejo de criar uma genealogia literária, pois não apenas os temas religiosos foram largamente versados na tradição portuguesa, como, estética e ideologicamente, o poema Assunção, de São Carlos, é prolongamento do nativismo ornamental de outros poetas nossos (Itaparica, Durão). É aliás uma obra frouxa, sem inspiração, prejudicada pela monotonia fácil dos decassílabos rimados em parelhas. Mas como foi composta no tempo da vinda de D. João VI, manteve muito mais que os anteriores, o senso de integração nacional, abrangendo todo o país na sua louvação ingênua e descosida.
A maior destas figuras literárias é Sousa Caldas, inspirado na intimidade pelas idéias de Rousseau, que o levaram à humilhação dum auto-de-fé penitenciário e à reclusão em convento. Mas o seu liberalismo era acompanhado de fé igualmente viva, que o fez tomar ordens sacras aos trinta anos e destruir quase todas as poesias profanas que compusera. Daí por diante escreveu poemas sagrados, duros, corretos, fastidiosos — e traduziu com mão bem mais inspirada a primeira parte dos Salmos de Davi. Mas permaneceu fiel as idéias, sempre suspeito às autoridades. Por altura de 1812-1813 redigiu uma série de ensaios político-morais sob a forma de cartas, de que infelizmente restam apenas cinco, para amostra do quanto perdemos. Elas manifestam ousadia e penetração, versando a liberdade de pensamento e as relações da Igreja com o Estado, num molde de avançado radicalismo. Já em 1791 escrevera uma admirável carta burlesca, em prosa e verso, alternadamente, sugerindo atitude mais adequada ao homem moderno, inclusive repúdio à imitação servil da antiguidade e à tirania dos clássicos no ensino.
Provavelmente por influência de Sousa Caldas — que admirava e cujo epitáfio redigiu — Elói Ottoni se dedicou a traduzir textos sagrados, publicando os Provérbios (1815) e deixando inédito o Livro de Jó. Note-se a preocupação destes poetas com o Velho Testamento — que seria largamente utilizado no Romantismo — definindo um universo religioso diverso da piedade rotineira que São Carlos representa.
Em 1813, o matemático Araújo Guimarães (1777-1838) fundou no Rio O Patriota, que durou até o ano seguinte e foi a primeira revista de cultura a funcionar regularmente entre nós, estabelecendo inclusive o padrão que regeria as outras pelo século afora: trabalhos de ciência pura e aplicada ao lado de memórias literárias e históricas, traduções, poemas, notícias. Como diretriz, o empenho em difundir a cultura a bem do progresso nacional.
O Patriota publicou versos de Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga. Dentre os colaboradores contemporâneos, sobressaiu, com a inicial B. em oito artigos de ciência aplicada, Domingos Borges de Barros (1779-1855), árcade influenciado pelos franceses, sobretudo Parny e Delille, que encontrou a certa altura uma tonalidade pré-romântica de melancolia e meditação, redimindo a banalidade de uma obra medíocre tanto na parte frívola quanto na patética, esta representada por um poema fúnebre sobre a morte do filho, Os túmulos (1825). Com José da Natividade Saldanha (1795-1830) — tipo curioso de agitador liberal, exilado a partir de 1824, — chegamos ao fim da poesia brasileira anterior ao Romantismo, no que ela tem de aproveitável. É um árcade meticuloso, nas obras líricas e nas patrióticas, mostrando que o civismo incrementava e consolidava a diretriz neoclássica, em virtude do apelo constante aos modelos romanos. Maior agitação interior e claras premonições de Romantismo encontramos nos sermões do referido frei Francisco de Monte Alverne (1784-1857), que sofreu a influência de Chateaubriand e manifestou pela primeira vez, entre nós, aquele sentimento religioso simultaneamente espetacular e langue, típico dos românticos, parecendo menos devoção que ensejo de emoção pessoal. Apesar da pompa convencional e da monotonia nas idéias, muitos dos seus discursos ainda resistem hoje à leitura, permitindo avaliar o fascínio que exerceu sobre os contemporâneos.
* * *
As letras e idéias no Brasil colonial se ordenam, pois, com certa coerência, quando encaradas segundo as grandes diretrizes que as regeram. Em ambas coexistiram a pura pesquisa intelectual e artística, e uma preocupação crescente pela superação do estatuto colonial. Esse pendor, favorecido pela concepção ilustrada da inteligência a partir da segunda metade do século XVIII, permitiu a precipitação rápida da consciência nacional durante a fase joanina, fornecendo bases para o desenvolvimento mental da nação independente.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
Ocorre então um fato ainda não bem estudado — o da quantidade de jovens bem dotados e de boa formação que, não obstante, se perdem para a vida científica, ou não tiram dela os frutos possíveis. É que a multiplicidade das tarefas que então se apresentam os solicita para outros rumos, enquanto a pobreza do meio condena a sua atividade ao empirismo, ou ao abafamento pela falta de repercussão. Isto, não só para os que trabalham na pátria, mas ainda para os que servem na metrópole. O motivo se prende em parte à própria estrutura social, pois a inexistência de estratos intermédios entre o homem culto e o homem comum, bem como a falta de preparação dos estratos superiores, os forçava às posições de liderança administrativa ou profissional. Eram por assim dizer aspirados pelos postos de responsabilidade, quaisquer que eles fossem — vendo-se o mesmo homem ser oficial, professor, escritor e político; ou desembargador, químico e administrador. Outros, que logravam ficar nos limites da sua especialidade, viam os seus trabalhos votados ao esquecimento, inéditos por desinteresse do meio ou dispersos pela desídia e desonestidade.
De qualquer modo, representam um triunfo relativo das Luzes, e muitos marcaram o seu tempo. Poucas vezes o Brasil terá produzido, no espaço dum quarto de século, numa população livre que talvez não atingisse dois milhões, na absoluta maioria analfabetos, homens da habilitação científica de Alexandre Rodrigues Ferreira, Francisco José de Lacerda e Almeida, José Bonifácio de Andrada e Silva, Francisco de Melo Franco, José Vieira Couto, Manuel Ferreira da Câmara de Bittencourt e Sá, seu irmão José de Sá Bittencourt Câmara, José Mariano da Conceição Veloso, Leandro do Sacramento — para citar os de maior porte, deixando fora uma excelente segunda linha de estudiosos e divulgadores, que se contam por dezenas.
Todos, ou quase todos estes homens tinham, como era próprio às concepções do tempo, uma noção muito civil da atividade científica, desejando que ela revertesse imediatamente em benefício da sociedade, como proclamavam tanto um Rodrigues Ferreira no último quartel do século XVIII, quanto o matemático Manuel Ferreira de Araújo Guimarães em 1813, na apresentação da sua revista O Patriota. A eles devemos os primeiros reconhecimentos sistemáticos do território, em larga escala, seja do ponto de vista geodésico (Lacerda e Almeida), seja zoológico e etnográfico (Rodrigues Ferreira), seja botânico (Veloso, Leandro), bem como as primeiras tentativas de exploração e utilização científica das riquezas minerais (Vieira Couto, Câmara). Entre eles se recrutaram alguns dos líderes mais importantes da Independência e do Primeiro Reinado, como o naturalista José Bonifácio, os matemáticos Vilela Barbosa e Ribeiro de Resende, pois muitos deles passaram (consequência natural da filosofia das Luzes, e solicitação de um meio pobre em homens capazes) da ciência à política, da especulação à administração.
Ao seu lado avulta um segundo grupo (a que muitos deles pertencem igualmente), também formado sob o influxo das reformas do grande marquês: são os publicistas, estudiosos da realidade social, doutrinadores dos problemas por ela apresentados, como José da Silva Lisboa (1756-1835), divulgador da economia liberal entre nós, porta-voz dos interesses comerciais da burguesia litorânea; ou Hipólito José da Costa Pereira (1774-1823), o nosso primeiro jornalista, que a partir de 1808 empreendeu no Correio Brasiliense, publicado em Londres, uma esclarecida campanha a favor da modernização da vida brasileira, sugerindo uma série de medidas do maior alcance, como responsabilidade dos governadores, representação provincial, abolição do cativeiro, imigração de artífices e técnicos, fundação da Universidade, transferência da capital para o interior.
Figura de relevo foi a de D. José Joaquim da Cunha de Azeredo Coutinho (1743-1821), que talvez encarne como ninguém as tendências características da nossa Ilustração — ao mesmo tempo religiosa e racional, passadista e progressista, realista e utópica, misturando as influências dos filósofos ao policiamento clerical. A sua obra de educador no famoso Seminário de Olinda é considerada o marco do ensino moderno entre nós, enquanto o Ensaio econômico (1794) entra pelo devaneio e o plano salvador (que tanto nos caracteriza daí por diante), procurando associar o índio ao progresso graças ao aproveitamento das suas aptidões naturais, canalizando-as para a navegação, e esta para o comércio do sal, reputada fonte revolucionadora de riqueza.
Com este bispo ilustre, tocamos num terceiro grupo intelectual que desempenhou papel decisivo nas nossas Luzes e sua aplicação ao plano político: os sacerdotes liberais, diretamente ligados à preparação dos movimentos autonomistas. Núcleo fundamental foi, por exemplo, o que se reuniu em Pernambuco à volta do padre Manuel de Arruda Câmara (1752-1810), provavelmente de caráter maçônico — o chamado Areópago de Itambé — e se prolongou através do proselitismo do padre João Ribeiro Pessoa, seu discípulo, formando OS quadros das rebeliões de 1817 e 1824, a que se ligam outros tonsurados liberais: os padres Roma e Alencar; os frades Miguelinho e Joaquim do Amor Divino Caneca (1779-1825), este, panfletário e jornalista de extraordinário vigor, teórico do regionalismo pernambucano, fuzilado pelo seu papel na Confederação do Equador.
Os oradores sacros se desenvolveram então em grande relevo, graças à paixão de D. João VI pelos sermões; e muitos deles, além de contribuírem para formar o gosto literário, usaram o púlpito como tribuna de propaganda liberal, sobretudo na preparação final da Independência e no Primeiro Reinado, sendo muitos deles maçons praticantes, como Januário da Cunha Barbosa (1780-1846), companheiro de Gonçalves Ledo no jornal Revérbero Constitucional. Outros, como os frades Sampaio e Monte Alverne, chegaram a exercer acerbamente o direito de crítica em relação às tendências autoritárias do primeiro imperador. Assim, pela mistura de devoção e liberalismo, o clero brasileiro do primeiro quartel do século XIX — classe culta por excelência — encarnou construtivamente alguns aspectos peculiares da nossa Época das Luzes, ardente e contraditória.
O quarto grupo nos traz de volta aos escritores propriamente ditos, os literatos, que então eram quase exclusivamente poetas. Entre 1750 e 1800 nascem umas duas gerações, unificadas em grande parte por caracteres comuns e, no conjunto, nitidamente inferiores às precedentes. Árcades, eles ainda o são; mas empedernidos, usando fórmulas que muitos deles começam a pôr em dúvida. Como recebem algumas influências diversas, ampliam, por outro lado, as preocupações, ou modificam o rumo com que elas antes se manifestavam. É o caso de certo naturismo didático ou meditativo, que aprendem no inglês Thomson, nos franceses Saint-Lambert e Delille, e ocorre nalguns versos de José Bonifácio (1765-1837) e Francisco Vilela Barbosa (1769-1846). E se este não sai, poeticamente falando, do âmbito setecentista, o primeira chega a interessar-se por Walter Scott e Byron, enquanto sua boa formação de helenista o conduz a traduções e imitações, reveladoras de um Neoclassicismo diferente do que, entre os árcades anteriores, decorria da leitura assídua de autores em língua latina.
Se um Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1769-1811) é continuador puro e simples dos aspectos neoquinhentistas da Arcádia, José Elói Ottoni (1764-1851) opta decididamente pelas cadências melodiosas da poética bocagiana, usando o decassílabo sáfico (acentuado na 4a, 8a e 10a sílabas) de um modo bastante próximo ao dos futuros românticos.
Estes costumavam dizer de dois outros poetas — padre Antônio Pereira de Sousa Caldas (1762-1814) e frei Francisco de São Carlos (1763-1829) — que haviam sido seus precursores, por se terem aplicado à poesia religiosa em detrimento das sugestões mitológicas. A opinião é superficial, ao menos quanto ao segundo, e se explica pelo desejo de criar uma genealogia literária, pois não apenas os temas religiosos foram largamente versados na tradição portuguesa, como, estética e ideologicamente, o poema Assunção, de São Carlos, é prolongamento do nativismo ornamental de outros poetas nossos (Itaparica, Durão). É aliás uma obra frouxa, sem inspiração, prejudicada pela monotonia fácil dos decassílabos rimados em parelhas. Mas como foi composta no tempo da vinda de D. João VI, manteve muito mais que os anteriores, o senso de integração nacional, abrangendo todo o país na sua louvação ingênua e descosida.
A maior destas figuras literárias é Sousa Caldas, inspirado na intimidade pelas idéias de Rousseau, que o levaram à humilhação dum auto-de-fé penitenciário e à reclusão em convento. Mas o seu liberalismo era acompanhado de fé igualmente viva, que o fez tomar ordens sacras aos trinta anos e destruir quase todas as poesias profanas que compusera. Daí por diante escreveu poemas sagrados, duros, corretos, fastidiosos — e traduziu com mão bem mais inspirada a primeira parte dos Salmos de Davi. Mas permaneceu fiel as idéias, sempre suspeito às autoridades. Por altura de 1812-1813 redigiu uma série de ensaios político-morais sob a forma de cartas, de que infelizmente restam apenas cinco, para amostra do quanto perdemos. Elas manifestam ousadia e penetração, versando a liberdade de pensamento e as relações da Igreja com o Estado, num molde de avançado radicalismo. Já em 1791 escrevera uma admirável carta burlesca, em prosa e verso, alternadamente, sugerindo atitude mais adequada ao homem moderno, inclusive repúdio à imitação servil da antiguidade e à tirania dos clássicos no ensino.
Provavelmente por influência de Sousa Caldas — que admirava e cujo epitáfio redigiu — Elói Ottoni se dedicou a traduzir textos sagrados, publicando os Provérbios (1815) e deixando inédito o Livro de Jó. Note-se a preocupação destes poetas com o Velho Testamento — que seria largamente utilizado no Romantismo — definindo um universo religioso diverso da piedade rotineira que São Carlos representa.
Em 1813, o matemático Araújo Guimarães (1777-1838) fundou no Rio O Patriota, que durou até o ano seguinte e foi a primeira revista de cultura a funcionar regularmente entre nós, estabelecendo inclusive o padrão que regeria as outras pelo século afora: trabalhos de ciência pura e aplicada ao lado de memórias literárias e históricas, traduções, poemas, notícias. Como diretriz, o empenho em difundir a cultura a bem do progresso nacional.
O Patriota publicou versos de Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga. Dentre os colaboradores contemporâneos, sobressaiu, com a inicial B. em oito artigos de ciência aplicada, Domingos Borges de Barros (1779-1855), árcade influenciado pelos franceses, sobretudo Parny e Delille, que encontrou a certa altura uma tonalidade pré-romântica de melancolia e meditação, redimindo a banalidade de uma obra medíocre tanto na parte frívola quanto na patética, esta representada por um poema fúnebre sobre a morte do filho, Os túmulos (1825). Com José da Natividade Saldanha (1795-1830) — tipo curioso de agitador liberal, exilado a partir de 1824, — chegamos ao fim da poesia brasileira anterior ao Romantismo, no que ela tem de aproveitável. É um árcade meticuloso, nas obras líricas e nas patrióticas, mostrando que o civismo incrementava e consolidava a diretriz neoclássica, em virtude do apelo constante aos modelos romanos. Maior agitação interior e claras premonições de Romantismo encontramos nos sermões do referido frei Francisco de Monte Alverne (1784-1857), que sofreu a influência de Chateaubriand e manifestou pela primeira vez, entre nós, aquele sentimento religioso simultaneamente espetacular e langue, típico dos românticos, parecendo menos devoção que ensejo de emoção pessoal. Apesar da pompa convencional e da monotonia nas idéias, muitos dos seus discursos ainda resistem hoje à leitura, permitindo avaliar o fascínio que exerceu sobre os contemporâneos.
* * *
As letras e idéias no Brasil colonial se ordenam, pois, com certa coerência, quando encaradas segundo as grandes diretrizes que as regeram. Em ambas coexistiram a pura pesquisa intelectual e artística, e uma preocupação crescente pela superação do estatuto colonial. Esse pendor, favorecido pela concepção ilustrada da inteligência a partir da segunda metade do século XVIII, permitiu a precipitação rápida da consciência nacional durante a fase joanina, fornecendo bases para o desenvolvimento mental da nação independente.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
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