Aqueles, talvez, fossem os últimos dias da avó. Embora continuasse lúcida, os órgãos vitais já davam sinal de falência. Quase não se alimentava mais, e o coração estava muito fraco.
A moça se aproximou da cama que a avó ocupara depois de muita resistência. Durante os anos de prostração, ela negara-se a abandonar a rede. A neta entendera que chegara o fim quando a velha concordara em ir para a cama. Com cara de poucos amigos, mas concordara. Ela aproximou-se, mas não ficou dentro do campo de visão da doente.
- Quem está aí? – perguntou a avó, descerrando os olhos.
Aqueles olhos, até bem pouco tempo, falavam uma linguagem que toda a família e todos os amigos entendiam. Eles, sozinhos, sem a ajuda da fala, dos gestos, ou de qualquer outro recurso, davam ordem, mandavam e desmandavam. Bastava um olhar da dona Olívia para que todo mundo assumisse a postura que ela exigia. Agora, porém, pareciam ter perdido a força e o brilho.
- Sou eu, vovó, a Maria Helena.
- Venha cá. Chegue mais perto.
**********
- Venha cá. Chegue mais perto.
A menina aproximou-se da avó. A velha terminara de pôr a massa do bolo na forma e tinha os dedos sujos da mistura que a neta adorava. Se deixassem, comeria toda aquela massa, crua mesmo. Mas os adultos a afastavam, falando em dor de barriga. A avó, no entanto, quando terminava aquela operação, deixava que ela chupasse seus dedos sujos da massa.
Naquele dia, depois que limpou toda a massa dos dedos da avó, a menina ficou parada vendo-a dirigir-se ao quintal, onde o pai mandara construir um forno a lenha. Observando aquela avó, mãe de sua mãe, ela pensou na outra avó, a mãe de seu pai. Tão diferentes as duas! Ela não sabia exatamente o que sentia por aquela mulher forte e decidida, que não dispensava muita atenção a crianças, mas que a deixava limpar seus dedos sujos de massa de bolo.
Mas de uma coisa ela sabia, embora não entendesse muito bem por que tinha aqueles sentimentos: o que ela sentia por esta avó era algo diferente do que sentia pela outra avó. Da outra ela tinha pena. Tinha sempre vontade de protegê-la. Aquela avó não estava preparada para enfrentar o mundo. Não sabia impor sua vontade. Não era dona de sua própria casa. Da outra – a que lhe dera os dedos sujos da massa do bolo para que ela os chupasse feito um bebê sugando o leite do peito da mãe – dessa, ela tinha medo, mas era um medo misturado com admiração. Admirava suas atitudes decididas, seu porte ereto, seu ar de quem não temia nem gente nem bicho; sua franqueza, que chegava a ultrapassar os limites da conveniência. Perto dela, sentia-se protegida, embora a temesse.
Gostava de ouvi-la assoviando, com o bico afinado, suas músicas favoritas – “Lua Branca”, por exemplo. A outra avó, não, achava que assovio não era para mulheres. E brigava quando ouvia as netas tentando imitar esta avó.
Ela deixara a cidadezinha onde a menina morava com os pais, e fora para a capital. Só voltava em ocasiões especiais. Morava com uma filha que enviuvara com sete filhos pequenos. Mas não vendera o casarão onde morara e onde criara os filhos. Não o vendera nem o alugara. Quando os netos tivessem discernimento suficiente, voltaria para o interior, onde pretendia viver até a morte – visita que ela não esperava com muita tranquilidade. Nada de sorrir-lhe, nada de pôr a mesa, nada de lavrar o campo, de limpar a casa. Nada de colocar cada coisa em seu lugar. E, principalmente, nada de cumprimentos. Se tivesse condições, fecharia a porta para que ela não entrasse.
Era também muito controlada em relação a dinheiro. A menina não se lembrava de haver recebido um presente de suas mãos. Presente, para ela, era o mesmo que esbanjar dinheiro. Os presentes que ela dava aos filhos, aos netos, à família, de maneira geral, eram sempre em forma de serviço, em forma de socorro na hora das necessidades.
**********
- Helena Maria, você não ouviu? Chegue mais perto.
Aquela ordem arrancou a menina do mundo da infância, ainda degustando a massa de bolo crua. Ela puxou uma cadeira e sentou-se em uma posição que permitia à avó ver-lhe o rosto. A claridade que penetrava pela porta aberta dava condições a que a moça distinguisse com perfeição os traços fisionômicos da avó. Ou era somente a recordação do que ela fora? O rosto quadrado, com feições bem marcadas. Os lábios finos, contrastando com o nariz meio grosso – que a mãe da menina herdara. Os olhos castanhos e firmes, as maçãs do rosto, salientes. E a testa alta, de onde saíam os poucos cabelos claros e muito finos, que ela usava presos dos lados por grampos. Como estava magrinha! Fora uma mulher forte, com curvas bem acentuadas. Agora, aquele corpo parecia, antes, o de uma criança. Perdera as formas exuberantes, que deixara como herança para as filhas e as netas.
- Pronto, vovó, estou aqui.
- Vá à sala de jantar, abra a cristaleira e me traga aquele aparelho de porcelana verde. Aquele pequeno serviço de chá. Aquele que você sempre cobiçou.
- Não, vovó, eu não o cobiçava. Achava-o bonito. Admirava-o. É diferente.
A velha quis replicar e tentou abrir um sorriso, que acabou em esgar.
- Vá! Não perca tempo.
A moça trouxe as delicadas peças e espalhou-as na cama, de modo que a avó pudesse tocá-las. Mas a velha não perdeu tempo com sentimentalismo.
- Leve-o. É seu.
- Mas, vovó...
- Não diga nada. Só você gosta dessas antiguidades, que seus irmãos e primos chamam velharia. Agora vá. Deus a abençoe.
Ao cair da noite daquele dia, a velha se viu obrigada a abrir a porta para a indesejada das gentes, em uma cena da qual ela nunca quis admitir que um dia seria protagonista.
A neta, a cada vez que conciliava o sono naquela noite, sonhava com a avó batendo bolo. E, em todas as vezes em que sonhou, acordou com o gosto de massa de bolo crua na boca.
Fonte:
Colaboração da Autora
Imagem = http://www.rainhasdolar.com.br/
A moça se aproximou da cama que a avó ocupara depois de muita resistência. Durante os anos de prostração, ela negara-se a abandonar a rede. A neta entendera que chegara o fim quando a velha concordara em ir para a cama. Com cara de poucos amigos, mas concordara. Ela aproximou-se, mas não ficou dentro do campo de visão da doente.
- Quem está aí? – perguntou a avó, descerrando os olhos.
Aqueles olhos, até bem pouco tempo, falavam uma linguagem que toda a família e todos os amigos entendiam. Eles, sozinhos, sem a ajuda da fala, dos gestos, ou de qualquer outro recurso, davam ordem, mandavam e desmandavam. Bastava um olhar da dona Olívia para que todo mundo assumisse a postura que ela exigia. Agora, porém, pareciam ter perdido a força e o brilho.
- Sou eu, vovó, a Maria Helena.
- Venha cá. Chegue mais perto.
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- Venha cá. Chegue mais perto.
A menina aproximou-se da avó. A velha terminara de pôr a massa do bolo na forma e tinha os dedos sujos da mistura que a neta adorava. Se deixassem, comeria toda aquela massa, crua mesmo. Mas os adultos a afastavam, falando em dor de barriga. A avó, no entanto, quando terminava aquela operação, deixava que ela chupasse seus dedos sujos da massa.
Naquele dia, depois que limpou toda a massa dos dedos da avó, a menina ficou parada vendo-a dirigir-se ao quintal, onde o pai mandara construir um forno a lenha. Observando aquela avó, mãe de sua mãe, ela pensou na outra avó, a mãe de seu pai. Tão diferentes as duas! Ela não sabia exatamente o que sentia por aquela mulher forte e decidida, que não dispensava muita atenção a crianças, mas que a deixava limpar seus dedos sujos de massa de bolo.
Mas de uma coisa ela sabia, embora não entendesse muito bem por que tinha aqueles sentimentos: o que ela sentia por esta avó era algo diferente do que sentia pela outra avó. Da outra ela tinha pena. Tinha sempre vontade de protegê-la. Aquela avó não estava preparada para enfrentar o mundo. Não sabia impor sua vontade. Não era dona de sua própria casa. Da outra – a que lhe dera os dedos sujos da massa do bolo para que ela os chupasse feito um bebê sugando o leite do peito da mãe – dessa, ela tinha medo, mas era um medo misturado com admiração. Admirava suas atitudes decididas, seu porte ereto, seu ar de quem não temia nem gente nem bicho; sua franqueza, que chegava a ultrapassar os limites da conveniência. Perto dela, sentia-se protegida, embora a temesse.
Gostava de ouvi-la assoviando, com o bico afinado, suas músicas favoritas – “Lua Branca”, por exemplo. A outra avó, não, achava que assovio não era para mulheres. E brigava quando ouvia as netas tentando imitar esta avó.
Ela deixara a cidadezinha onde a menina morava com os pais, e fora para a capital. Só voltava em ocasiões especiais. Morava com uma filha que enviuvara com sete filhos pequenos. Mas não vendera o casarão onde morara e onde criara os filhos. Não o vendera nem o alugara. Quando os netos tivessem discernimento suficiente, voltaria para o interior, onde pretendia viver até a morte – visita que ela não esperava com muita tranquilidade. Nada de sorrir-lhe, nada de pôr a mesa, nada de lavrar o campo, de limpar a casa. Nada de colocar cada coisa em seu lugar. E, principalmente, nada de cumprimentos. Se tivesse condições, fecharia a porta para que ela não entrasse.
Era também muito controlada em relação a dinheiro. A menina não se lembrava de haver recebido um presente de suas mãos. Presente, para ela, era o mesmo que esbanjar dinheiro. Os presentes que ela dava aos filhos, aos netos, à família, de maneira geral, eram sempre em forma de serviço, em forma de socorro na hora das necessidades.
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- Helena Maria, você não ouviu? Chegue mais perto.
Aquela ordem arrancou a menina do mundo da infância, ainda degustando a massa de bolo crua. Ela puxou uma cadeira e sentou-se em uma posição que permitia à avó ver-lhe o rosto. A claridade que penetrava pela porta aberta dava condições a que a moça distinguisse com perfeição os traços fisionômicos da avó. Ou era somente a recordação do que ela fora? O rosto quadrado, com feições bem marcadas. Os lábios finos, contrastando com o nariz meio grosso – que a mãe da menina herdara. Os olhos castanhos e firmes, as maçãs do rosto, salientes. E a testa alta, de onde saíam os poucos cabelos claros e muito finos, que ela usava presos dos lados por grampos. Como estava magrinha! Fora uma mulher forte, com curvas bem acentuadas. Agora, aquele corpo parecia, antes, o de uma criança. Perdera as formas exuberantes, que deixara como herança para as filhas e as netas.
- Pronto, vovó, estou aqui.
- Vá à sala de jantar, abra a cristaleira e me traga aquele aparelho de porcelana verde. Aquele pequeno serviço de chá. Aquele que você sempre cobiçou.
- Não, vovó, eu não o cobiçava. Achava-o bonito. Admirava-o. É diferente.
A velha quis replicar e tentou abrir um sorriso, que acabou em esgar.
- Vá! Não perca tempo.
A moça trouxe as delicadas peças e espalhou-as na cama, de modo que a avó pudesse tocá-las. Mas a velha não perdeu tempo com sentimentalismo.
- Leve-o. É seu.
- Mas, vovó...
- Não diga nada. Só você gosta dessas antiguidades, que seus irmãos e primos chamam velharia. Agora vá. Deus a abençoe.
Ao cair da noite daquele dia, a velha se viu obrigada a abrir a porta para a indesejada das gentes, em uma cena da qual ela nunca quis admitir que um dia seria protagonista.
A neta, a cada vez que conciliava o sono naquela noite, sonhava com a avó batendo bolo. E, em todas as vezes em que sonhou, acordou com o gosto de massa de bolo crua na boca.
Fonte:
Colaboração da Autora
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