quinta-feira, 15 de julho de 2010

Vicente Riva Palacio (As Mulas de sua Excelência)


Na grande extensão da Nova Espanha, pode-se afiançar que não existia parelha de mulas como as que puxavam a carruagem de Sua Excelência, o Senhor Vice-Rei. E note-se que eram tão da­dos os conquistadores do México, naquele tempo, à criação de mulas, e tão habituados a usá-las como cavalgaduras, que os reis de Espanha, temendo que tal inclinação fosse causa do abandono da criação de cavalos e do exercício militar, determinaram fossem obrigados os principais habitantes da terra a ter cavalos próprios e disponíveis para o combate. Porém as mulas do vice-rei eram a inveja de todos os ricos e o desespero dos fazendeiros da capital da colônia.

Altas, de peito largo como o potro mais possante; com as quatro pernas finas e nervosas como as de uma rena; cabeça descarna­da, e as móbeis orelhas e os negros olhos como os de um veado. Tinham a cor tirante ao castanho, embora com alguns reflexos dourados; trotavam com tamanha rapidez, que mal poderia acompanhá-las um cavalo a galope.

Ademais, eram de tanta nobreza e tão boas de rédea que, no dizer do cocheiro de Sua Excelência, poderiam ser guiadas, se não com duas teias de aranha, pelo menos com dois leves cordéis de seda.

Todos os dias o vice-rei se levantava mal nascia o sol; esperava o coche ao pé da escada do palácio, descia vagarosamente; contemplava orgulhoso a sua incomparável parelha; entrava na carruagem; persignava-se com devoção; e lá se iam as mulas, tirando chispas das poucas pedras que encontravam no caminho.

Depois de largo passeio pelos arredores da cidade, parava o vice-­rei, pouco antes das oito da manhã, em frente à catedral, que a esse tempo, e com grande atividade, se estava construindo.

Ia muito adiantada a obra, e nela trabalhavam numerosas turmas, que, em geral, se dividiam por nacionalidades — uma de espanhóis, outra de índios, outras de mestiços e outras de negros —, com o fim de evitar choques, muito comuns, infelizmente, entre operários de raças diversas.

Havia, entre aquelas turmas, duas que se distinguiam pela prontidão e esmero no desempenho das mais delicadas tarefas que lhes confiavam; e o curioso é que uma delas se compunha de espanhóis e a outra de índios.

Era capataz da espanhola um vigoroso asturiano, aí dos seus quarenta anos de idade, chamado Pedro Noriega. O homem de pior caráter, mas de melhor coração, que se poderia encontrar nessa época entre os colonos.

Luís de Rivera dirigia como capataz a turma dos índios, por­que tinha mais aparência de índio que de espanhol, apesar de mestiço do primeiro cruzamento, e falava com muita facilidade a língua dos castelhanos e o idioma nauatle ou mexicano.

Tampouco era Luís de Rivera uma índole angelical; turbulento e brigão, já por mais de uma vez dera que fazer aos aguazis.

Por desgraça, tiveram as duas turmas de trabalhar muito per­to uma da outra, e, quando Pedro Noriega se agastava com os seus, o que se dava muitas vezes por dia, gritava-lhes com voz de trovão:

— Que espanhóis mais brutos! Parecem índios!

Mal, porém, havia terminado aquela frase, e Rivera, viesse ou não viesse ao caso, gritava para os seus:

— Que índios mais estúpidos! Parecem espanhóis!

Como é fácil imaginar, as conseqüências disso tinham de ser fatais. Os diretores da obra não trataram de separar aquelas turmas, e, amiudando-se os insultos, uma tarde Noriega e Rivera foram, não às mãos, e sim às armas, porque cada um deles já vinha preparado para o que desse e viesse; e coube a parte pior ao mestiço, que ali caiu morto, de uma punhalada.

O caso degenerou em tumulto, e para acalmá-lo foi necessário se recorresse à justiça e viesse tropa de palácio.

Apartaram os contendores, apanharam o cadáver de Luís de Rivera, e de braços atados saiu dali o asturiano, entre os aguazis, para o cárcere da cidade.

Como o vice-rei estava muito indignado, como os senhores do tribunal ardiam em desejo de dar um exemplo e ao mesmo tem­po de agradar ao vice-rei, e como existia um edito real dispondo que os crimes de espanhóis contra filhos da terra fossem castiga­dos com severidade maior, antes de quinze dias estava o processo concluído e Noriega condenado à forca.

Baldados foram todos os esforços para se obter o indulto; nem as ternuras da vice-rainha, nem os memoriais das damas, nem o prestígio do Senhor Arcebispo, nada: firme e resoluto, o vice-rei a tudo se negava, dando como razão a necessidade de um singu­laríssimo e notável escarmento.

A família de Noriega, que se reduzia à mulher e a uma vistosa moça de dezoito anos, todos os dias, desolada, andava, como vul­garmente se diz, de Herodes para Pilatos, e passava largas horas ao pé da escada do palácio, tentando incessantemente abrandar com o seu pranto o empedernido coração de Sua Excelência.

Muitas vezes esperavam junto ao coche em que o vice-rei ia montar, e contavam suas aflições, que a desgraça sempre conta, ao cocheiro do vice-rei, um andaluz moço e solteiro.

Como era natural, àquele jovem andaluz enterneciam tanto as lágrimas da mãe como os negros olhos da filha. No entanto, não ousava ele falar ao vice-rei, compreendendo que o que tantas personagens não haviam conseguido, ele não deveria sequer tentar.

Nada obstante, ainda na véspera do dia marcado para a execução dizia às mulheres, entre convicto e pesaroso: "Deus ainda pode obrar um milagre! Deus ainda pode obrar um milagre!"

E as pobres mulheres viam um raio de esperança; pois, nos grandes infortúnios, os que não acreditam nos milagres sonham sempre com o inesperado.

Chegou por fim a manhã terrível da execução. Coberto de escapulários o peito, os olhos vendados, arrimando-se no braço dos sacerdotes, que aos brados o exortavam naquele transe fatal, causando pavor até aos próprios espectadores, saiu Noriega do cárcere acompanhado de imensa multidão, que marchava lenta e silenciosa, enquanto o pregoeiro gritava em cada esquina: “Esta é a justiça que se manda fazer com este homem, por homicídio cometido na pessoa de Luís de Rivera. Seja enforcado. Quem assim faz, que assim pague".

Naquela manhã subiu o vice-rei à carruagem preocupado, e sem se deter, como de hábito, a examinar a sua parelha de mulas; tal­vez se debatesse na incerteza sobre se aquilo era um ato de energia ou de crueldade.

O cocheiro, que já sabia o caminho que tinha de seguir, mo­veu de leve as rédeas da mula, e os animais partiram a trote. Cerca de um quarto de hora passou imóvel o vice-rei no fundo do coche, entregue às suas meditações; porém de súbito sentiu violenta sacudidela, e a rapidez da marcha aumentou de maneira notável. A princípio deu pouca atenção ao caso, mas a cada momento era mais rápida a carreira.

Sua Excelência pôs a cabeça de fora de uma das janelinhas e perguntou ao cocheiro:

— Que é isso?

— Senhor, estes animais se espantaram e não querem obedecer.

E o coche atravessava ruas, vielas e praças, e dobrava esqui­nas, sem nunca se chocar de encontro às paredes, mas como se não levasse rumo certo e fosse caminhando à toa.

Era o vice-rei homem animoso, e resolveu esperar o resultado daquilo, tratando de colocar-se em um dos ângulos da carruagem e cerrar os olhos.

De repente as mulas estacaram. Tornou o vice-rei a pôr a cabeça fora da janelinha, e viu-se rodeado de uma multidão de homens, mulheres e crianças que gritavam alegremente:

— Indultado! Indultado!

O coche do vice-rei acabava de encontrar-se com a comitiva que acompanhava Noriega ao patíbulo; era de lei que, se o monarca na metrópole ou os vice-reis nas colônias encontrassem um homem que ia ser executado, isto implicava o indulto. Noriega, com esse encontro feliz, ficou indultado.

Tornou o vice-rei ao palácio, não sem experimentar certo contentamento por haver salvado a vida de um homem sem prejuízo de sua energia.

Reconduziram ao cárcere o indultado Noriega.

Não se sabe se o cocheiro acreditava em milagre. O que se pôde averiguar, isto sim, foi que três meses depois ele se casou com a filha de Noriega, e que Sua Excelência lhe fez um grande presente de núpcias.

Acrescenta a tradição haver sido aquele acontecimento que deu motivo ao real edito que ordenava não saíssem do palácio os vice-­reis em dia de execução judicial.

Ora vejam lá de que são capazes as mulas!

Fonte:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai. Mar de histórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, vol. 7.

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