quinta-feira, 29 de julho de 2010

Joaquim Cardozo (A Pesca de Lagostim)

Pintura de Imarly Bosetti Martinez,
A noite estava escura, com nuvens pesadas ameaçando chuva, nuvens densas não deixando ver as estrelas, e um vento pequeno soprava; esse ambiente tempestuoso e fusco anunciava a possibilidade de uma boa pesca de lagostim. Por isso resolvemos fazê-la. Estávamos, para isso, preparados na praia; dispostos a partir numa jangada, em demanda de uns recifes de pedras, distantes, no mar àquela hora em maré vazante.

Ótimo! A maré baixa facilitaria descobrir nas pedras as melhores locas desse apreciado crustáceo. Equipados com os utensílios indispensáveis à pescaria – os cestos, as iscas, as forquilhas, os feixes de folhas secas de bananeira que acenderíamos e com eles ofuscaríamos os lagostins –, com tudo isso, ficamos aguardando a vinda da jangada. Éramos quatro: eu e mais três amigos, dois dos quais nunca tinham participado de semelhante proeza.

A maré continuava a descer. Estávamos já impacientes com a espera, um pouco longa; por fim a jangada, com a sua doce pancada, o seu choque uniforme na água levemente intranqüila, chegou bem perto da praia. Entramos n’água e alcançamos aqueles paus flutuantes, que nos levariam aos recifes distantes e, a essa hora, já quase inteiramente descobertos; nos aconchegamos, o melhor que pudemos, no seu dorso, e logo depois o jangadeiro deu sinal de partida.

Atravessamos aquele mar macio, manso, de água parada, contida pelos recifes. Íamos alegres, satisfeitos, esperançosos no bom êxito da nossa atuação como pescadores de lagostim. Era mais uma experiência que realizávamos como pescadores improvisados. De longe ainda avistávamos a praia, e as luzes das casas iam, aos poucos, se envolvendo na bruma que cobria, àquela hora – quase dez horas da noite – o povoado de onde partimos. Por fim, tudo do lado da terra desaparecera. Daquele lado, tudo eram sombras tempestuosas. Navegamos por pouco tempo e chegamos afinal aos recifes. Era um conjunto de pedras eriçadas, surgindo, naquele momento, das águas da maré baixa, e que fica, quase sempre, inteiramente coberto nas marés altas.

Chegamos, derivamos um pouco à procura de um bom lugar para saltarmos sobre as pedras; não foi muito fácil encontrá-lo, no entanto conseguimos desembarcar, e, numa pedra das mais salientes, o jangadeiro amarrou a jangada. Do lado do mar aberto vinham, no sopro de um vento forte, alguns golpes de ressaca.

Saímos depois os cinco, pois o jangadeiro ia conosco – pescador experimentado que era nos ajudaria naquela pesca. Saímos a caminhar sobre os recifes, pisando com precaução para não escorregar nas pedras lisas, úmidas e musgosas. Percorremos, nos afastando do ponto em que desembarcamos, uma grande distância, até que deparamos com um lugar onde, por certo, existiam boas locas de lagostim. Acendemos os feixes de folhas secas de bananeiras; empunhamos o archote, iluminando a região, dirigindo-o para as locas, agora visíveis, dos lagostins, que iam aos poucos saindo dos seus esconderijos, que eram muitos. Atraídos pela luz cegante das tochas, os crustáceos ficavam fascinados e se deixavam facilmente apanhar. Usamos então as forquilhas sobre o dorso de cada um, prendendo-os, um após outro, sem grande dificuldade. Presos nas forquilhas os jogávamos depois dentro dos cestos. Cada um de nós se ocupava de uma loca, fazendo descer a isca na ponta de um pau, como chamariz; fazendo saírem da toca os mais recalcitrantes.

Estávamos tão empenhados naquela distração e tão embevecidos com o sucesso da pescaria que não tínhamos o sentimento de que tudo aquilo devia se passar em poucos momentos, pois era certo que aquelas pedras, dentro de pouco tempo, estariam cobertas totalmente pelas águas. Daqueles recifes, não mais se veria daí a pouco, uma ponta de pedra aflorante. Estávamos dominados realmente por uma verdadeira fascinação, uma espécie de atração que nos provocava aquele exercício de pescar. Era uma obsessão permanente, aquela de querer desvendar e prender os pequenos seres que apareciam à luz dos fachos acesos. Os lagostins se deslumbravam e nós ficávamos enlevados em vê-los evoluir dentro da noite das águas; noite dentro da noite tempestuosa e que se converteria muito em breve no mais escuro e rumoroso aguaceiro.

Pescávamos e nada mais víamos ou pressentíamos, como se toda aquela festa pudesse se prolongar até alta madrugada. Pescamos, de qualquer modo, ainda por algum tempo, e estávamos já com os nossos cestos repletos de crustáceos, mas eram tantos e tão fáceis de apanhar que continuávamos sem o menor receio do surgimento de qualquer imprevisto. De repente, porém, alguém lembrou que a maré tinha virado. Precisávamos bater em retirada quanto antes; precisávamos voltar com urgência ao ponto onde desembarcamos da jangada; foi uma surpresa, e como que um despertar. Com toda a pressa, começamos a juntar os cestos e todos os outros utensílios usados na pesca, e logo procuramos chegar, o mais breve possível, ao local onde tínhamos deixado amarrada a jangada. Estávamos bastante longe do local.

Devíamos caminhar depressa e com maior precaução do que tivemos antes, pois as águas agora cobriam grande parte das pedras, e era difícil manter o equilíbrio sobre elas, dado o jogo de ondas da maré crescente. Conosco, voltava também o jangadeiro, que conhecia bem o local onde tínhamos desembarcado. Saímos como que de um sonho, para, aos poucos, entrarmos num verdadeiro pesadelo. A marcha de volta, que sobre os recifes fazíamos, se realizava com dificuldade crescente. Carregados com os apetrechos da pesca, sobretudo o cesto com os lagostins, enfrentávamos uma situação muito diferente daquela em que nos encontramos em nossa vinda: as pedras, mais do que pensávamos, estavam quase todas levemente cobertas pelas águas da maré. Algumas pontas, entretanto, ainda afloravam; em muitos lugares caminhávamos com os pés já mergulhados e o perigo de escorregar era mais freqüente. Prosseguimos, apesar de tudo, com rapidez, e, quando escorregávamos, tínhamos o cuidado de nos amparar nas pedras mais altas e agudas. As águas do mar, cada vez mais fortes, espadanavam, fazendo mesmo pequenas ressacas, que molhavam a todos nós; íamos, cautelosamente, sobre as pedras alagadas, mantendo acesos os fachos de folhas de bananeiras; restavam, porém, poucos luzeiros desse tipo e, se não alcançássemos em tempo o ponto onde deixamos a jangada, teríamos que ficar no escuro, e enfrentar as trevas daquela noite fechada; de vez em quando, atirávamos na água uma tocha quase inteiramente consumida; acendíamos outra e, aos poucos, chegamos ao ponto onde devíamos ter amarrado a jangada. Digo devíamos ter, porque, no referido local, a situação das pedras, com o crescimento da maré, modificou-se por completo; e a ausência da embarcação em que viéramos nos dava uma incerteza se que era realmente aquele o lugar do nosso desembarque.

Havia dúvida a respeito do local, até que o jangadeiro reconheceu a pedra onde amarrara a jangada, constatando realmente que a mesma se tinha desprendido e devia estar à deriva, perdida na escuridão da noite. O jangadeiro pensava em lançar sobre as pedras o tauaçu, as depois achou que ele não daria uma ancoragem suficiente, e desistira. Aqueles paus flutuantes estariam, agora, à deriva no mar; mas em que direção? A que distância das pedras do recife?

Não se podia saber. Talvez estivesse na direção da praia, talvez se afastando mar adentro. Estávamos perplexos e confusos. E agora, como voltar ao povoado de onde viéramos? Um certo nervosismo se apoderou de nós todos. Ficamos ainda comentando o que tinha acontecido e esquecemos por um momento que a maré subia. A maré subia! De cada vez que a onda vinha, atingia as pedras ainda descobertas num ponto mais alto. De repente, tivemos que fazer as nossas confissões.

Soube então que dois dos que estavam comigo não sabiam nadar; numa atitude nervosa, quase alucinados, eles estavam prevendo um fim desesperado: se a maré, crescendo, chegasse a cobrir totalmente as pedras e, sobre estas, as águas atingissem, como de habitual, a altura de um metro, decerto morreríamos afogados.

Eu e o meu amigo, que sabíamos nadar, ficamos também dominados por uma angústia terrível, que era pensar como íamos deixar ali, sobre as pedras, os dois que não sabiam nadar; e pensar de que maneira poderíamos vencer a nado a distância, agora mais longa, e num mar muito agitado; distância dos recifes até a praia.

E a maré subia! Subia! Ouvíamos a onda bater cada vez mais alta nas pedras, cada vez mais avançava e se arrastava de volta, em curvas caprichosas. A maré subia! Os fachos que ainda nos iluminavam iam, pouco a pouco, acabando. A luz não dava para distinguir cinco metros de noite sobre o mar, e, na área, nada se via que pudesse ser uma jangada. Certamente ela estava bastante afastada dos recifes.

Foi então que o jangadeiro tomou uma resolução: atirar-se à água e procurar a jangada. Não devia estar muito longe, dizia ele. E assim fez; lançou-se na água e começou a nadar; logo perdemo-lo de vista, penetrou na noite escura, marítima. Perguntamos aos berros:

– Jangadeiro! Algum sinal da jangada?

Ouvíamos, vindo da distância escura, a sua resposta:

– Nenhum! A escuridão não me deixa distinguir coisa alguma!

A aflição entre nós prosseguia, ou melhor, subia, como subia a maré, no mesmo compasso da maré, com a mesma ondulação, as mesmas súbitas pancadas. Os amigos que não sabiam nadar começaram a chorar, desolados, perdidos na ausência de tomarem uma decisão. Depois de algum tempo, todos os fachos quase queimados, ficamos à espera de qualquer sinal do jangadeiro; por fim, vimo-lo aproximar-se, nadando, para o local onde estávamos; chegava cansado e desanimado.

– Então? dissemos todos. Já com a água no meio da canela, respondeu:

– Nada! Está muito escuro, é impossível ver dois metros adiante.

Tomei então a deliberação seguinte: disse-lhe que voltasse a nadar em torno daquele ponto onde estávamos, mas agora levaria um facho na mão, um dos que ainda restavam, para melhor iluminar aquelas águas escuras.

E ele voltou a investigar a densa escuridão, agora erguendo numa das mãos um luzeiro; nadando somente com os pés e o braço livre, avançou mar adentro; em breve saiu daquela treva espessa, tornou-se apenas um ponto luminoso que, de repente, desaparecera. Ficamos aflitos. Cada vez mais os que não sabiam nadar não davam pausa ao seu desespero, choravam, gemiam, arrancavam os cabelos. E a maré subia! Subia! Subia; as águas do mar subiam, e os fachos de luz morriam. De repente, ouvimos um grito distante:

– Achei a jangada!

Foi um alívio. Aos lábios de todos voltou um sorriso de alegria, houve um desafogo, até os que choravam criaram novo ânimo, convictos de que o seu terrível dilema tinha cessado. Mas logo, para destruir toda a esperança, veio outro grito:

– Não! Não é; é um tronco boiando.

De novo, e agora mais profunda, a decepção; um desânimo total apoderou-se de todos nós; naquele momento, pensamos e decidimos morrer todos. Nunca deixaríamos ali, abandonados, os que estavam fadados a perder a vida sob as águas de maré cheia; tínhamos determinado.

Faríamos, entretanto, o máximo que pudéssemos. Tentaríamos levá-los, os dois em nossas costas, até a praia, enfrentando aquele mar já encapelado pela crescente ameaça de próximos aguaceiros, procurando vencer a nado a distância até a praia; lutando contra as águas da maré cheia e os açoites do vento cada vez mais constantes e violentos.

As nuvens se espessavam, se escureciam cada vez mais; ameaçava chover dentro em breve. O jangadeiro não dava mais sinal de vida, os feixes de folhas secas de bananeira tinham-se esgotado; e a maré subia, subia sempre. A água cobria agora todas as pedras; estávamos com os pés inteiramente dentro d’água, e em muitos, lugares, também as pernas mergulhadas mais de um palmo. O equilíbrio sobre as pedras tornava-se cada vez mais difícil. Sobre elas, as águas passavam com um movimento vivo e oscilante, numa dança de avanços e recuos, de giros e rodopios, confirmando que a maré continuava subindo.

Já estávamos preparados, na escuridão, para lançarmo-nos ao mar e nadarmos, levando os nossos companheiros em direção à praia, quando uma voz longínqua, quase apagada, falou da noite do mar, como uma revelação misteriosa; como uma voz vinda do além, uma voz distante, vinda do outro lado do mundo, vinda da morte de alguém.

E a voz dizia, ao mesmo tempo que a água subia:

– Achei a jangada! Achei a jangada!

Parecia a voz do jangadeiro, ou a voz de além-túmulo. Estacamos, paramos, a escutar, não acreditando na realidade daquela voz, que parecia uma ressonância, dentro de nós mesmos, da outra que já tínhamos ouvido, pronunciando as mesmas palavras; ou como o canto ilusório de uma sereia:

– Achei a jangada!

Era de fato a jangada que se aproximava: ouvíamos ainda distante, dentro do clamor das ondas, o seu resvalar sobre a superfície do mar. Com um grito de júbilo, todos nós o esperamos no escuro, uma vez que não havia mais um facho para acender: o que o jangadeiro levara consigo, tinha se apagado.

Tirei a minha camisa que estava ainda seca; enrolei-a em torno de um pau que ainda restava, tirei fósforos e com dificuldade consegui inflamá-la, aliás quase depois de gastar todos os fósforos; empenhei-me vivamente nesse trabalho, único meio de indicarmos onde nós estávamos. O pano afinal pegou fogo e se tornou o último archote; dirigida por essa luz, a jangada encontrada chegou enfim até nós; à sua aproximação, atiramo-nos os quatro de bruços sobre os seus paus flutuantes.

Abandonamos tudo: os cestos com lagostins e todos os aparelhos de pesca; o jangadeiro, sem mais nada, impeliu a jangada em direção à praia, com a maré já alta. O céu continuava enfarruscado. De súbito, sobre nós, começou a cair uma chuva intensa e pesada: uma chuva cantante, completa, amargurada.

Fonte:
http://www.joaquimcardozo.com/

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