sábado, 17 de julho de 2010

Nilto Maciel (Poemas Escolhidos)


POEMA EM DÓ MAIOR

Agora, longe da praça,
dos pássaros, de meus passos,
longe de mim, do passado.
Aqui, no sofá estendido,
silencioso, só, presente,
porvir. Ao fundo,
música, chorinho,
valsa inacabada.
Tudo pequeno,
o mundo, o tempo.
Ou tudo sem fim,
e sem começo,
sem meio.

Agora o sono,
a mariposa insone,
a lua perplexa,
a noite sumindo.

VISIONARIO

Da varanda do apartamento
olho para a cidade.
Torre de marfim,
torre de babel.
Árvores agitadas,
carros correndo na avenida,
pessoas andando à toa,
um cão vadio.
Cheiros diversos,
chiados, barulhos.
Onde estará o centro do mundo?
Onde estará acontecendo
a notícia de amanhã?
Dentro daquele ônibus
viajará a moça iludida
e que poderia estar comigo.
Viajará o rapaz triste,
embriagado e que poderia
me contar sua vida
- arcabouço de um conto.
O motorista irá atropelar
uma criança sem futuro.
No automóvel de luxo
vai a mulher
que brigou com o marido
e anda atrás de vingança.
Na parada de ônibus
talvez esteja o assassino
de logo mais.
Na tela do cinema
a musa de todos nós,
estrela que se apagará.
Numa cadeira
um homossexual olhará
para as pernas do rapaz
que come pipoca.
Noutra cadeira um senhor
alisará o próprio bigode
pensando no passado.
No banco da praça
o mendigo comerá pão
olhando para as nádegas
das mocinhas que passam.
No palácio o presidente
alinhará o decreto
que me dará dor de cabeça.
O deputado beberá uísque
no bar e falará de si mesmo.
Sentado num sofá o homem
lerá o romance da mulher
deitada eternamente
em berço esplêndido.
O poeta escreverá uns versos
que lerão daqui a dez anos,
versos sem rima ou sem ímã,
sem métrica e sem ritmo.
No meio do mato a onça
farejará o veado;
o macaco morderá o rabo
do tatu; a formiga
caminhará sem rumo;
e tudo estará escuro.
No rio o peixe, a água,
o frio, o pescador.
No mar o tubarão,
a baleia, o turbilhão.
No céu a estrela virando pó,
o foguete se espatifando,
o infinito e nada.

Aqui, sozinho, longe e perto
de todos, de tudo,
quero estar no centro do mundo,
na crista da onde,
quero ser testemunha do crime,
da crise, do apocalipse.
Quero ver de perto o amor, o ódio,
a solidão, a multidão.
Quero estar no palco, no show,
no centro da cidade,
do campo, do rio, do mar,
do céu, do universo.
Quero a onipresença,
a onisciência,
toda a ciência.

O JANGADEIRO

Para Edinardo, às vésperas do primeiro
ano de sua partida.

Arrodeio a superesfera
na minha jangada amiga,
rindo de quem me espera,
chorando à moda antiga.

De quantos paus ela é feita
só dizem os jangadeiros
velhos e companheiros,
fugidos da rota estreita.

Não rio por palhaçada
nem choro angustiado;
já me bastava a maçada
de ansiar o desejado.

Levo comigo a coroa
dos filhos da Eternidade,
relendo Fernando Pessoa
frente a toda realidade.

Passeio as nebulosas,
os astros, o espaço sem fim,
saudadoso das carinhosas
meninas do Otávio Bonfim.

De dois velhos meus criadores,
meu primeiro e doce abrigo,
de duas pequenas flores,
em quem pensando prossigo.

De uma soidade que amei
e que na Bahia deixei,
de sete meus germanos
deixados a fazer planos.

Dos parceiros risonhos
do pobre Amadeu Furtado,
esses bebedores bisonhos
de fel, cachaça e melado.

Mergulho a atmosfera
montado em cavalo-de-pau,
zombando da besta-fera,
lembrando o primeiro mau.

Conduzo comigo um poema
jamais publicado em papel
para reler na suprema
corte do mais alto céu.

Vasculho os tempos perdidos
no carro dos deuses gregos,
tristonho de ver iludidos
os que ficaram aos pregos.

De recordar os pileques
que com meu mano bebi,
choroso de ver os moleques
famintos do que comi.

Cavalgo o cavalo das eras
na mais incrível carreira,
carregando uma flor de parreira
para o homem e para as feras.

Na minha ida desejei
deixar o que sempre sonhei:
projetos de muito amar
para a terra e para o mar.

O mundo que nos aguarda
não tem regulamentos nem leis,
é o país do povo sem guarda,
não tem um, nem dois, nem três,

tem milhões de seres iguais,
é a utopia dos pensadores,
o sonho dos ancestrais,
a terra só dos amores.

Comigo navegam poetas,
revolucionários e santos,
partimos no rumo das metas,
dos fins, começos e cantos.

Fonte:
Nilto Maciel. Visionário.
http://www.niltomaciel.net.br

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