terça-feira, 16 de agosto de 2011

Lila Ripoll (Antologia Poética)


CANÇÃO DA CHUVA

Cai uma chuva tão fina
que quase nem molha a gente.
É uma música em surdina
que apenas a alma sente.

Junto meu rosto à vidraça
e olho a rua sem pensar.
Fico em estado de graça,
como quem vai comungar.

Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida,
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!

Senhora tu não devias
permitir tantos enganos.
Há excesso de alegrias,
e excesso de desenganos.

Por onde andaram meus passos
vi sinais de desalentos.
Vaguei por muitos espaços
e senti todos os ventos.

Ventos do sul, vento norte,
ventos do leste e do oeste,
tão diversos como a sorte
que tu, na vida, nos deste.

Senhora dos mundos vivos,
Nossa Senhora da Vida —
quantos dias negativos
na minha estrada perdida!

CANÇÃO DE AGORA

Ontem meu peito chorava.
Hoje, não.
Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

Estava ontem sozinha,
tendo a meu lado, sombria,
minha própria companhia.
Hoje, não.

Morreu de tanto morrer
a pena que em mim vivia.
Morreu de tanto esperar.
Eu não.

Relógios do tempo andaram
marcando o tempo em meu rosto.
A vida perdeu seu tempo.
Eu não.

Também cansa a desventura.
Também o sol gasta o chão.

CANTIGA DE RODA

"Bota terra no meu lenço,
pra plantá manjericão."
— Ai! versos da minha infância,
meus anos não volverão.

"Atirei um limão verde
por cima da sacristia."
— Ai! vozes que me prenderam
a um passado de alegria!

"Menina, minha menina,
cinturinha de retrós."
— Ai! balcão de nossa loja,
onde andarão meus avós?

"O cravo brigou com a rosa
defronte de uma sacada."
— Ai! cantigas esquecidas,
crianças de mãos trançadas.

"Roda, roda cirandinha,
vamos todos cirandar."
— Ai! prendas da minha infância,
deixem meus olhos chorar!

"Lá vem o sol, vem chegando
redondo como um botão."
— Ai! joguem terra em meu corpo
mas deixem meu coração.

Ai! joguem terra em meu corpo
mas poupem meu coração.

Botem terra no meu corpo
mas plantem manjericão!

NO CASARÃO

Nasci num casarão velho, de esquina,
Escondido entre salsos pensativos.
E foi lá que a minha alma, ainda menina,
Olhando dia e noite os poentes vivos,
Aprendeu a viajar no pensamento.
Eu fui uma criança sem infância.
Senti, desde pequena, esse tormento
Que o sonho traz depois de cada ânsia,
E que é o maior dos males que conheço!
Às vezes, noite alta, eu levantava,
Vestia minha roupa pelo avesso
E saía sozinha (a lua espiava!)
Para olhar as estrelas e os céus altos...
O quintal era um mundo diferente,
Que eu percorria sem temer assaltos.
Meu corpo, que já era um pobre doente,
Tiritava de frio e de emoção
Quando o vento arrepiava os velhos salsos
Que arrastavam os braços pelo chão...
Meia-noite... Fantasmas... Bruxas brancas...
Eu sozinha vagando pelo escuro...
Minha casa fechada com mil trancas,
E as pedras a cair do velho muro...
Quando a lua fugia, já cansada,
Meus passos, silenciosos, apagados,
Voltavam pelas pedras da calçada
Que a nossa casa tinha de um dos lados.
De manhã: os olhares, as perguntas...
(Eu estava tão branca. Tão sem cor.
As olheiras iguais às de defuntas...)
— "Era o vento!" "Era o frio!" "Era o calor!":
A mentira que achava na ocasião...
E de noite, outra vez, às escondidas,
Abandonava o velho casarão...

PRIMAVERA

Setembro entrou pela janela adentro,
com um puro frescor de primavera.
Inunda-se de luz toda a paisagem
e o meu canto transborda à tua espera.

A doçura da tarde é uma carícia.
Entreabrem-se flores docemente.
As nuvens estão nítidas e imóveis
no céu azul aberto à minha frente.

Há murmúrios e vozes pela rua.
Frescos risos distraem meus ouvidos
e ficam borbulhando como fonte
ou como choque de cristais partidos.

A ternura contida de meu peito
ameaça transbordar dentro da tarde.
como um rio fugindo de seu leito.

Minha pobre ternura ignorada,
minha heróica ternura impressentida,
teima em mostrar-se como a primavera,
pensa em tocar de leve a tua vida.

É difícil ser poeta e ser mulher.
É difícil cantar sem revelar.
Pode o poeta contar o seu segredo,
mas a mulher o seu deve guardar.

A ternura contida de meu peito
ameaça transbordar dentro da tarde,
como um rio fugindo de seu leito.

Fecharei a janela à primavera
e calarei o poeta nesta tarde,
para que o sonho em nada me perturbe,
nem meu canto transborde à tua espera.

Fontes:
RIPOLL, Lila. Antologia poética. Rio de Janeiro: Leitura; Brasília: INL, 1968.
RIPOLL, Lila. Ilha difícil: antologia poética. Sel. e apres. Maria da Glória Bordini. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1987

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