Os meninos quedaram-se calados e imóveis atrás da pedra enquanto Emília se afastava. Meia hora depois já estavam inquietos.
— Fomos muito egoístas, Pedrinho, deixando que Emília saísse com o seu lampeirismo por este mundo desconhecido. Se ela nunca mais voltar, vai ser uma tristeza lá no sítio.
— Não tenha medo — animou Pedrinho. — Emília é uma danada.
E tinha razão de pensar assim, porque logo depois a boneca reapareceu, com cara alegre.
— Estamos salvos! — foi dizendo muito lambeta. — Os marcianos não nos podem ver. Fiz todas as experiências. Passei rentinha duma porção deles. Cheguei até a puxar o chicotinho de um. O coitado levou um susto, mas não me percebeu. Podemos passear por aqui sem medo de nada.
E assim foi. Saíram dali sem medo nenhum e, sempre guiados pela Emília, andaram por toda parte como se estivessem na casa da sogra. Como os dois nada pudessem ver, tinham de contentar-se com as informações da Emília.
— Estamos num maravilhoso palácio — disse ela em dado momento. — Deve ser o palácio do governo dos marcianos. Lá está o rei no seu trono, todo batatal, como se fosse o dono dos mundos...
— Como é esse rei? — perguntou a menina, ardendo de curiosidade.
— Oh, um rei e tanto e diferente dos outros marcianos. Tem o chicote da cara mais comprido. Esperem... Estou vendo que o tal chicote não serve só para falar... O rei está danado com alguém. O chicote vibra no ar e dá chicotadas num marciano... Surra e fala ao mesmo tempo... Esperem, esperem ... Estou compreendendo a linguagem do chicote...
Os dois meninos começaram a ficar com medo da boneca. Parecia transformada. Não mais lembrava a Emília bobinha e asneirenta lá do sítio. Falava e raciocinava na maior perfeição como se alguma misteriosa fada lhe houvesse enxertado um novo dom.
— Já aprendi a língua dos marcianos — disse ela por fim. — Compreendo perfeitamente o que falam. E sabem o que o rei está dizendo? Está dizendo a um cara de crocotó (com certeza um ministro) que o planeta foi invadido por entes estranhos.
— Mas como pode saber disso se não nos enxerga? — observou Pedrinho.
— Não enxergam, mas sentem. O rei está falando... Está dizendo: “Há qualquer coisa de estranho por aqui. Quero que os aparelhos detectores sejam postos em ação imediatamente”.
— Que aparelhos detectores serão esses? — indagou Pedrinho. — Com certeza inventaram olhos mecânicos, já que não podem enxergar como nós. Se os tais aparelhos detectores nos descobrem, estamos fritos...
— Fritos, nada! — exclamou Emília. — Havemos de tapear estes marcianos com todos os seus crocotós.
— Que tantos crocotós são esses, Emília? — volveu Narizinho.
— São as coisas esquisitas que eles têm pelo corpo e não posso adivinhar o que sejam. Crocotó é tudo que é empelotado ou espichadinho como os tais chicotes. Os marcianos são crocotosíssimos. Esses crocotós devem ser órgãos próprios deles aqui.
— E como vamos nos arranjar com gente assim?
— Eu dou jeito — declarou Emília. — Vou descobrir os tais ‘‘aparelhos detectores” — e misturo tudo, arraso com eles.
Disse e fez. Meteu-se pelo palácio na pista do ministro, o qual, depois de receber a ordem do rei, se encaminhara para o aparelho detector ali do palácio.
Era um maquinismo esquisito e incompreensível, mas Emília sabia que todas as máquinas têm um ponto comum: só funcionam quando estão com todas as peças perfeitinhas e no lugar. Uma que seja quebrada ou retirada, e já o funcionamento da máquina inteira não é o mesmo.
Pensando assim, Emília agarrou uma espécie de martelo e começou a martelar as peças mais delicadas, quebrando ou amassando as que pôde.
O pobre ministro, muito apavorado, via o amassamento das peças sem conseguir ver o autor do estrago, e tal foi a sua impressão que de súbito caiu por terra desmaiado. Emília aproximou-se para examiná-lo de bem perto.
Que ente esquisito! Não era de carne e sim duma substância branca e mole como a borracha. Emília examinou-o demoradamente sem que conseguisse entender coisa nenhuma. Via uma porção de crocotós ou órgãos muito diferentes dos nossos. Qual seria a boca? Quais seriam os olhos ou os ouvidos? Só quanto ao chicote é que ficou certa, pois era na verdade o órgãozinho com que os marcianos se entendiam entre si.
Depois de muitas pancadas no Aparelho Detector, a boneca percebeu que daquele mato não sairia coelho, isto é, que já não havia perigo de serem detectados por aquele aparelho. Para maior segurança pregou uma terrível martelada num dos crocotós do ministro desmaiado — e foi correndo para onde estavam os meninos. A despeito da martelada no crocotó, o ministro voltou a si e foi dar parte ao rei dos esquisitos acontecimentos.
— Algum estranho invadiu os nossos domínios e acaba de arruinar o detector do palácio — disse ele. — Vi os estragos irem aparecendo como por si mesmos, mas não pude ver o autor daquilo. É invisível. E também sentia a ação do intruso em meu crocotó número 5. Deu-me tamanha martelada que quase fui para o beleléu...
— Nesse caso — ordenou o rei furioso — expeça ordem para que os quinhentos detectores do reino sejam postos em atividade — quero ver se o tal intruso tem forças para arruinar todos os nossos detectores. E logo que ele seja detectado e aprisionado, quero que o ponham num garrafão de álcool e o guardem no museu.
— Hum!... — fez Pedrinho ao ouvir essa história. — Já tive um saci na garrafa1 e não quero que me aconteça o mesmo. O melhor é safar-nos deste misterioso e perigoso planeta antes que nos detectem e engarrafem...
— Isso é o verdadeiro — concordou Narizinho. — Passe para cá a minha pitada de pirlimpimpím e azulemos daqui.
Pedrinho distribuiu as pitadas e deu o sinal:
— Um... dois... e três!
Mas na pressa com que fizeram aquilo esqueceram-se de determinar o rumo a seguir, de modo que em vez de irem para um novo planeta foram despertar na Via-láctea.
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Continua … XIV – A Via-Láctea
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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