quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) XIX – De novo na Lua


Terminado o fiunnn que os levou de Saturno à Lua, viram-se bem em cima duma cratera.

— Onde será que mora São Jorge? — disse Pedrinho sondando os horizontes. -— Só vejo crateras e mais crateras. Casa nenhuma. Nenhum castelo...

— O meio de descobrir onde ele mora é um só — sugeriu a menina. — Como é hora do lanche, Tia Nastácia deve estar no fogão. Procure uma fumaça. Onde houver fumaça, lá mora São Jorge.

Pedrinho achou boa a idéia e pôs-se a procurar a fumacinha. Todos fizeram o mesmo. Quem primeiro a descobriu foi o Conselheiro.

— Ou muito me engano — disse ele — ou aquele fio de “fumo” que aparece a sudoeste indica a residência do Senhor São Jorge.

Todos correram naquela direção. De longe já avistaram o santo sentadinho num rochedo, com a lança ao colo.

— Viva! Viva! — gritou-lhe a boneca, que seguia adiante dos outros puxando o anjinho pela mão. — Aqui estamos, São Jorge, com o nosso Conselheiro encontrado na cauda dum cometa e este anjinho que descobri na Via-láctea — e foi contando atropeladamente as principais peripécias da grande aventura.

São Jorge não se espantou de coisa nenhuma, porque já não se espantava de nada, tantas e tantas coisas maravilhosas havia visto. Só estranhou o passeio pela Via-láctea. Sua idéia sobre as nebulosas era a mesma dos astrônomos — que aquilo era um imenso aglomerado de estrelas em certas direções do céu. Mas deixou passar. Estava com preguiça de discutir.

— E Tia Nastácia? — perguntou Narizinho. — Como vai ela?

— Mal, coitada! — respondeu o santo. — Não se acostuma aqui. Continua tão boba como no primeiro dia. E não consegue dominar o medo que tem do dragão. Já lhe expliquei que o meu dragão é o que há de inofensivo, mas de nada adiantou. Cada vez que ele urra ela fica de pernas moles no fundo daquele buraco.

Narizinho foi correndo à cratera que o santo indicava. Encontrou a pobre negra fritando bolinhos, mas com o ar mais desconsolado desta vida. De seu peito brotavam suspiros de cortar o coração.

Ao ver a menina, o rosto de Tia Nastácia iluminou-se como um sol de alegria.

— Meu Deus do céu! Será verdade o que estou vendo? Não será sonho?

— Não é sonho, não, boba! Sou eu mesma que voltei dos espaços infinitos com Pedrinho, Emília, o Conselheiro e o anjo — e agora vamos seguir para a Terra.

— Conselheiro? Anjo? — repetiu a negra, tonta. — Que história é essa, menina? Não estou entendendo nada...

— Conselheiro é o nome que Emília pôs no Burro Falante. E o anjo... ah, o anjo é uma coisa que só vendo. Um anjinho de verdade que Emília achou na Via-láctea. De asa quebrada, o coitadinho. A esquerda... o ente mais galante do mundo, Nastácia! Vovó vai abrir a boca. Nunca houve anjo de verdade na Terra, como você não ignora. O nosso vai ser o primeiro. E gulosinho, sabe? Chupou uma bala puxa-puxa que Emília lhe deu e gostou, apesar de nunca haver chupado bala em toda a sua vida.

— Credo! — exclamou a preta.

— E o dragão? Como se tem arrumado com ele?

— Nem fale, Narizinho! — exclamou a negra fazendo o pelo-sinal. — Não sei por que São Jorge não mata duma vez esse horrendo bicho. Dá cada urro que meu coração pula dentro do peito que nem cabritinho novo...

— Dragão que urra não morde, bobona! — disse a menina. — São Jorge afirma que é mais manso que um cordeiro.

— Essa não engulo! — rosnou a preta. — Cada vez que o estupor me vê lambe os beiços e põe de fora uma língua vermelha deste tamanho! Não come gente? É boa!... Pois não ia comendo o burro?

— Mas burro não é gente, Nastácia. Há uma diferença.

— Diferença? Qual é a diferença que há entre gente e aquele burro que fala e diz cada coisa tão certa que até eu me benzo com as duas mãos?

Conversaram sobre mil coisas, inclusive as comidinhas que ela havia feito para São Jorge.

— Coitado! — suspirou a negra. — Santo bom está ali. E é um bom garfo, sabe? Comeu uma panqueca que eu fiz e lambeu os beiços que nem o dragão. E para comer bolinhos não há outro. É dos tais como o Coronel Teodorico: não deixa nem um no prato para remédio.

— Que pena! — exclamou a menina. — Se ele houvesse deixado algum, seria para mim um regalo. Estou com uma fome danada...

Saindo dali a menina foi ter com os outros. Encontrou Emília contando com todo o espevitamento mil coisas a São Jorge, algumas já bastante aumentadas.

— E o meu presente? — perguntou o santo. —, Esqueceu-se?

Eles não haviam passado perto da Cabeleira de Berenice e, portanto Emília não pudera arrancar o fio de cabelo que havia prometido ao santo. Mas não se deu por achada. Respondeu com o maior cinismo:

— Não me esqueci, não. Vou buscá-lo.

E saindo dali sabem onde foi? Foi conferenciar com o Burro Falante. Ninguém ouviu o que disseram, mas o caso é que Emília voltou com um embrulhinho muito malfeito.

— Aqui está! — disse ela com todo o desplante, entregando a São Jorge o embrulhinho. — Em vez dum fio só, como prometi, eu trouxe três...

Se alguém fosse contar os cabelos da cauda do Burro Falante, era muito possível que encontrasse a falta de três fios...
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Continua … XX – A Aflição dos Astrônomos
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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