domingo, 7 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) XVI – Aparece o burro


Quanto tempo estiveram desmaiadas lá em cima do cometa grande? Ninguém sabe. Só se sabe que em certo momento Narizinho estremeceu e foi lentamente abrindo um olho. Depois abriu o outro. Depois arregalou os dois — e viu pendurado sobre o seu rosto um focinho com duas ventas pretas. Apesar da tonteira em que ainda estava, reconheceu naquilo uma cara de burro. E súbito um clarão lhe iluminou o cérebro. O Burro Falante! Aquelas ventas, aquele focinho, aquelas pontas de orelhas só podiam ser do Burro Falante, porque o Burro Falante é que havia rolado pelo éter e na opinião de Pedrinho devia andar enganchado nalguma cauda de cometa.

O animal permanecia imóvel, de cabeça pendida. Com certeza estava naquela posição já de muito tempo, à espera de que a menina acordasse — e de tanto esperar dormiu também. Sim. O Burro Falante estava dormindo!

— Emília! — gritou Narizinho sacudindo a boneca desmaiada. — Acorde! Parece que estamos salvas e com o Burro Falante aqui às nossas ordens.

A boneca arregalou os olhos e esfregou-os.

— Burro Falante? — murmurou ainda tontinha, e só então seus olhos deram com o animal adormecido. Emília levantou-se e deu a mão a Narizinho já de pé. Ficaram as duas a olhar para o pobre burro de cabeça caída, imerso em sono profundo.

— Vou acordá-lo — disse Emília, e fazendo “Hu!” acordou-o. O aspecto tristonho do burro mudou para um ar de riso — um ar só, porque os burros não sabem rir, não podem nem sorrir, os coitados. O Burro Falante fez um ar de riso e falou na sua voz antiga de bicho do tempo dos animais falantes.

— Bofé! Até que enfim apareceram. Eu já estava cansado de esperar, e de tanto esperar dormi. Onde ficou o dragão? — e ao falar no dragão tremeu sem querer, com medo de que o monstro tivesse vindo atrás delas.

— Não tenha receio de nada, Senhor Burro — respondeu Emília. — O dragão está lá numa cova da Lua, amarrado na corrente.

O tremor do burro cessou.

— E a Senhora Anastácia?

Ele era a única pessoa no mundo que dizia “Senhora Anastácia”, em vez de “Tia Nastácia”, como os outros. Nunca houve burro mais bem-educado nem mais respeitador da gramática. Falava como se escreve, com a maior perfeição, sem um errinho. E falava num português já fora da moda, com expressões que ninguém usa mais, como aquele “Bofé!”

— Tia Nastácia ficou na Lua como cozinheira de São Jorge — respondeu a menina — e a estas horas ou está fritando bolinhos ou está fazendo pelo-sinais e dizendo credos.

— E o Senhor Pedro Encerrabodes?

O burro nunca disse Pedrinho; era sempre Encerrabodes.

— O Senhor Pedro sumiu! — gritou a boneca. — Vinha guiando pelos ares o Potro dos Céus, comigo na garupa, quando se pôs a explicar como é que os gregos tangiam a lira (não lira italiana, mas a tal lira que era a viola deles) e tantos gestos fez no ar que perdeu o equilíbrio e caiu no éter.

O burro empalideceu.

— Oh, isso é muito grave! — murmurou em seguida, franzindo a testa e erguendo as orelhas. — O Senhor Pedro Encerrabodes sempre foi o nosso guia. Sem o seu adjutório (ele não dizia ajutório) não sei como nos avirmos nestas terras desconhecidas. Estou aqui há horas (ou há séculos, não posso saber). Já galopei milhares de toesas por esses luminosos campos infinitos, sem encontrar sequer uma pequena touça de capim.

— E está com fome, Senhor Burro? — perguntou Emília.

— Nada mais natural, Senhora Marquesa.

— Pois se quer servir-se de estrelinhas recém-nascidas, tenho muitas aqui no bolso. É o que há...

O Burro Falante respondeu com toda a gramática:

— Não creio, Senhora Marquesa, que meu estômago aceite de bom grado semelhante iguaria. Antes continuar jejuando do que contrariar as leis da natureza com a ingestão dum alimento que nem eu nem meus antepassados jamais provamos.

— Faz muito bem — disse Narizinho. — Quem vai comendo a torto e a direito tudo o que encontra acaba estourando. Vovó sempre diz que o “animal se faz pela boca”, isto é: nós somos o que comemos. Um burro que se alimentar de estrelas é capaz de virar cometa.

O burro quis saber o que havia acontecido desde o momento em que Pedrinho lhe assoprou o pó de pirlimpimpim nas ventas. A menina sentou-se e foi contando. Enquanto isso a boneca pôs-se a passear por ali em procura de coisinhas pelo chão, como costumava fazer nas praias. Por causa desse hábito vivia encontrando coisas. Emília pôs-se a andar, e foi andando, e afastou-se para longe.

Em dado momento, quando Narizinho, depois de contar a chegada à Via-láctea, ia entrando na história do cometa-potro-xucro, uma voz distante chegou-lhe aos ouvidos: “Corra, Narizinho! Venha ver uma coisa do outro mundo...”

A menina ergueu-se e correu na direção da voz, até que avistou Emília sentada no chão com qualquer coisa ao colo. De longe não pôde distinguir o que era — pareceu-lhe uma criancinha nova. Mas seria absurdo admitir uma criança nova naquelas alturas.

Narizinho foi se aproximando. Chegou bem perto. Arregalou os olhos e esfregou-os, porque lhe custava acreditar no que seus olhos viam.

— Um anjinho, Emília? ... — exclamou afinal no maior dos espantos. — Onde descobriu semelhante maravilha? — e acocorou-se diante do anjinho lindo que a boneca tinha ao colo.

Era um anjinho mesmo! O mais lindo anjinho dos céus, a maior das galantezas. O rosto parecia feito de pétalas de rosa. Os cabelos em cachos pareciam feitos de fios de luz.

— Achei-o caído por aqui —: respondeu a boneca com os olhos irradiantes de gosto. — Deve ser um pobre anjinho que rolou dalguma nuvem e quebrou a asa. Está desmaiado. Olhe que galanteza! Louro que nem macela, de asas alvas como paina...

A menina ajoelhou-se ao lado da boneca e caiu em contemplação da maravilha. Que encanto de criaturinha! Teve vontade de comê-lo, como quem come um doce cristalizado.

Seu encantamento crescia. Ela olhava, olhava e não cessava de olhar. Depois bateu palmas. Ergueu-se e começou a dar pulos de contentamento.

— Corra! — gritou para o Burro Falante. — Venha ver o assombro dos assombros — um anjinho de asa quebrada...

E para a boneca:

— Imagine, Emília, nós lá no sítio com um ente destes pra brincar! Tia Nastácia sabe quanto remédio existe; há de saber também um bom para asa quebrada — e ele sara e vai voar para nós vermos. Vovó, coitada, juro que desta vez derruba o queixo, quando nos vir chegar com esta galanteza...

Passados alguns instantes o anjinho deu o primeiro sinal de vida, enquanto a menina lhe fazia esfregação pelo corpo. Seus olhos foram se abrindo. Eram azuis como o céu azul. Por fim falou na vozinha mais límpida e sonora.

— Onde estou eu? — foram suas primeiras palavras.

— No meu colo! — respondeu Emília cheíssima de si.

O anjinho olhou para ela sem nada compreender. Nunca tinha visto boneca, e não podia fazer a menor idéia de quem Emília fosse.

— E quem é a senhora? — perguntou em débil voz.

— Eu sou a antiga Marquesa de Rabicó — respondeu Emília toda ganjenta — e agora vou ser a sua mãezinha querida. Esta meninota aqui ao lado é a neta de Dona Benta, Narizinho. E aquele senhor de quatro pés é o único burro falante que existe lá na Terra. Nós o salvamos das garras dum leão terrível numa das nossas aventuras do pirlimpimpim, e o levamos para o sítio. Não tenha medo dele, não, bobinho. É muitíssimo bem-educado, incapaz de dar um coice numa mosca. Nossa história é essa. Agora conte-nos a sua.

Depois de olhar muito assustado para a menina e o burro, o anjinho falou. Explicou que andava de passeio pelo éter quando ouviu um tremendo estrondo (o choque dos dois cometas). O seu susto foi enorme, porque jamais tinha ouvido um trovão assim. O estrondo fê-lo perder o equilíbrio do vôo e cair desmaiado. Na queda havia batido em qualquer coisa dura no espaço e estava agora sentindo uma dor na asa esquerda.

— Que engraçado! — exclamou Emília. — O mesmo nos aconteceu, com a diferença que não nos machucamos e não quebramos a asa. Às vezes é bom não ter asas.

Só então o anjinho percebeu que tinha a asa esquerda quebrada. Quis erguê-la, como erguia a direita, e não pôde. Isso fez que ele se pusesse a chorar um chorinho muito sentido.

— Que vai ser de mim? — murmurou soluçando. — Com uma asa só não posso voltar para minha nuvem, lá onde moram meus irmãos celestes...

— Melhor! — disse Emília. — Irá morar conosco lá no sítio de Dona Benta, que é o lugar mais bonito dos mundos. Temos uma porção de árvores no pomar, e um rio cheio de peixes, e a Vaca Mocha, e os bolinhos de Tia Nastácia. E eu tenho uma canastrinha que até dou para você.

O anjinho nunca tinha visto árvore, nem rio, nem vaca, nem bolos, de modo que nada entendeu de tudo aquilo. Começou a fazer perguntas e mais perguntas, que ora Emília respondia, ora Narizinho. O que mais lhe interessou foi a Vaca Mocha, cuja descrição, feita pela boneca, era mesmo de despertar a curiosidade de todos os anjos do céu.

— Mas esse estranho animal não come gente? — perguntou ele muito admirado.

— Só come capim e palha — respondeu Emília. — E também abóbora, batata, milho e outras coisas assim.

— Capim? Que é capim? — indagou a galanteza com uma ruga de interrogação na testa.

Emília olhou para Narizinho e sorriu. Depois respondeu:

— Não vale a pena explicar. Essas coisas lá da Terra são facílimas de ser compreendidas, vendo. Assim de longe, só explicadas e sem amostras, não podem ser entendidas. Lá na Terra mostrarei o que é capim, o que é milho, o que é flor, o que é árvore, o que é tudo. Não tenha pressa.

— E lá nesse sítio a gente pode voar? — perguntou ele. — Eu gosto muito de voar.

— Pode, como não? — respondeu Emília. — Os patos de lá voam, os gaviões, os marrecos e até as galinhas-d’angola. Os passarinhos todos voam. O tempo voa. As borboletas, as abelhas, as içás — tudo voa que é uma beleza!...

— São anjos também, esses patos, gaviões e galinhas-d’angola?

Emília não pôde conter uma gargalhada gostosa — e voltando-se para Narizinho disse na “linguagem do P”, para que o anjo não percebesse: “Épé mapaispis bupurripinhopo dopo quepe opo Primpimcipipepe Espescapamapadopo”. (É mais burrinho do que o Príncipe Escamado.) E depois, para o anjinho:

— Não são anjos, não, meu amor. Os anjos que há lá são só os de procissão, isto é, crianças com asas de pato nas costas. Fingimento. E há também os “anjinhos” defuntos. As crianças que morrem viram “anjinhos” — mas em vez de voar, vão para os cemitérios em caixões cheios de flores. Anjo de verdade, dos “legímacos”, você vai ser o primeiro.

Outra vez o tal “legímaco”!

— E nunca mais poderei voltar para o céu com os meus irmãos? — perguntou o anjinho depois de refletir uns instantes.

— Poderá, sim, mas duvido que volte. É tão interessante a Terra, toda cheia de homens e mulheres e bichos e plantas, que anjo que cai lá nunca mais pensa em sair.

Nisto Emília bateu na testa e disse: “Não é que me ia esquecendo!” — e tirou do bolso do avental o célebre embrulhinho em papel de seda que lá guardara no dia da partida — o misterioso embrulhinho que não quis explicar a ninguém o que era. Enquanto a boneca desfazia o embrulho, a menina espichou o pescoço para ver do que se tratava. Uma bala puxa-puxa!

— Tome este presente que eu trouxe da Terra para você — disse Emília oferecendo a bala ao anjinho. — Desconfiei que ia encontrar por aqui alguém que merecesse uma bala e por prevenção vim com esta no bolso. Tome.

O anjinho tomou a bala com ar de quem nunca tinha visto semelhante coisa. Examinou-a por algum tempo; depois olhou para a boneca e para a menina como que pedindo mais explicações.

— É sua, bobinho! — disse Emília. — Ponha na boca e prove. Não tenha medo.

O anjinho obedeceu. Pôs a bala na boca e sem demora fez cara de estar gostando.

— É bom, sim! — disse ele. — Há muitas coisas gostosas como esta lá no sítio?

— Montes! — respondeu Emília. — Tia Nastácia faz desses doces (isso chama-se “doce”, decore) em quantidade, e de todas as cores e gostos. Há um amarelo, chamado “doce de abóbora”, que é muito bom. Há um roxo chamado “doce de batata”. Há as “cocadas”, que são branquinhas como a neve. Também há cocadas cor-de-rosa, com as quais eu me implico. Gosto só das brancas. Lá em casa você vai ter tudo isto até enjoar e ficar com dor de barriga e lombrigas. Ah, a nossa vida no sítio é uma beleza de suco...

Tão entretidas ficaram as duas na conversa com o anjinho, que se esqueceram de lamentar a sorte do “Senhor Pedro Encerrabodes”, perdido na imensidão do éter. Felizmente Pedrinho não se esquecera delas e, de repente, apontou ao longe.

— Olhem Pedrinho! — berrou Emília que foi a primeira a vê-lo. — Lá está ele, mais serelepe do que nunca...

Que alegria! Nunca a chegada dum personagem foi recebida com tantas demonstrações de contentamento.

— Pedrinho! Pedrinho!... Conte, conte tudo que aconteceu depois do tombo da lira.

— Nada de importante — respondeu o menino. — Também caí neste cometa, como vocês. Caí e perdi os sentidos, ficando desacordado até agora. Afinal voltei a mim. Olhei em redor: só vi este infinito campo luminoso, que logo adivinhei ser a cauda do cometa de Halley.

— Como sabe que é o cometa de Halley? — duvidou a menina, um tanto desconfiada de tanta ciência.

— Pelo jeito — respondeu Pedrinho — e tratou de mudar de assunto. — Logo que voltei a mim olhei para todos os lados. Não vi coisa nenhuma senão esta poeira luminosa. Pus-me a andar, sempre na mesma direção, com esperança de descobrir qualquer coisa. Tive sorte. Vim ter exatamente ao ponto onde vocês estavam. A primeira pessoa que avistei de longe foi o Burro Falante, coitado. Mas... — e Pedrinho interrompeu a narrativa, só então percebendo aquela criança no colo de Emília. — Que é isso? Parece um anjinho...

— E é de fato um anjo — respondeu a menina. — Um anjinho dos legítimos, que Emília achou por aqui. De asa quebrada — tombou lá das nuvens. Na queda bateu em qualquer coisa dura pelo caminho. Vai morar conosco no sítio. Imagine que lindeza...

Em vez de responder, Pedrinho pôs-se a dar pulos de contentamento. Ter um anjo no sítio era coisa que jamais havia passado pela sua imaginação.

— Que beleza, Narizinho! — exclamou ele depois de sossegar. — Até Peter Pan vai roer-se de inveja. Um anjinho de verdade na Terra é coisa que nunca houve desde que a Terra é Terra.

O Burro Falante, com as orelhas caídas e os olhos úmidos, contemplava enternecidamente aquele maravilhoso quadro.
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Continua … XVII – Saturno
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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