segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) XXII – O café dos astrônomos


Os meninos, mais o burro, o Doutor Livingstone, Tia Nastácia e o anjinho desceram no pasto, perto do cupim grande e, depois de passada a tontura, foram correndo para casa, ansiosos por abraçar a vovó — todos, menos o burro, que ficou por ali pastando avidamente. Assim que entraram na varanda e deram com as cartolas e bengalas dos sábios, entrepararam.

— Gente importante aqui em casa! Quem será? — exclamou a menina. E foi espiar. — Xi, Pedrinho! A sala de jantar está cheia de corpos estranhos...

Pedrinho também espiou e viu que sim — e foi entrando, seguido pelos outros. Dona Benta ergueu-se da mesa, numa grande alegria.

— Ora graças! — exclamou. — Bom susto vocês me pregaram... Não quero mais isso, não. Quando saírem para novas aventuras, não deixem de me avisar.

E voltando-se para os sábios:

— Meus senhores, permitam-me que eu faça a apresentação de meus netos. Este é Pedrinho, filho de minha filha Tonica. Esta é Narizinho, sobre a qual já muito conversamos. E esta bonequinha é a tal Emília do chifre furado, que anda revolucionando o mundo.

— E aquele cidadãozinho ali, de chapéu de explorador africano? — perguntou o maioral.

— Ah, esse é o Doutor Livingstone, avatar daquele antigo Visconde de Sabugosa que morreu afogado em nossa aventura no País da Fábula.

Os astrônomos gostaram do “avatar”, mas ficaram na mesma. Nisto o maioral deu com o anjinho e enrugou a testa.

— E essa criança linda? — perguntou, apontando. Dona Benta, que estava sem óculos, não havia reparado no anjinho, que, muito atrapalhado com tantas novidades, ficara atrás de todos, de dedinho na boca. Mas pôs os óculos e olhou, e com o maior dos espantos deu com a maravilha. Ficou tonta. Nem pôde falar. Só pôde abrir a boca — e de boca aberta ficou.

— Não tente adivinhar que não consegue, vovó! — gritou Narizinho. — É um anjo de asa quebrada — a esquerda — que Emília encontrou perdido na Via-láctea...

Dessa vez quem arregalou os olhos foi o maioral e o mesmo fizeram todos os outros sábios. Na Via-láctea! Que absurdo!

— Como é isso, menina? — volveu o maioral. — Faça o favor de repetir o que disse porque não entendi bem. Parece que falou em Via-láctea...

— Sim — respondeu Narizinho. — Via-láctea, sim. Que tem isso? Encontramos este anjo no nosso passeio pela Via-láctea.

O espanto dos astrônomos subiu mais uns pontos. A linguagem daquela menina era nova para eles. Mas como fossem “adultos” de sobrecasaca e cartola, desses que tratam as crianças como seres inferiores e não acreditam em nada, breve voltaram a si do espanto e sorriram com ironia, como quem diz:

“Bobagens de criança!” Ofendida com aquele sorriso, a boneca empertigou-se toda e replicou:

— Estou vendo que os senhores marmanjos não acreditaram em nossa história. Estamos pagos. Nós também não acreditamos nas suas “hipóteses” muito sem jeito...

Os astrônomos não esperavam por aquela resposta, de modo que abriram de novo as bocas. Uma boneca que falava que nem gente e sabia o que era hipótese! Maior assombro era impossível. Mas em vez de apenas assombrar-se, só sem mais nada, o maioral caiu na asneira de sorrir de novo, com superioridade ariana, e de dizer, como que ofendido:

— Bravo! Com que então não acredita em nossas hipóteses? Muito bem. E que vem a ser hipótese, senhora bonequinha impertinente?

Emília pôs as mãos na cintura.

— Hipótese são as petas que os senhores nos pregam quando não sabem a verdadeira explicação duma coisa e querem esconder a ignorância, está ouvindo, seu cara de coruja? Pouco se me dá que os senhores acreditem ou não que estivemos ou não estivemos na Via-láctea. Estivemos e acabou-se. E estivemos também em Marte e Saturno, e até brincamos de escorregar naqueles anéis. E na Lua conversamos com um santo muito bom, que ouvia tudo quanto dizíamos sem esses sorrisos que estamos vendo nessas reverendíssimas caras cheias de crocotós dos ruins...

— Emília! — ralhou Dona Benta, levantando-se. — Não posso admitir que você insulte em nossa casa estes luminares da ciência.

— Então também não admita que esses besourões casacudos duvidem do que estamos dizendo. Amor com amor se paga. Comigo é ali na batata...

Emília tinha perdido as estribeiras e estava que nem uma vespa. Dona Benta quis de novo ralhar com ela, mas calou-se. Lá por dentro estava lhe dando razão. Quem não respeita as idéias dos outros não pode esperar que respeitem as suas.

Os astrônomos, vendo que a velha havia parado de ralhar com a boneca, ofenderam-se. O maioral ergueu-se da mesa, e sem mais explicações retirou-se da sala seguido dos demais.

— Passe muito bem! — foi tudo quanto disseram lá na varanda, depois de tomarem as cartolas e bengalas.

Emília, vitoriosa, plantou-se de mãos à cintura no topo da escadinha para vê-los sair. E quando o chefe dos astrônomos, já no terreiro, olhou para trás, ela botou-lhe uma língua deste tamanho.

— Ahn!...

O maioral, furiosíssimo, perdeu a compostura e também botou para ela um palmo de língua. Uma língua muito feia e preta. Mas para fazer isso teve de virar a cabeça mesmo andando — e tropeçou na Vaca Mocha, sempre deitada no mesmo lugar, caindo um grande tombo no chão.

Emília estava mais que vingada, mas mesmo assim ainda lhe gritou:

— Passe muito bem, seu cara de coruja que comeu amora!...
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Continua … XXIII – As Impressões de Tia Nastácia
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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