terça-feira, 14 de agosto de 2012

Giuseppe Artidoro Ghiaroni (Poesias Escolhidas)

A MÁQUINA DE ESCREVER

Mãe, se eu morrer de um repentino mal,
vende meus bens a bem dos meus credores:
a fantasia de festivas cores
que usei no derradeiro Carnaval.

Vende esse rádio que ganhei de prêmio
por um concurso num jornal do povo,
e aquele terno novo, ou quase novo,
com poucas manchas de café boêmio.

Vende também meus óculos antigos
que me davam uns ares inocentes.
Já não precisarei de duas lentes
para enxergar os corações amigos.

Vende , além das gravatas, do chapéu,
meus sapatos rangentes. Sem ruído
é mais provável que eu alcance o Céu
e logre penetrar despercebido.

Vende meu dente de ouro. O Paraíso
requer apenas a expressão do olhar.
Já não precisarei do meu sorriso
para um outro sorriso me enganar.

Vende meus olhos a um judeu qualquer
que os guarde numa loja poeirenta,
reluzindo na sombra pardacenta,
refletindo um semblante de mulher !

Vende tudo, ao findar a minha sorte,
libertando minha alma pensativa
para ninguém chorar a minha morte
sem realmente desejar que eu viva !

Pode vender meu próprio leito e roupa
para pagar àqueles a quem devo.
Sim, vende tudo, minha mãe, mas poupa
esta caduca máquina em que escrevo!

Mas, poupa a minha amiga de horas mortas,
de teclas bambas, tique-taque incerto.
De ano em ano, manda-a ao conserto
e unta de azeite as suas peças tortas.

Vende todas as grandes pequenezas
que eram meu humílimo tesouro,
mas não! ainda que ofereçam ouro,
não venda o meu filtro de tristezas!

Quanta vez esta máquina afugenta
meus fantasmas da dúvida e do mal,
ela que é minha rude ferramenta,
o meu doce instrumento musical!

Bate rangendo, numa espécie de asma,
mas cada vez que bate é um grão de trigo.
Quando eu morrer, quem a levar consigo
há de levar consigo o meu fantasma!

Pois será para ela uma tortura
sentir nas bambas teclas solitárias
um bando de dez unhas usurárias
a datilografar uma fatura!

Deixa-a morrer também quando eu morrer;
deixa-a calar numa quietude extrema,
à espera do meu último poema
que as palavras não dão para fazer.

Conserva-a, minha mãe, no velho lar,
conservando os meus íntimos instantes,
e, nas noites de lua, não te espantes
quando as teclas baterem devagar!

AS ÁRVORES CORTADAS

Deceparam as árvores da rua!
Sem troncos hirtos na calcada fria,
a rua fica inexpressiva e nua;
fica uma rua sem fisionomia.

0 sol, com sua rústica bondade,
aquece até ferir, até matar.
E a rua, a rir sem personalidade,
não da mais sombras aos que não tem lar.

As árvores, ao vento desgrenhadas,
não lastimam a peia das raízes:
Olvidam sua, dores, concentradas
no sofrimento de outros infelizes.

Eu penso, quando à frente dos casais
vem sentar-se um mendigo meio-morto,
que uma fronde se inclina um pouco mais,
para lhe dar mais sombra e mais conforto.

Sem elas, fica a triste perspectiva
de uns muros esfolados, muito antigos,
que se unem na distância inexpressiva
como se unem dois trôpegos mendigos.

Quando vier com o seu farnel de lona,
arrimar-se à sua árvore querida,
o ceguinho de gaita e de sanfona
será capaz de maldizer a vida.

E aquela magra e tremula viuva
que anda a esmolar com filhos seminus,
quando o tempo mudar, chegando a chuva,
dirá que dela se esqueceu Jesus!...

Meu Deus, seja qual for o meu destino,
mesmo que a dor meu coração destrua,
não me faças traidor, nem assassino,
nem cortador de arvores da rua!

DENTRO DA NOITE

Dentro da noite, quando vem, de cima,
o ar que o espírito respira, o clima
que o Deus da Sombra esconde numa urna;
num silêncio de túmulo e de rocha,
a alma oculta dos homens desabrocha
como uma flor noturna.

Dentro da noite há todos os segredos:
pensamentos que são pontas de dedos
pousando em epidermes proibidas.
Corações que se vão, alados de ânsias,
errando além de todas as distâncias,
em busca de outras vidas.

Arrastam-se, morosos, os instantes;
batem sofrendo os corações amantes;
franzem-se as testas que ninguém afaga.
E a alma dos seres se volatiliza,
buscando o céu e o mar, tremendo à brisa
como uma ânsia vaga.

Passemos pelo bar. Estranha festa
de gente que ama e gente que detesta,
buscando alívio na noite impura.
O bar é um copo a transbordar de Vida!
Meus amigos, que cheiro de bebida!
Que cheiro de amargura!

Falai comigo quando, à luz da lua,
eu vou com minha sombra pela rua,
sou vagabundo e vivo!

A noite é a Pátria espiritual do triste,
do homem que insiste em ser maior, que insiste
em garimpar as margens da matéria.
Nela tudo trepida de incerteza.
O pobre tem um pouco de riqueza
    e o rico, de miséria!

Ambiciosos que gastam a existência
numa intrigante e cega concorrência,
quando anoitece, olham-se espantados.
E trocando seus sonhos e seus planos,
Sabem sorrir, subitamente humanos,
como ressuscitados!

Dentro da noite, os homens embuçados'
levam consigo os sonhos e os pecados,
levam consigo o mundo de amanhã.
E floresce o Ideal, forma impoluta;
floresce sobre tanta coisa bruta
e tanta coisa vã!

Conheço uma beldade mutilada
que so na noite lúgubre, gelada,
se aventura a sair com seu desgosto.
E sai, ligeira como um diabo astuto,
tendo o corpo de luto, a alma de luto
e um negro véu no rosto.

Essa figura fascinante e horrenda
é como tudo o mais que se desvenda
para vibrar no potencial da sombra.
Como a angustia do povo, o sonho, o estudo
a revolta dos mártires e tudo
que nos fascina e assombra!

Porque nas trevas tremem os tiranos
vendo marchar os corações humanos
como grandes exércitos de horror.
Vendo marchar milhoes de heróis sem nome,
unificados pela eterna fome
que é um eterno amor!

Oh, Noite! Oh, mãe das minhas tristes obras?
Vejo surgirem sois das negras dobras
do teu manto de dor gerando lutes?
És um ventre sem fim: quando te inclinas,
nascem impérios, nascem guilhotinas,
nascem Cristos a Cruzes?

O MENOR ESFORÇO
Ferreiro e filho de ferreiro,
um dia visitei meu vizinho carpinteiro.
E ao ver quanto a madeira era macia
em relação ao ferro que eu batia,
deixei de ser ferreiro.

Tornei-me carpinteiro e, vendo o oleiro
modelando o seu barro molemente,
cobicei seu oficio de indolente
e larguei meu formão de carpinteiro.

Mas fui depois a casa do barbeiro,
que alisava uns cabelos de menina.
E achando aquela profissão mais fina,
deixei de ser oleiro.

Um dia, em minha casa de barbeiro
entrou um poeta de cabelo ao vento.
E ao ver quanto era livre e sobranceiro,
troquei minha navalha e meu dinheiro
por sua profissão de encantamento...

Meu Deus! Por que deixei de ser ferreiro ?

Fonte:
JORGE, J. G. de Araújo.  Antologia da Nova Poesia Brasileira. Ed. Vecchi, 1948.

Nenhum comentário: