domingo, 12 de agosto de 2012

Ladyce West/ RJ (Teia de Poemas)

PRESENÇA INVISÍVEL                

                                      Ao contemplar a obra  de João Bez Batti no Instituto Moreira Sales, RJ,  Novembro de 2006

Senti a presença invisível
De mãos grossas, calejadas,
Que acariciaram a pedra,
O basalto negro
Ou vermelho,
Ou até mesmo o mármore.

 Constatei mesmerizada
Que trouxeram à superfície
A essência;
Que libertaram, a Michelangelo,
A forma presa no seixo,
O orgânico escondido,
Inerte,
Meio-solto,
Quase-aprisionado.

 Mãos que revelaram os escravos encapsulados,
Seres encarcerados no mesozóico,
Como se, conhecendo o desastre de Pompéia
Depois do escarro fulminante do Vesúvio,
Soubessem encontrar:
O cactos florescente, o cágado,
A abóbora moranga. 
Caracóis.
E bólidos petrificados.

 Estas mãos, que brincam
Sedutoramente
Com o poder divino,
Conhecem o conteúdo,
A alma invisível da pedra.
Descobrem o cascalho gaúcho,
Chocam os grandes ovos de rio,
E parem os seres cativos nas  pedras,
Como Eva o tinha sido na costela de Adão.

 E o que surpreende: estas mãos,
Que revelam o coração do basalto
Regurgitado  pela Terra,
Lixado pelas águas,
Rolado, burilado e aveludado pelo tempo,
São humanas.
Mãos peãs.
Agraciadas pela arte da divinação,
Que brincando de Deus,
Mostram o divino em todos nós.

A BORBOLETA AMARELA

A borboleta amarela
pousou no beiral da janela.
Abriu suas asas listradas
cansadas de muitas estradas
e dormiu.

 Ficou um bom tempo parada
até se sentir renovada.
Limpando as patinhas da frente,
jogou-se pelo muro bem rente
e seguiu.

 Lá foi ela pelos ares
saltitando em ziguezagues.
Pousou na flor do caqui,
pulou daqui para ali
e partiu.

 Por entre a grade de ferro, passou.
Por trás dos ramos floridos, voou.
Parou no banco da praça,
eis que um gato lhe ameaça…
e fugiu.

TUPI

Hoje acordei bem cedo.
Vou pra casa da vovó!
Vou feliz e vou sem medo,
Vou levando o meu totó.

Tupi é meu melhor amigo.
Um vira-lata legal!
Quando o peguei no abrigo,
Chamava-se Tiquinho de tal.

Este nome não lhe cabia,
Já que era bem grandão!
Musculoso, ele se fazia
Respeitar na multidão.

Tupi, um nome guerreiro.
De índio, bem brasileiro!
Foi assim que o batizei,
No dia em que o adotei.

Com Tupi vou a todo lado,
De minha casa para escola,
Da pracinha pro gramado
Onde sempre jogo bola.

Vovó gosta das visitas
Que eu e Tupi lhe fazemos.
Prepara uma mesa bonita,
Com quitutes que comemos.

Tupi gosta do passeio.
Grunhe e corre, late e pula.
Nem um pingo de receio,
Vovó lhe incentiva a gula.

Truques e truques ele faz:
Pára e senta, deita e rola.
Quer bolachas da sacola
Que vovó sempre lhe traz.

O GAÚCHO

A minha caixinha mágica
Tem oito lápis de cor,
Folhas de papel branco
E um bom apontador.

E só levantar a tampa:
Vejo um homem a cavalo.
Parece trotar no pampa
Ouvindo o canto do galo.

Com o lápis azul eu faço
A grande parte do céu;
Com o castanho eu traço
Cavalo, bota e chapéu.

O verde fica pra grama,
Capim alto que nem cana.
No canto amarelo o sol
Brilhando que nem farol.

O vermelho é do lenço
Que ele usa no pescoço;
A calça é de pano preto;
Na garupa leva o almoço.

Por fim no canto direito
Do desenho que surgiu
Assino meu nome bem feito
Com data de vinte de abril.


A CHUVA FEZ AZUL NOSSO HORIZONTE

A chuva fez azul nosso horizonte.
Pintou no vale a cor da esperança.
Encheu de anêmonas, miosótis, margaridas,
Do campo aberto, ao sopé do monte.
Brotaram pintassilgos e abelhas.
No rio, a cada curva um jatobá.
No cheiro do capim ao sol ardente
Paravam insetos, lagartos e até o ar.
Na sombra escura o gado se perfila,
Debaixo de mangueiras generosas,
E espera em silêncio sonolento
O alívio do calor.  Passam-se as horas.
Ao sinal distante da capela na aldeia,
Quando o sol se apaga atrás da serra,
As nuvens, uma a uma,  se enfileiram.
Primeiro, brancas, alegres, arredondadas,
Depois cinzas, sem forma e pesadas.
Acomodam-se, ao sul,  entre montanhas.
E qual ninhada de cachorros desmamada,
Que luta, reclama e se aquieta ’inda faminta
Com roncos e rugidos passam a noite.
O vento as nina… Mas ao brilho de relâmpago
Fugaz,  recomeça o murmúrio no horizonte.
Qual relógio mecânico e em tempo,
As nuvens acordam o sol sem cerimônia,
E em prantos limpam bem o firmamento,
Para de novo azularem o horizonte.

BANDEJA DE MADEIRA

Comprei uma bandeja de madeira,
No mercado de usados da cidade.
O preço alto, verdadeiro assalto,
Testava a minha vontade…
Invocada reclamei:
Preço muito apimentado!
O feirante desfiou, então,
A ladainha da ocasião:
Uma cascata de palavras
E de muitas abobrinhas.
Listadas de um modo simples,
Em fileira memorizada,
Uma tabuada de dados,
Sem nexo e sem sentido,
Qual jovem guia turístico
Treinado para repetir,
Sem nenhuma compreensão,
História de monumentos,
Batalhas, guerra ou ação.
Um rol de características,
Uma lista de preciosismos,
Que turistas escutam em vão.
No caso do comerciante,
Era manobra astuta,
Artimanha obstrucionista,
Inspirada na política
Do partido oposicionista,
Com intenção de impedir
Barganhas, regateio, pechincha.
Mas não me dei por vencida
E esbocei, na medida,
Uma ensaiada choradeira
De compradora matreira,
Desconfiada confessa.
Mas para meu desagrado,
A manobra desta vez
Não deu nenhum resultado.
E o vendedor perturbado,
Não se fazendo de rogado,
Disse em português claro:
O preço é este e está acabado!
Era esperteza, eu sabia.
Manha de ressabiado
Recalque de gato escaldado.
Experiente e esperta,
Também lhe disse umas tantas,
Questionei ainda uma vez
Os dados da tal bandeja
Que sabia muito bem
Não ser uma antigüidade.
Mas minha senhora veja,
Já não se faz trabalho
Detalhado como este.
Marqueteria finíssima,
Olhe a delicadeza
Deste desenho aqui em cima!
Mantive meu ar incrédulo
De pessoa que conhece:
Reclamei do acabamento,
Das alças, das bordas, do centro,
Do verniz barato – opaco.
Não sou caloteiro!
Nem tampouco pirateio.
A Sra. pode confirmar
Nos antiquários da cidade!
Vai ver que é coisa boa,
Que tem uma certa idade!
Pus-me a andar, dando o fora,
No velho ardil de negócios
Fazendo-lhe acreditar
Que era fácil ir embora.
Ele veio correndo atrás,
É vintage, minha senhora,
É vintage, repetia!
Como se a palavra,
A denominação,
A expressão estrangeira,
Respondesse às perguntas
Corriqueiras que lhe fiz.
Mas parei.  E voltei.
Queria muito a bandeja
Rica em marqueteria.
Não pode ser, eu dizia,
Eu me lembro dessas bandejas,
Dessas lembranças para turistas,
Vendidas nas barraquinhas
Da Quinta da Boa Vista…
De súbito ele parou.
De cima abaixo me olhou.
E puxando lá do fundo
De sua sabedoria, perguntou:
– Mas quantos anos a senhora tem?
Num breve momento de pausa,
Disse para mim mesma:
Que história!  Traída pela memória!
Olhei para a bandeja de novo
E ainda uma vez mais…

ESTE LAGO SERENO

Este lago sereno exerce uma atração,
Uma obsessão misteriosa,
Alucinante em mim.
Um desejo de mergulhar na sua profundeza,
De me perder em seu mistério,
De desaparecer na paisagem tranqüila,
Pintada em suas águas sombrias,
Sossegadas, calmas e imóveis. 
Seu silêncio me hipnotiza e seduz.

Este lago manso me mesmeriza
No tratar invertido da natureza:
A dupla imagem, a ambigüidade.
Céu e água. Água e céu.
O reflexo do vôo de um pássaro no ar…
Um  peixe fugidio a nadar?
Verso e reverso.  Corpo e alma.
Inferno e paraíso.
Meu mundo unido num só horizonte.

O FLAMBOYANT DA CASA AO LADO

Morreu o flamboyant da casa ao lado.
Foi-se o calor de verão da minha infância.
Apagaram-se suas flores alaranjadas,
Fogosos anúncios do início da estação.
Doente e velho, tombou calado e emagrecido.
Sóbrio e distinto, evaporou-se nos cupins.
Deixou em seu lugar espaço raro,
Um ar aberto, um nada enorme, que me espanta.
Um espaço devassado diariamente,
Onde antes, a sombra clara era presente.
O vácuo preencheu meu horizonte.
Galhos partidos, quebrados sobre a ponte.
O tronco doente jogado num instante.
Vergou molhado, encharcado pela chuva.
Mostrando a todos o que só a terra conhecia:
Suas raízes, engrossadas pelo tempo,
Eram agora desvendadas pelo vento.
Tombou sozinho com um único gemido
Doloroso, aceitando o seu destino.
Pernas pra cima em impudico descaso.
Meu companheiro de verões ardentes,
Guardião de minha infância e adolescência.
Exuberante, florescia ano após ano
Desabrochando incandescente em dezembro.
Entre nós havia um rio bem estreito,
Que nascia lá no alto da Rocinha,
Cascateava da nascente até a Gávea,
De onde então serpenteava rumo ao mar.
Era aqui, que deslizava sob as pontes
E atravessava minha rua de mansinho.
De um lado, o flamboyant enraizado;
Do outro, o edifício com meu ninho.
Crescemos juntos, eu e ele aqueles anos.
Nossa distância era pouca e amenizada,
Pois reservava uma flor para meu gozo,
Que escondida pelo batente da janela,
Aos poucos, foi-se chegando espevitada.
E me espreitava, esticando o seu florão.
Curiosa, assim passava os dias quentes.
A cada ano parecia mais chegada.
Era de casa.  Sem receio se hospedava.
Com jeitinho, batia na vidraça,
E enrubescendo se apoiava ao janelão.
Esta flama de verão me viu crescer,
Chorar amores, estudar, adormecer.
Custa-me vê-lo cair, velho soldado!
Quem irá agora anunciar-me o verão?

O PRAZER DE VIVER

Quem primeiro decidiu comer um caracol?
Quem descobriu a trufa e a carne no siri?
Quem na lufa-lufa abriu uma ostra,
Encontrou uma  pérola à mostra?
Que antecessor nosso, faminto, esquálido,
Descobriu quais cogumelos comer?
Teria morrido ou só desfalecido?
Quantos de nossos avós: nossa linhagem,
Humanos de diferentes origens,
Se envenenaram?  Com desespero ou coragem?
À cata da janta, para manter, fortalecer
Seus corpos minguados, doentes, arados.
Quem sobreviveu, como aprendeu?
Caracóis são venenosos: têm que regurgitar
E evacuar antes que possamos comê-los.
Um décimo dos caranguejos são comestíveis.
Quem achou estes crustáceos irresistíveis,
Saboreou-os sem medo?
São todas iguarias refinadas.  Caras.  Sofisticadas.
Não são encontradas em qualquer caserna ou taberna.
Graças ao sacrifício do homem das cavernas?

Verdadeira iguaria é o bisão,
Principal figura das pinturas nas grutas.
Verdadeira iguaria é o mamão, 
A maçã, o figo, a uva, qualquer das frutas.
Não aparecem todas no Jardim do Éden?
Elas vêm no tamanho certo de consumo,
Em embalagens de fácil manuseio,
As frutas foram os primeiros insumos,
Produtos com design perfeito. 
Só a maçã pegou grande má fama,
Já pela manhã, complicou toda trama,
Expulsando o primeiro casal do Paraíso
Depois de lhes ter  dado o primeiro sorriso.
E levou-os a ter que plantar para comer…
Mas trouxe com ela o prazer de viver!

Fontes:
Peregrina Cultural
À Meia Voz

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