quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Guerra Junqueiro (Reconhecimento e Ingratidão)

Os vossos filhos serão para vós, como vós tiverdes sido para vossos pais. E é natural. As crianças vêem diariamente o que fazem seus pais, e imitam-nos. Justifica-se desta maneira o provérbio que diz – que a bênção ou maldição dum pai cai sobre a cabeça de seus filhos terminando sempre por se realizar. Citaremos dois exemplos, que merecem ser meditados:

Um príncipe, passeando no campo, viu um pobre homem que andava muito satisfeito a lavrar a terra. Pôs-se a conversar com ele. Depois de algumas perguntas, soube que o campo não pertencia ao homem, mas que trabalhava nele mediante um salário de doze vinténs por dia. O príncipe que para as suas despesas de administração e representação necessitava de quantias avultadas, custou-lhe ao princípio a perceber, como se vivia com doze vinténs diários, andando-se ainda por cima satisfeito. Manifestou o seu espanto ao aldeão, que lhe respondeu:

– Gasto diariamente comigo a terça parte desta quantia; outro terço é para pagar as minhas dívidas; e o resto é para ir juntando algumas economias.

Era um novo enigma para o príncipe. Mas o alegre camponês explicou-lhe deste modo:

– Reparto quanto ganho com os meus velhos pais, que já não podem trabalhar, e com os meus filhos, que ainda não têm forças para isso. Aos primeiros pago-lhes o amor de que me deram tantas provas na minha infância; e espero que os segundos não me abandonem, quando os anos tiverem pesado sobre mim.

O príncipe, ouvindo isto, quis premiar o honrado camponês; encarregou-se da educação de seus filhos; e a bênção que lhe deram os seus velhos pais, os seus filhos mereceram-na depois pela sua vez, rodeando igualmente a sua velhice de cuidados piedosos e da mais terna dedicação.

Mas posso desgraçadamente citar-vos outro filho, que procedeu de uma maneira tão indigna com o seu velho pai doente e aleijado, que este teve de pedir que o levassem para o Hospital da Misericórdia. O filho ingrato recebeu com alegria o desejo do infeliz velho, que nessa mesma tarde foi conduzido ao hospital. Como este albergue de caridade fosse muito pobre, resolveu-se o velho a mandar pedir a seu filho (era a última esmola), um par de lençóis, para cobrir a palha que lhe servia de leito. O mau filho escolheu os lençóis mais rotos e disse ao seu pequeno, de oito anos de idade, que os fosse levar a «esse velho rabugento». Mas notou que a criança ao partir tinha escondido um dos lençóis a um canto, atrás da porta.

Quando voltou perguntou-lhe o pai porque fizera aquilo.

«Foi, respondeu a criança desabridamente, para me servir mais tarde deste lençol, quando pela minha vez te mandar também para o hospital.»

Fonte:
Guerra Junqueiro. Contos para a infância.

Monteiro Lobato (Reinações de Narizinho) Circo de Cavalinhos – IV– Chegam os convidados

Bum! Bum! Bum! Chegou afinal o grande dia. O terreiro estava enfeitado de bandeirolas e arcos de bambu. Às sete e meia ia começar o espetáculo. O diretor sentou-se à porta do circo para esperar os convidados. Dali a pouco a porteira do terreiro ringiu e apareceu o doutor Caramujo, muito sério, de casca nova, carregando a sua maleta debaixo do braço. Contou que vinha muita gente do reino das Águas Claras, menos o príncipe Escamado.

— Por que não vem o príncipe? — indagou Narizinho.

— Porque o príncipe já não existe mais — murmurou o médico baixando os olhos.

— Como não existe mais? Que aconteceu? Fale!...

— Não sei o que aconteceu. Mas depois daquela viagem ao sítio de dona Benta, o nosso amado príncipe nunca mais voltou ao reino.

Narizinho recordou-se da cena. Lembrou-se de que o falso Gato Félix havia aparecido para avisá-la de que o príncipe estava se afogando por ter desaprendido a arte de nadar. Lembrou-se de que correra ao rio para salvá-lo, mas nada encontrou. Ter-se-ia mesmo afogado?

— Acha que ele morreu afogado, doutor?

— Isso é absurdo, menina. Um peixe nunca desaprende a arte de nadar. O que aconteceu, sabe o que foi?

— Diga...

— Foi comido pelo falso gato Félix, aposto. O choque sentido pela menina foi enorme, e não caiu com um desmaio unicamente porque os convidados estavam chegando e isso estragaria a festa.

Mesmo assim puxou do lenço para enxugar três lágrimas bem sentidinhas. Nisto a porteira ringiu. Era dona Aranha com as suas seis filhas.

Narizinho fez-lhes grande festa, e contou que tinha estado com Branca de Neve e mais outras princesas para as quais dona Aranha havia costurado.

— Branca de Neve ainda é muito branca? — perguntou a famosa costureira.

— Cada vez mais — respondeu a menina. — Até dói na vista olhar para ela.

Em seguida chegaram os dois Bernardos Eremitas — o que havia casado Narizinho e o que conduzira a salva com a coroa do príncipe. E chegaram os siris couraceiros, e chegou o Major Agarra. De repente soou um miado ao longe.

— Será o falso gato Félix? — disse Pedrinho. Se — for aquele patife, meu bodoque vai ter trabalho.

Mas não era, e sim o Gato Félix verdadeiro. Pedrinho ia fazendo as apresentações e acomodando os convidados nos seus lugares. Não houve nenhum que não pedisse notícias de Rabicó, do Visconde e do João Faz-de-conta. A resposta do menino era sempre a mesma:

“Eles são agora artistas do circo e estão se vestindo para a função.”

— E há cocadas? — quis saber o Gato Félix.

— Cocadas só no intervalo — respondeu Emília. — São de três qualidades. Umas brancas como neve, outras cor-de-rosa como rosa, outras queimadinhas como rapadura. Tia Nastácia é uma danada para toda sorte de doces e quitutes. Só não sabe fazer bonecos de pau. Faz-de-conta saiu tão feio que não tem coragem de aparecer para ninguém.

Chegada a hora de se acenderem os lampiões, entrou no picadeiro um “casaca-de-ferro”. Era o pobre Faz-de-conta, com a sua ponta de prego furando as costas da casaca verde que a menina lhe havia feito. Foi uma vaia.

— Olha o arara! — gritou o capitão dos couraceiros.

— Arranca o prego! — urrou o sapo major. O pobre boneco, que tinha muito bom Gênio, não fez caso. Arrumou os lampiões muito bem, deixando o circo tão claro como o dia. Nisso um dos Bernardos berrou:

— Palhaço! Que venha o palhaço!

Todos o imitaram — e foi um berreiro de deixar a gente surda. Pedrinho teve de aparecer para explicar que ainda não tinham chegado os convidados do País das Maravilhas. A explicação causou muita alegria, porque nenhum dos presentes esperava que o pessoal do reino das fadas também viesse. E essa alegria se transformou em surpresa quando o primeiro deles apareceu. Era o Aladim, com sua lâmpada maravilhosa na mão. Chegou e foi trepando às arquibancadas, como se fosse um velho freqüentador de circos.

Depois chegou o Gato de Botas junto com o Pequeno Polegar – e todos bateram palmas. Depois veio a Menina da Capinha Vermelha. E vieram Rosa Branca e sua irmã Rosa Vermelha. Rosa Vermelha apresentou se de cabelo cortado, moda que as princesas do reino das fadas nunca usaram. Foi reparadíssimo aquilo; não houve quem não comentasse.

Depois veio Ali Babá sem os quarenta ladrões, e vieram Alice de Wonderland, e Raggedy Ann e quase todos que existem.

— Que maçada! — murmurou Pedrinho. — Justamente o que eu mais queria que viesse, não veio — Peter Pan...

— Talvez ainda venha — disse Narizinho. — Ele gosta de fazer tudo diferente dos outros.

Era hora de começar o espetáculo; o respeitável público já estava dando sinais de impaciência.

— Palhaço! — gritava volta e meia o Pequeno Polegar.

Nisto um cachorro principiou a latir furiosamente lá fora, como se estivesse dando um pega nalguém. Os espectadores fizeram silêncio, com as orelhas em pé, à escuta. Ali Babá trepou ao último banco para espiar por uma fresta do pano.

— Que é, Ali? — perguntou Aladim, que estava embaixo arrumando a sua lâmpada.

— É Pedrinho que atiçou o cachorro num sujeito muito feio, de barba azul como um céu.

— Barba Azul! — exclamaram as princesas assustadas. – Cada vez que pomos o pé no sítio de dona Benta esse malvado aparece. Não o deixem entrar!...

Houve um rebuliço. Aladim pegou na lâmpada para chamar o Gênio. Não foi preciso. Pedrinho surgiu em cena, já vestido de diretor de circo, e disse:


— Calma! Calma! Não se assustem! O monstro já vai longe. Maroto ferrou-lhe uma dentada na barba, que até arrancou um chumaço — e mostrou um punhado de barba de Barba Azul.

Todos vieram ver e cada qual levou um fio como lembrança.

— Palhaço! — gritou de novo o Pequeno Polegar.

— Cocada! — miou o Gato Félix.

Pedrinho resolveu começar o espetáculo e deu sinal, batendo com um martelo numa enxada velha, pendurada de um barbante — blem, blem, blem...
––––––––––––––
Continua… Circo de Cavalinhos – V– O espetáculo

Fonte:
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. I. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Paraná em Trovas Collection - 41 - Oswaldo Nascimento (São Mateus do Sul)


J. G. de Araújo Jorge (Quatro Damas) 7a. Parte

" JANELA ABERTA "

Chegaste em minha vida
como uma janela aberta
nuca casa vazia e triste.

Trouxeste um dia de sol
um aceno de folhagem
um canto de pássaro.

Que importa se continuo a ser
a mesma casa triste
e vazia?

Debruçado à janela agora
posso te ver passar...
todo dia...

" LAR "

Na estante
meus livros me esperam
e a um simples aceno, conversam
e contam histórias...

Na penumbra
em terna expectativa
minha poltrona guarda em seus braços
a forma do meu cansaço.

Cegos
meus pés calçam no escuro
os chinelos, ao lado da cama.

Em silêncio, meu sono
encontra outro corpo,
(sem fome, sem sede)
e se acomoda e adormece nele
como uma rede...

" LOUCURA... "

A verdade
é que chegaste tarde,
e não pude prever que um dia vinhas...

E o que teria sido um sonho bom e igual
a tantos outros,
uma história de amor e de ternura...

- não pode ser amor somente, e sendo mais
teve que ser loucura !

"MADRIGAL EM TOM DE PRECE"

Principalmente gosto dos teus olhos de águas e espantos
onde flutuas em transe, na luz de duas estrelas fugidias,
e porque eles me dizem que continuas intocada por dentro
e eu fui o primeiro, e há muito me pressentias.

E gosto de teus cabelos quando escorrem
entre meus dedos, e me dão a impressão
de que te tenho nas mãos, e de que todo me emaranho
em sua rede, e de que estamos presos, submersos, perdidos,
sem salvação.

Gosto de tuas mãos pequenas, boêmias, andarilhas
que saem com o destino do amor, e me percorrem,
e se perdem sem caminhos pelos meus cabelos
e me encontram por toda parte, e me aconchegam,
e me socorrem.

Gosto dos teus quadris, amplo vaso torneado
de onde nasce, num torso de planta, a envolver-me
em seus ramos,
de planta que se abre em flores e frutos
que eu desejo e colho
vermelhos, em tua boca, em tuas mãos, em teus seios,
quando nos amamos.

Gosto de tuas costas (como um arco, flexível)
que se alargam em duas luas imensas, geminadas,
surgindo entre os lençóis,
clareando a escuridão,
e que às vezes, de certo jeito, me parece
em teu corpo de mulher,
num meneio qualquer,
com uma grande, exótica e sensual
folha de tinhorão!

Gosto de tua ternura, ternura de vaga mansa,
ternura de praia curva, de enseada onde me deito
como um barco carregado de itinerários,
e de onde, sempre, nunca mais quero partir,
se tudo em torno é perfeito...

Gosto de teu amor... humilde amor que me incensa,
(turíbulo em que teus sentidos todos se consomem)
humilde amor que me exalta, e se prosterna fiel,

como se fosse um Deus, pobre deus submisso
a este culto que o faz tão simplesmente um homem,
- um homem tão preso à terra,
de repente... no céu...

"MADRIGAL PARA UNS OLHOS VERDES"

Nos vossos olhos de mar
de um verde-mar furta cor,
quis um dia navegar
- afoito navegador...

E afinal, por me perderdes
nos vossos olhos de mar,
de um verde-mar furta cor,
dos vossos olhos tão verdes
nunca mais soube voltar...
..................................

Vossos olhos são tão verdes
de um verde-mar furta cor,
que afinal por me perderdes
fiquei perdido de amor…

" MALUCO... "

Só sei que depois que a encontro,
só sei que depois que a vejo
não posso dirigir automóvel...

Entro na contramão,
não respeito os sinais
quase atropelo gente,
me chamam de maluco...
e, às vezes, até demais...

E todos tem razão...
Só que não sabem a razão
porque...
Mas quando a vejo, meu amor,
fico maluco, maluquinho
por Você !

" MAR, AMOR E MORTE... "

Esse tédio cinzento... esse imenso vazio
sem nenhuma paisagem...
Esse vento do mar, de umidade, de longes
em que todo me encharco...

E eu a agarra-me à vida
tremendo de frio,
- sem a coragem do comandante do navio
de afundar com o seu barco...

II
Vamos respeitar o amor... (Um dia, ele aconteceu...)
- pelo que tenha sido,
por tudo que lhe demos
ou... pelo que ele nos deu.

(Nem era para nós, difícil, o presságio...)

- Se nada resta fazer, se tudo está perdido,
que ele ao menos se salve
do nosso naufrágio...
--
Fonte:
J. G. de Araujo Jorge. Quatro Damas. 1. ed. 1964.

José Nava (Sínteses)

Quem busca arrancar no mundo
A treva pela raiz,
Quanto mais sabe mais cala,
Quanto mais cala mais diz.

A Terra seria o Céu,
Se o homem por onde vá,
Seguisse vinte por cento
Dos bons conselhos que dá.

Aviso para ajudar
Raciocínio e lucidez:
Quanto serves, tanto vales,
Quanto sabes, tanto vês.

Quem te elogia ou te aprova
Não te vê como sorri;
Apenas diz a quem ouve
O que se espera de ti.

O que plantaste, plantaste;
Colherás conforme a lei.
Tudo o que deste ganhaste,
O que guardaste, não sei.
--
Fonte:
Francisco Cândido Xavier (psicografia). “Trovas Do Outro Mundo”. Digitado Por: Lúcia Aydir

José Carlos Brandão (O Velho Van Gogh)

As árvores são esqueletos trêmulos na tristeza da tarde. O ar é cinza e frio. É essa a paisagem que vejo quando lembro a figura de van Gogh, as suas idéias, o seu sonho artístico.

Sempre o chamei van Gogh. Conheci-o na venda do Moisés. Eu tomava um aperitivo e olhava distraído um velho exibindo a cada freguês um quadrinho, que logo me pareceu sem interesse: cores baças, um vaso e duas flores pendidas. Era uma natureza-morta apagada, esfumada, as figuras sujas e sem graça.

- O senhor está olhando com ironia nos olhos, mas eu sei - era o velho encaminhando-se para meu lado.

Aponta o quadro: - Gostou?

- É interessante - eu disse.

- Não, não é - ele diz. - Eu sei, eu disse que eu sei.

Ri. Depois, sério, pergunta:

- O senhor é um artista, não é?

- Sou - respondi. - Sou poeta.

- Eu sabia, eu sabia. Você fica se disfarçando, mas não me engana. - Faz uma pausa e explica: - Vou chamá-lo de você. Somos colegas.

- Sim, claro - eu digo.

- Pois sim! Você é um poeta? Você é um emparedado. As palavras escondem, não mostram a face real do homem. Eu sei o que é um emparedado. Essa gente aí, como todo mundo, ninguém entende nada. Eu sei. Eu sou um artista como você. Um emparedado.

Penso em meu livro O Emparedado, mas não tenho tempo para relacionar essas idéias com os meus poemas, muito menos para responder. O velho van Gogh, o que lhe interessa é falar.

- Um emparedado - abre os braços em cruz. - Esse ar cinzento, a cidade de pedra, a estreiteza mental. Eu sei o que é um emparedado. Tenho ou não tenho razão?

Pergunta, mas não me deixa responder.

- Por isso o poeta se cala. O poeta usa palavras: um disfarce. As palavras são um espelho, mas as imagens são sempre deformadas. Não tenho razão?

Tento explicar. Van Gogh fala e fala. Olho a sua roupa larga, desleixada; o seu jeito de ignorante; o seu quadrinho, que me parece insignificante, como o dono.

- Ah, está gostando da pintura? Pois isto não quer dizer nada. O que você está vendo aqui?

Tento responder. O que lhe diria? Penso: "Estou vendo um quadro". Não digo nada.

- Pois você está vendo um quadro - ele diz. - E um quadro é um quadro. Pois esse é todo mal. Um quadro é um espelho que deforma a realidade. É como um poema. O que nós temos no final das contas? Imagens gastas.

A minha opinião não lhe interessa. Eu não lhe interesso: olha para além de mim, os olhos pasmados.

- Sabe quem eu gostaria de ser? Com quem me pareço?

Quero dizer, não sei por quê: "Van Gogh". Ele antecipa-se:

- Van Gogh. Ele não era um louco? Eu também sou. Que grande louco esse van Gogh! Nunca vendeu um quadro, não é? Eu também não. Nem quero vender; meus quadros eu dou; meus quadros eu jogo fora. Não, não pense que eu não respeito o que eu faço. Por isso eu gosto de lixo: eu detesto o lixo dos entendidos míopes. Míopes? Eu quero a cegueira.

Não o entendo. Quero acabar logo a conversa. Não é possível.

- Então eu não sou van Gogh? O diabo do homem pintou a angústia, o desespero. Eu não quero mostrar sentimento nenhum. Eu quero um quadro frio como a vida. A vida não é fria? A imagem da vida deve ser fria. Eu quero pintar o nada. O nada é o espaço vital do homem de hoje. Van Gogh inventou a cor. A cor de van Gogh tem consistência, você sente o peso da cor do homem, a coisa sai do quadro, tem vida própria. Muito bem: é lindo, é doloroso e lindo. Pois veja só: eu quero inventar a não-cor. Você está me entendendo? Não. Não está.

Sorri. Despedimo-nos amigavelmente. Prometo mostrar-lhe algum poema; ele, um novo quadro.

Passam-se os dias. Somos vizinhos e encontro-o com freqüência; mas ele não me vê, cruza ao largo, não me dá sequer a oportunidade de cumprimentá-lo.

Entrego-me às minhas atividades. Às minhas aulas. À feitura de um e outro poema. À constante reflexão sobre o problema da criação artística. De como a arte é uma imagem deformada, como queria o meu van Gogh, e é a nossa própria imagem. De como o espelho pode estar partido, mas é una a imagem refletida nos múltiplos fragmentos.

Acontecimentos sucedem-se; foi um ano grave em minha vida - morreu meu pai, nasceu meu filho. Mas o esquisito personagem a que chamei van Gogh, não posso esquecê-lo. Vejo-o diariamente. Paro e olho-o, o passo trôpego, as maneiras abobadas. Sorrio e continuo o meu caminho.

Um dia resolvo-me, paro em sua frente.

- Licença - diz.

- Boa tarde - eu digo.

- Está bom. Agora eu quero passar - ele diz.

- Não me reconhece? - eu digo.

Ele empurra-me e entra em sua casa, a dois passos da minha. Nada perdido, penso. O tempo se nos dá em partículas, é o espaço humano de que a consciência perde e recupera resíduos imperfeitos. Divago; o caso é que, meia-hora depois, na mesma venda onde primeiro nos encontráramos, sou tomado pela surpresa de um abraço efusivo.

- Há quanto tempo, meu amigo - e o meu van Gogh colhe-me nos braços, quase me levanta no ar. - Meu irmão! Como vai a poesia? Ah, a poesia lava a alma. É a única razão para viver. Sem a poesia, que seria do mundo? "Um vácuo atormentado de erros", como dizia um filósofo. Mas a filosofia não vale nada, meu amigo. São teorias que afastam o homem da realidade. Abstrações. Abstrusas, obtusas, oclusas - não é, irmão, você que sabe mexer com as palavras? Eu mexo as tintas. Ah, um desperdício, irmão. Abstrações. Estou desconsolado. O mundo não tem conserto. "A miséria não tem fim".

Estou sem palavras. Ofereço-lhe um conhaque, bebida que eu o vira tomar várias vezes. Ele recua, diz que não bebe. Tiro de uma pasta dois poemas que ele, acompanhando com os dedos, com movimentos do corpo, lê muito pausadamente, mexendo os lábios grossos, erguendo e abaixando as sobrancelhas; depois, repete de cor, como a mostrar interesse, ou treino de memória, mas pronuncia mal as palavras, diz os versos sem ritmo, como se lesse uma nota fiscal. Comentou o uso de um artigo, a posição de um adjetivo, por que esse e não outro; fez um ou dois comentários pertinentes, ao menos assim me pareceram. Depois falou:

- Não gostei. Você é um poeta, está certo. Um poeta reconhece-se de longe. Mas seus poemas são bem ruinzinhos, hein?

Falou, e logo pediu desculpas. Que não quisera ofender. É que eu tinha a obsessão da forma. O apuro formal é necessário, disse, mas não deve transparecer.

Saberia o homem o que estava falando? Bom. Não era novidade e, se algo me interessava, era a sua pintura.

- Sim, como não? Tenho um quadro. Estou no caminho. Já lhe falei do meu projeto, não? Venha, venha comigo; tenho uma cachaça especial lá em casa. Você vai ver que cachaça!

No caminho, uns duzentos metros, explicou-me por que fazia quadrinhos: o trabalho é mais difícil; o resultado, mais perfeito. Era preciso eliminar a cor; que houvesse uma pintura, mas sem nenhum colorido; que se criasse a imagem do nada. Van Gogh, explicou-me com detalhes, era um apaixonado do desenho, espinha dorsal da pintura; ele, novo van Gogh, também apaixonado do desenho, buscava não fazê-lo: todo desenho seria um apelo à pintura.

Estamos parados junto ao portão, ele falando e remexendo os bolsos. Quando por fim encontrou as chaves, abre o portão sem usá-las. Numa pequena despensa no quintal, sobre um cadeira, à guisa de cavalete, um quadrinho, 7,5 x 12,25 cm (é a medida que me deu). Mas não falamos logo do quadro; antes enche dois copos de pinga, elogia-a repetidamente, ri, derruba várias caixas vazias, sempre ruidoso, não fala coisa com coisa, bebe, enche de novo o copo.

Tomo o quadro na mão. Estarei na casa de um maníaco? De um bêbado qualquer?

- Deixe isso aí - diz. - Não, não. Pode levar; faça com isso o que quiser; isso não vale nada.

Aborrecido, despeço-me e saio. Amizade acabada; o que é que eu esperava, afinal?

Alcança-me no portão; desculpa-se. Se gostei?

Que é que vira no quadro? Árvores, mal adivinhadas, na cerração. Mas não eram árvores; eram pessoas. Ou seriam árvores mesmo? Não importa: era uma pintura.

Mostra-me como mal se delineava a imagem, um disfarce. A ausência de perspectiva - um engano de ótica - buscada.

O cuidado minucioso com a criação, técnica pontilhista, sombreada de manchas. Diz que van Gogh foi ofuscado pela cor; então, a cor se tornou um ser vivo. Um trigal, o amarelo crescendo, e iludindo o espectador; o verdadeiro espírito de van Gogh estaria nas pinceladas violentas, as manchas que destroem a falsa impressão de estabilidade. Explica-me como sentir um quadro: deixar-se penetrar por ele; se você se sente dentro da pintura, o quadro é bom; ou se a pintura está dentro de você. Com ele, o meu van Gogh, isto não se dá; ou não se dará quando atingir um estágio mais avançado de seu trabalho.

Promete-me novos quadros, e cumpre a palavra.

Recebo cinco novas obras; ainda as tenho comigo, inúteis. Mostrei-as a alguns críticos de arte, que torceram o nariz, como se fosse pilhéria minha.

O autor explicou-me as primeiras. Uma eram maçãs, cerejas e um rato degolado; confessei que não via figura alguma, e ele sentiu-se encantado. Nem o sangue eu via? Mas ainda não era a negação da cor, disse. Como não o era a outra: pombas no meio da rua comendo migalhas de pão; eu via apenas algo como um espelho baço, mas certamente estava enganado.

As outras, não sei o que são. O meu van Gogh morreu. Contaram-me que morreu suavemente; foram-se-lhe apagando as cores da face, quando convalescia de uma gripe, e expirou. Recebi um pacotinho com três telas, e um recado: tarefa cumprida. Para mim, o que diferencia as telas é tão-só o tamanho: uma menor que a outra; a terceira, pouco maior que uma tampinha de garrafa. E que vejo nelas? Cerração. Ondas densas de cerração, e vagas ao mesmo tempo. Um cinza frio.

Abro a janela. Esqueletos tremulam na tarde triste, estendem os braços, gesticulam. Árvores desfolhadas.

Estou vendo o meu van Gogh, torto, o ar ingênuo, declamando o seu discurso sem fim.

Fonte:
Garganta da Serpente. Contos do Coral