segunda-feira, 10 de março de 2025

Silmar Bohrer (Croniquinha) 130

Terminados os trabalhos na cozinha lavando a louça, areando a chapa do fogão, passando pano no chão, aquela senhora grisalha, olhos vivos e brilhantes, chegou na sala e viu o marido costurando um buraco na meia.

- Mas por que costurar esta meia usada. Já está rota e velha !?! 

- Devo costurá-la. 

- Por quê ?

- Ela faz parte das minhas coisas.

Quantas vezes não valorizamos estas pequenas coisas, detalhes que podem valer pouco, mas valem muito materialmente, sentimentalmente, humanamente. 

Esquecemos de nos ater ou não darmos atenção a objetos ditos insignificantes, quando na realidade não são.  Como também não seguimos aquele quase preceito de que não devemos jogar fora tudo que não serve mais -um parafuso enferrujado, a toalha de banho que vira pano de chão, a casca de uma fruta que podemos transformar em deliciosa sobremesa, um prego torto . . .

E ouve-se seguidamente que quem guarda o que não presta, tem o que precisa.
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SILMAR BOHRER nasceu em Canela/RS em 1950, com sete anos foi para em Porto União-SC, com vinte anos, fixou-se em Caçador/SC. Aposentado da Caixa Econômica Federal há quinze anos, segue a missão do seu escrever, incentivando a leitura e a escrita em escolas, como também palestras em locais com envolvimento cultural. Criou o MAC - Movimento de Ação Cultural no oeste catarinense, movimentando autores de várias cidades como palestrantes e outras atividades culturais. Fundou a ACLA-Academia Caçadorense de Letras e Artes. Membro da Confraria dos Escritores de Joinville e Confraria Brasileira de Letras. Editou os livros: Vitrais Interiores  (1999); Gamela de Versos (2004); Lampejos (2004); Mais Lampejos (2011); Sonetos (2006) e Trovas (2007).

Fontes:
Texto enviado pelo autor. 
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

Vereda da Poesia = 224


Soneto de
EDY SOARES
Vila Velha/ES

DESALENTO

Quem vai nunca vai sozinho,
leva um pedaço da gente;
quem fica não fica inteiro;
pois, a alma fica doente.

Quem fica sente saudades,
o soluço sufoca o peito.
Quem chora apascenta a alma;
quem sorri, o faz com respeito.

Qual livro na prateleira
e conto que vai pra memória,
a saudade rasga o peito,
qual página que finda a história.

A lágrima, que lava os olhos,
não leva a dor de quem chora.
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Poema de
SILVIAH CARVALHO
Manaus/AM

COMO SE FOSSE A ÚLTIMA VEZ!

Já era dia
Desejei tanto que fosse noite,
...E aquela noite parecia dia!
Aqueles dias infindáveis de tão grande harmonia.

Eu te amei de uma forma tamanha, estranha,
Que toda noite era dia, e o dia se aproximava,
E eu nem percebia! Queria velar teu sono,
Tocar seu rosto enquanto dormia.

Dizer-te baixinho eu amo você!
Fica mais um dia, mas se te acordasse,
Eu não me perdoaria, estava tão lindo!
Seus olhos fechados, sua boca entreaberta.

Pedia-me um beijo, eu não resistia...
Amei-te, como quem ama pela última vez.
Senti seu coração bater, Como se fossem as últimas batidas,
Senti seu calor como se fosse sentir frio o resto da vida.

E já era noite, a lua desejava ver-te, 
Encantá-lo com sua beleza, talvez.
Roubá-lo de mim outra vez.

Mas um tão grande egoísmo em mim se fez,
Fechei a janela, queria tê-lo só para mim dessa vez.
E desejar que fosse dia, mesmo sendo noite.

...Como se fosse a última noite, a última vez!
= = = = = = = = =  

Poema de
DOMINGOS FREIRE CARDOSO
Ilhavo/ Portugal

TUDO O QUE SOU É MENOS DO QUE EU QUERO
(José Carlos Ary dos Santos in "Cem Sonetos Portugueses", p. 146)

Tudo o que sou é menos do que eu quero
Para matar a sede em que me afogo
E acabrunhado aos pés da vida eu rogo
O fim da pequenez que não tolero.

Amarrado a um corpo que é severo
Nas margens do impossível em que eu vogo
Perplexo, pobre e puro eu me interrogo
Do modo como ser mais do que um zero.

Tem razões para estar insatisfeito
O coração que trago no meu peito
Vestindo a sua estranha condição:

Com asas de voar para se erguer
O destino o condena a padecer
E a morder esse pó que há pelo chão.
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Soneto de
AFONSO FREDERICO SCHMIDT
Cubatão/ SP, 1890-1964, São Paulo/SP

A BELEZA

Neste crisol do coração, Beleza
Que iluminas a nossa noite escura,
És a Bondade — que se fez Grandeza
E a Dor sofrida — que se fez Doçura.

És a muda expressão da Natureza;
Beijo no amor, sorriso na candura,
Prece na morte, pranto na tristeza
E, para os poetas, mística tortura.

Ninfeia azul no pântano estagnado,
Flores brotando na aridez das lousas,
Ou mistério no páramo estrelado,

Em tudo o que nos cerca, tu repousas,
Porque a Beleza é Deus manifestado,
A nos sorrir pela expressão das cousas*.
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* cousa = a grafia correta é “coisa”. A forma ‘cousa’ era utilizada em português, mas caiu em desuso a partir da evolução da língua portuguesa moderna. Contudo, não é errado a sua utilização, tanto que a palavra ainda faz parte dos dicionários. 
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Poema de
FILEMON MARTINS
São Paulo/ SP

COMPONDO VERSOS

Eu quisera compor uns lindos versos
que falassem do amor e da paixão,
destes sonhos antigos e dispersos
que ocuparam meu pobre coração.

Teus olhos cor de mar (quase perversos),
pousaram sobre mim, que perdição,
e meus sonhos agora estão imersos
neste mar de beleza e solidão.

Por que partiste assim, sem dizer nada,
deixando apenas tua gargalhada
que em saudade se fez e em mim convive?

Peço para que voltes, doce amada,
porque sem luz não há mais alvorada,
sem teu amor meu coração não vive!
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Soneto de
MIGUEL RUSSOWSKY
Santa Maria/RS (1923 – 2009) Joaçaba/SC

NOITE SEM AURORA

A noite de um adeus não tem aurora
mas tem silêncios longos por recheio;
tem farpas arranhando, bem no meio...;
tem desesperos mil vagando fora...

A noite de um adeus, eu sei que chora
ao ver a sepultura de um anseio.
Não a censuro e até a manuseio
com estes versos que componho agora.

A noite de um adeus ensina a gente
ter dias sem relógio...e alguém já disse
que nunca cicatriza totalmente.

A noite de um adeus...só bem depois
expõe a solidão, numa velhice,
em que murchamos tristes nós, os dois.
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Cantiga Infantil de Roda
A VELHA A FIAR

Estava a velha no seu lugar, 
veio a mosca lhe incomodar.
A mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a mosca no seu lugar, 
veio a aranha lhe fazer mal.
A aranha na mosca, 
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a aranha no seu lugar, 
veio o rato lhe fazer mal.
O rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o rato no seu lugar, 
veio o gato lhe fazer mal.
O gato no rato, 
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o gato no seu lugar, 
veio o cachorro lhe fazer mal.
O cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o cachorro no seu lugar, 
veio o pau lhe fazer mal.
O pau no cachorro, 
o cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o pau no seu lugar, 
veio o fogo lhe fazer mal.
O fogo no pau, 
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato,
o gato no rato, 
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o fogo no seu lugar, 
veio a água lhe fazer mal.
A água no fogo, 
o fogo no pau, 
o pau no cachorro,
o cachorro no gato, 
o gato no rato, 
o rato na aranha,
a aranha na mosca, 
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a água no seu lugar, 
veio o boi lhe fazer mal.
O boi na água, 
a água no fogo, 
o fogo no pau,
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o boi no seu lugar, 
veio o homem lhe fazer mal.
O homem no boi, 
o boi na água, 
a água no fogo,
o fogo no pau, 
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato,
o gato no rato, 
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava o homem no seu lugar, 
veio a mulher lhe incomodar.
A mulher no homem, 
o homem no boi, 
o boi na água,
a água no fogo, 
o fogo no pau, 
o pau no cachorro,
o cachorro no gato, 
o gato no rato, 
o rato na aranha,
a aranha na mosca, 
a mosca na velha 
e a velha a fiar.

Estava a mulher no seu lugar, 
veio a morte lhe levar.
A morte na mulher, 
a mulher no homem, 
o homem no boi,
o boi na água, 
a água no fogo, 
o fogo no pau,
o pau no cachorro, 
o cachorro no gato, 
o gato no rato,
o rato na aranha, 
a aranha na mosca,
a mosca na velha 
e a velha a fiar.
= = = = = = = = =  

Quadra Popular de
AUTOR ANÔNIMO

Vi hoje uma árvore velha
toda coberta de flores
e me lembrei da minh’alma
carregadinha de dores.
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Poema de
VANICE ZIMERMAN
Curitiba/PR

MANDALAS DE FOLHAS

Em uma das mãos seguro
Uma folha  do Plátano
Lembranças do Outono...
Na fragilidade da folha,
Ainda sinto o toque das tuas mãos,
E, de um tempo em que fazíamos
Mandalas de folhas...
E depois ficávamos juntinhos,
Observando a brisa
Acariciar as folhas,
E as cores do pôr do sol.
Não resisto e...
As lágrimas escapam.
= = = = = = 

Hans Christian Andersen (O Isqueiro)

Ia um soldado andando pela estrada com passo marcial: um dois! um, dois! Levava o sabre ao lado e a mochila às costas. voltava da guerra, e ia a caminho de casa.

Encontrou no caminho uma feiticeira velha, de feiura espantosa! O lábio inferior pendia-lhe até o peito. Ela o cumprimentou:

  - Bom dia, soldado! Que linda espada levas, e que mochila grande! Também, se quiseres, poderás ter tanto dinheiro como te der na imaginação.

- Obrigada, velha feiticeira! - replicou o soldado.

- Vês essa enorme árvore? Pois está toda oca. Sobe até o topo e verás que tem um buraco. Por ele poderás descer até o interior da árvore. Levarás esta corda amarrada ao corpo, e eu te içarei quando me deres o sinal.

- E que terei de fazer lá embaixo? - indagou ele.

- Apanhar dinheiro. Devo dizer-te que lá embaixo, no fundo da árvore, há uma enorme sala muito bem iluminada, pendem do teto mais de cem lâmpadas. Verás três portas, que poderás abrir, porque as chaves estão na fechadura. Abrindo a primeira, verás no meio da sala uma arca de madeira e deitado em cima dela um cão, cujos olhos são do tamanho de um pires. Não tenhas medo: vou dar-te meu avental azul, que estenderás no chão e, sem perder tempo, porás o cão em cima dele. Só então abrirás a arca, e tirarás dela quanto dinheiro quiseres. São só moedas de cobre e se preferes prata, terás de abrir a segunda porta. Lá verás outro cão, de olhos do tamanho de mós de moinho. Não tenhas medo: mete-o no meu avental e junta quanto dinheiro quiseres. Agora, se preferes ouro, poderás também tirar quanto quiseres, mas no terceiro quarto. Ah! Mas lá encontrarás um cão de olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague. Aquele sim, é um senhor cão! Não tenhas medo: pondo-o no meu avental poderás apanhar quanto ouro quiseres, tirando-o do terceiro cofre.

- Tudo isso é muito bom- disse o soldado – mas que queres que eu faça em troca disso? Porque certamente que hás de querer alguma coisa, velha feiticeira.

- Não, não quero nem um vintém, só te peço que me tragas um isqueiro velho, que minha avó esqueceu lá embaixo, da última vez que entrou na árvore.

- Pois bem: ata-me a corda à cintura.

- Pronto! E aqui está também o meu avental.

O soldado subiu à arvore, escorregou pelo tronco oco, e foi ter a uma grande sala, toda iluminada, conforme dissera a feiticeira.

Abriu a primeira porta. Credo! Lá estava o cão, que fixava nele olhos do tamanho de um pires!

- És um belo rapaz! - disse logo o soldado, enquanto pegava no cão e o depositava sobre o avental da bruxa. 

Encheu então os bolsos de moedas de cobre, fechou de novo a arca, pôs de novo o cão em cima dela e dirigiu-se para a segunda porta. Abriu-a, e a primeira coisa que viu foi o cão de olhos enormes, do tamanho de mós de moinho.
 
- Não me olhes assim, tão fixamente - disse ele. - Podes ficar vesgo!

E pôs o cão no avental, mas quando viu quanta prata havia no cofre, deitou fora todas as moedas de cobre e atulhou os bolsos e a mochila de moedas de prata. E dali foi para a terceira porta, que abriu. 

E... que horror! Aquele cão tinha, na verdade, os olhos do tamanho da torre de Copenhague! E ainda por cima, girava nas órbitas, como rodinhas de fogo de artifício.

- Boa tarde! - disse ele, levando a mão ao boné.

Cumprimentava o cão, porque jamais na vida vira animal que inspirasse tanto respeito. Encarou-o um instante, como se lhe pedisse licença, e depois ergueu-o e o depôs no avental e abriu a arca. 

Deus nos acuda! Quanto ouro! Daria para comprar a cidade inteira de Copenhague, com todas as confeitarias, e todos os soldadinhos de chumbo, e chicotinhos, e cavalos de balanço do mundo! Era muito dinheiro! 

O soldado lançou fora toda a prata que recolhera, para levar ouro, só ouro. Encheu os bolsos, a mochila, o boné, até nas botas meteu moedas de ouro - tantas e tantas que quase  nem podia andar. Agora sim, que estava rico!

Pôs o cão outra vez sobre o cofre, fechou a porta e gritou:

- Puxa a corda, velha feiticeira!

- Achaste o isqueiro? - perguntou ela antes de içá-lo.

- E esta! Tinha-se esquecido dele!

Foi em busca do isqueiro, e, quando o achou, deu o sinal. A velha puxou-o para cima, e logo o soldado se viu de novo na estrada, com os bolsos, as botas, a mochila e o boné cheios de ouro.

- Para que queres tu este isqueiro? - perguntou à bruxa.

- Isso agora não é da tua conta, já tens o dinheiro, dá-me o que me pertence.

- Escuta, velha feiticeira, se não me disseres para que queres este isqueiro, corto-te a cabeça com o meu sabre!

- Pois não te digo!

E então o soldado cortou-lhe a cabeça. A velha ficou ali estendida. Ele fez uma trouxa de dinheiro com o avental dela, lançou a trouxa aos ombros, meteu o isqueiro no bolso e marchou para a cidade.

Era uma cidade muito bonita. Ele se dirigiu ao melhor hotel, pediu o melhor apartamento, o melhor jantar, já que era agora rico, havia de aproveitar bem a riqueza.

O criado que o servia estranhou que homem tão opulento tivesse botas tão velhas e acalcanhadas, mas é que ele não tivera tempo de comprar outras. 

No dia seguinte, porém, tratou de se vestir e calçar como lhe convinha. Agora sim, parecia um cavalheiro  elegante, e todos lhe falavam nas grandezas da cidade, e no seu rei, e na amável princesa, sua filha.

- E onde poderei vê-la? - indagou o soldado.

- Ah! quanto a isso, não é possível. Ela mora em um castelo de bronze, cheio de torres, e cercado de altas muralhas. Ninguém lá entra, a não ser o rei, porque uma profecia diz que ela casará com um soldado raso, e o rei quer impedir a todo o custo que a profecia se realize.

- Ah! Se eu pudesse vê-la - pensou o soldado.

Mas era impossível obter licença para entrar no castelo.

Começou então a levar uma vida muito alegre e divertida: ia ao teatro, passeava de carro no Parque Real, e dava muito dinheiro aos pobres - coisa muito digna de louvor. Lembrava-se bem de quanto é triste não ter a gente dinheiro para gastar! Agora que estava tão rico, também tinham muitos amigos, todos o elogiavam, dizendo que era um moço muito distinto - um perfeito cavalheiro - palavras que muito lisonjeavam a sua vaidade.

Mas, como gastava sem medida, e nada ganhava, chegou por fim um dia em que se viu com duas moedas apenas. Acabara o dinheiro e viu-se forçado a deixar os quartos elegantes em que morava, trocando-os por um sótão. Tinha de limpar as botinas e até  remendá-las, com uma agulha de cerzir. E já nenhum amigo ia mais visitá-lo - eram muitos degraus para subir até lá.

Uma noite não tinha já nem um vintém para comprar uma vela, e estava às escuras, quando se lembrou do velho isqueiro que tirara do oco da árvore. Foi buscá-lo. Quando bateu com o fuzil na pederneira, saltou dela uma faísca, abriu-se a porta e apareceu um cão - aquele cão de olhos do tamanho de pires, que vira lá dentro da árvore. E o cão perguntou-lhe:

- Que ordena, meu senhor?

- Mas que é isto! - exclamou o soldado. - Este isqueiro não tem preço, se eu puder obter dele tudo o que desejo!

Dirigindo-se então ao cão, disse-lhe:

- Traze-me dinheiro.

Desapareceu o cão como um relâmpago, e voltou também com a mesma presteza, tendo na boca um saquinho cheio de moedas de cobre.

Via agora o soldado que tesouro possuía naquele isqueiro velho, de poder prodigioso. Se dava uma pancada, aparecia o cão do cofre de cobre, se dava duas, vinha o da arca de prata e se dava três batidas era o da arca de ouro que aparecia.

Pôde assim o soldado voltar à sua vida regalada, vestir-se com a mesma elegância, e morar em quartos de luxo. E de novo seus amigos antigos o conheciam, e testemunhavam-lhe tanta amizade com dantes.

Mas um dia veio-lhe à memória o caso da princesa.

- Afinal é estranho que ninguém a possa ver! Dizem todos que é tão linda - mas de que serve isso, se tem de viver sempre encerrada em um castelo de bronze cheio de torres? Não poderei mesmo vê-la? Onde está meu isqueiro?

Fez fogo e apareceu o cão de olhos do tamanho de pires.

- É tarde da noite - disse o soldado - mas eu estou ansioso por ver a princesa, ainda que seja por um só momento!

Sumiu-se o cão no mesmo instante, e, antes que o soldado tivesse tempo sequer de pensar, já estava de volta com a princesa. Estava adormecida, sobre o lombo do animal, e era de fato tão formosa que logo se via que era uma princesa! O soldado - porque era um verdadeiro soldado - não pode deixar de lhe dar um beijo.

Saiu o cão levando a princesa, mas, à hora do almoço, disse ela aos pais que tinha tido um sonho maravilhoso, em que entravam um cão e um soldado: tinha andado nas costas do cão, e o soldado a beijara.

- É uma história linda - disse a rainha.

E naquela noite ficou uma dama de honra ao pé da cama da princesa para lhe velar o sono e ver se de fato ela sonhara, ou se haveria nisso alguma coisa estranha.

O soldado tinha  um desejo tão grande de rever a princesa, que o cão tornou a ir buscá-la. Mas a velha dama de honra se pôs no encalço do animal, e quando viu que ele desaparecia com a princesa em uma grande casa, fez na porta uma cruz, com um pedaço de giz, para poder reconhecê-la mais tarde. Foi então para casa e deitou-se. 

Dali a um momento tornou o cão a sair com a princesa, e, ao ver a cruz branca na porta, pegou também em um pedaço de giz e fez cruzes em todas as portas da cidade. Era um cão sagaz, pois assim a dama de honra não poderia saber qual a casa marcada por ela, uma vez que todas as portas tinham cruzes de giz. 

De manhã cedo saíram o rei, a rainha, a dama de honra e todos os oficiais da casa real, para ver onde tinha estado a princesa.

- É ali - disse o rei, ao ver a primeira a porta com uma cruz.

- Não, querido, foi aqui - disse a rainha, vendo uma cruz em outra porta.

- Mas...ali está outra, e outra, e mais outra! - gritavam agora todos os da comitiva.

E viram que era inútil continuar a busca - pois que havia uma cruz em cada porta.

Mas a rainha era dama de muito engenho, e sabia mais coisas do que andar de carro pelas ruas. Ela tomou sua tesoura de ouro e cortou e recortou um pedaço de seda, fez dali um saquinho e encheu-o de trigo mourisco. Amarrou-o na cintura da princesa e depois fez um buraquinho na ponta do saco; assim iriam caindo os grãozinhos por onde a princesa andasse.

À noite voltou o cão e levou a princesa de novo para o quarto do soldado, subindo com ela pela parede: estava o rapaz tão enamorado dela, que só desejava ser um príncipe, para poder casar com a linda princesa.

Não notou o animal que a princesa ia semeando trigo por onde passava. No dia seguinte não foi difícil ao rei e à rainha descobrir a casa onde estivera sua filha, e mandaram logo prender o soldado, que foi parar na cadeia. Sentado no calabouço, refletia ele na sua triste situação. Como era escuro e desagradável aquele lugar! E pior ainda foi quando ouviu a sentença:

- Serás enforcado amanhã!

Não era nada alegre a notícia, e ainda por cima verificou que tinha deixado seu isqueiro no hotel.

De manhã viu a multidão de gente que ia correndo para as portas da cidade, para assistir à execução. Através das grades da janelinha viu também passar o pelotão de soldados que marchavam para o lugar da forca. Ouvia o toque dos tambores, via que todos estavam ansiosos para vê-lo enforcado, e entre aquela gente toda avistou um aprendiz de sapateiro, de avental de couro e chinelas. Corria tão açodado que uma das chinelas lhe escapou do pé e foi bater mesmo na grade da janela, onde estava o soldado, que gritou por ele:

– Olá! Não corras tanto! A festa não começará enquanto eu não  chegar. Escuta: se queres ir à minha casa e trazer-me um isqueiro que ficou lá, dar-te-ei quatro xelins. Mas tens que correr com vontade, rapaz!

Ora, a aprendiz ficou muito contente de poder apanhar aquelas moedas, saiu pois a toda a pressa e voltou num instante com a caixinha, e... mas vamos ver o que aconteceu.

Tinham erguido uma forca alta; em torno dela premia-se enorme multidão - centenas de milhares de pessoas. Os soldados mal conseguiam manter toda aquela gente no lugar a ela destinado.  Os reis ocupavam um trono magnífico, em frente dos juízes e do Conselho.

Já o soldado tinha subido ao patíbulo, e iam passar-lhe a corda pelo pescoço, quando pediu que lhe concedessem uma graça insignificante, conforme era costume fazer-se com todos os criminosos antes da execução. Desejava muito tirar algumas fumaçadas do seu cachimbo antes de morrer, pois seria a última vez que fumava neste mundo.

Não quis o rei negar essa graça, e o soldado puxou pelo isqueiro e feriu a pederneira - uma, duas, três vezes! E num relance estavam ali todos os cães -  dos olhos do tamanho de um pires, o dos olhos do tamanho de mós de moinho, e os dos olhos tão grandes como a torre redonda de Copenhague.

– Acudam-me, que não me enforquem! - disse-lhes o soldado.

Caíram os cães imediatamente sobre os juízes e todo o Conselho, apanharam um pelas pernas, outro pelo nariz e atiraram-nos tão alto, que quando caíram em terra estavam em pedaços.

- Não consinto...- gritou o rei, ao ver aquilo.

Mas o maior de todos atirou-se a ele e à rainha, e num instante estavam ambos também rodopiando no ar, como acontecera com os outros.

Então os soldados e o povo, amedrontados, puseram-se a gritar:

- Soldadinho, soldadinho! Serás agora o nosso rei, e casarás com a bela princesa!

Instalaram o soldado na carruagem real, e os três cães iam à frente, bradando:

- Viva! Viva!

Os moleques assobiavam nos dedos, e os soldados apresentavam armas. A princesa saiu enfim do seu castelo de bronze, e foi proclamada rainha, o que muito lhe agradou, na verdade!

As festas do noivado duraram uma semana; os três cães também se sentaram à mesa do festim, arregalando mais que nunca os enorme olhos para tudo quanto viam. 
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HANS CHRISTIAN ANDERSEN foi um escritor dinamarquês, autor de famosos contos infantis. Nasceu em Odense/Dinamarca, em 1805. Era filho de um humilde sapateiro gravemente doente morrendo quando tinha 11 anos. Quando sua mãe se casou novamente, Hans se sentiu abandonado. Sabia ler e escrever e começou a criar histórias curtas e pequenas peças teatrais. Com uma carta de recomendação e algumas moedas, seguiu para Copenhague disposto a fazer carreira no teatro. Durante seis anos, Hans Christian Andersen frequentou a Escola de Slagelse com uma bolsa de estudos. Com 22 anos terminou os estudos. Para sair de uma crise financeira escreveu algumas histórias infantis baseadas no folclore dinamarquês. Pela primeira vez os contos fizeram sucesso. Conseguiu publicar dois livros. Em 1833, estando na Itália, escreveu “O Improvisador”, seu primeiro romance de sucesso. Entre os anos de 1835 e 1842, o escritor publicou seis volumes de contos infantis. Suas primeiras quatro histórias foram publicadas em "Contos de Fadas e Histórias (1835). Em suas histórias buscava sempre passar os padrões de comportamento que deveriam ser seguidos pela sociedade. O comportamento autobiográfico apresenta-se em muitas de suas histórias, como em “O Patinho Feio” e “O Soldadinho de Chumbo”, embora todas sejam sobre problemas humanos universais. Até 1872, Andersen havia escrito um total de 168 contos infantis e conquistou imensa fama. Hans Christian Andersen mostrava muitas vezes o confronto entre o forte e o fraco, o bonito e o feio etc. A história da infância triste do "Patinho Feio" foi o seu tema mais famoso - e talvez o mais bonito - dos contos criados pelo escritor. Um dos livros de grande sucesso de Hans Christian Andersen foi a "Pequena Sereia", uma estátua da pequena sereia de Andersen, esculpida em 1913 e colocada junto ao porto de Copenhague/ Dinamarca, é hoje o símbolo da cidade. Quando regressou ao seu país, com 70 anos de idade, Andersen estava carregado de glórias e sua chegada foi festejada por toda a Dinamarca. Após uma vida de luta contra a solidão, Andersen logo se viu cercado de amigos. Faleceu em Copenhague, Dinamarca, em 1865. Devido a importância de Andersen para a literatura infantil, o dia 2 de abril - data de seu nascimento - é comemorado o Dia Internacional do Livro Infanto-juvenil. Muitas das obras de Andersen foram adaptadas para a TV e para o cinema.

Fontes:
Hans Christian Andersen. Contos. Publicados originalmente entre 1835 – 1872. Disponível em Domínio Público
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing

domingo, 9 de março de 2025

Adega de Versos 131: Erigutemberg Meneses

 
    

Eduardo Martínez (O Leitor)

Lia tudo! Sempre leu, antes mesmo de ser alfabetizado, quando ainda desconhecia a ordem certa das letras nas palavras. Era desse tipo que gostava de ler até nas entrelinhas, mesmo que elas fossem apenas espaços vazios para a maioria. Mesmo aquelas letras minúsculas nos rótulos de cosméticos eram minuciosamente exploradas. 
       
Ele se entretinha com tudo que possuía letras, palavras, frases pequenas e enormes. Não que ligasse para o tamanho delas, haja vista conseguia vislumbrar beleza em qualquer bula de remédio. Sua mãe não se conformava, parecia até falta de educação. Quantas e quantas vezes havia sido repreendido por ela: "Largue esse livro, menino! Não vê que temos visita?"

As crianças na rua corriam de um lado para outro, enquanto a sua mente viajava o mundo nas páginas, muitas vezes amareladas, dos livros da estante da avó. Não que ele também não brincasse com a galerinha, pois o suor chegava a pingar da sua testa, caía nos olhos e ardia. Ele esfregava as vistas com o dorso da mão, balançava a cabeça e, então, algo parecia guiá-lo para a leitura, mesmo que na imaginação. Nessa idade já trocava algumas figurinhas com o Machado de Assis, com o Lima Barreto, arriscava até umas investidas na Clarice Lispector.

A adolescência foi entrando, os interesses aumentaram, começou a namorar. Quando ia ao cinema com a namorada, ele não queria sair após o final da película. Ah, os letreiros eram o máximo para ele. A namorada tentava arrastá-lo pelo braço, mas ele, firme, resistia. "Quem é que se importa com os créditos de um filme?", insistia a namorada. Ah, para ele era a parte principal, seus olhos corriam a tela na frustrada tentativa de captar todas as palavras. 
    
Tanto é que, já caminhando pela calçada, ele tentava adivinhar o que era aquilo que ele deixou de ler. "George de quê? Produzido por quem?" Nem prestava atenção no som que cismava em continuar saindo da boca da namorada. Ele apenas olhava aqueles lábios vermelhos se abrindo e se fechando, pois, pensava, talvez as respostas para os seus questionamentos pudessem sair dali a qualquer momento. Mas nada! 

Quando já estava na sua cama, muitas vezes a madrugada lhe fazia companhia. Todavia, a sua mãe, sempre a sua mãe, lembrava-o que a hora de ir para a escola havia chegado. "Que sono!!!" Seus pés, quase pregados, arrastavam-no até o banheiro, já que os olhos pareciam que ainda estavam fincados no cinema na frustrada tentativa de captar todas as letrinhas, por mais miúdas que fossem, cismavam em correr pela telona.

Chegou a vida adulta! E como chegou rápido esse tempo de tantos compromissos inadiáveis! Não tinha carro, ia a pé pro trabalho. Lia todas as placas, todas as ruas, mal entrava no trabalho, uma montanha de papéis lhe eram atiradas na mesa pela chefe: "Leia tudo e me faça um relatório!". Ela era carrancuda, ele se divertia com a montanha de palavras espalhadas à sua frente. Todos os outros empregados olhavam com pena para aquele infeliz. Nem desconfiavam que aquilo era seu oásis.

Acabou se casando. Não foi com aquela namorada que cismava em puxá-lo pelo braço. Não que ligasse para isso. Os filhos vieram com o tempo, seus cabelos foram perdendo a cor, sua barriga não cresceu como a da maioria dos maridos, pois ele se alimentava principalmente de palavras, frases, orações subordinadas, verbos transitivos e intransitivos, vocativos. Até que um dia, sentado na cadeira de balanço da varanda, suas mãos fraquejaram e soltaram o volume, que despencou sem qualquer cerimônia no piso gelado. A cabeça pendeu para o lado, seus óculos escorregaram até a ponta do nariz. 

O enterro foi breve, não havia muita gente, a chuva era fina. Todos foram embora antes mesmo do coveiro começar a jogar a terra sobre o caixão. O silêncio tomou conta do cemitério São João Batista, até mesmo os passarinhos pararam de cantar. Lá embaixo, seu corpo rijo e gelado parecia se incomodar com algo. Tentou se mexer, mas sem sucesso. "Cadê meus óculos?", A angústia o tomava por inteiro. Ele não conseguia decifrar as palavras na sua lápide.
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EDUARDO MARTÍNEZ possui formação em Jornalismo, Medicina Veterinária e Engenharia Agronômica. Editor de Cultura e colunista do Notibras, autor dos livros "57 Contos e crônicas por um autor muito velho", "Despido de ilusões", "Meu melhor amigo e eu" e "Raquel", além de dezenas de participações em coletânea. Reside em Porto Alegre/RS.

Fontes:
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing  

José Feldman (Desabafo)

PRÓLOGO

A madrugada é um abrigo. Resumir uma vida inteira em poucas linhas é como tentar capturar o infinito em um frasco. Cada experiência, emoção e aprendizado é uma camada complexa que não pode ser reduzida à simplicidade das palavras. As nuances das relações, os desafios enfrentados e os sonhos cultivados se entrelaçam de maneiras únicas. Uma vida é um mosaico de momentos que, juntos, formam uma história rica e intricada. Assim, qualquer resumo sempre deixará de lado a profundidade da verdadeira experiência humana.

O sol se põe no pequeno quintal onde um homem de cerca de 70 anos, se encontra. O céu, tingido de laranja e roxo, parece refletir as cores de sua vida: um espectro de emoções, alegrias e tristezas, que se entrelaçam como as nuvens que passam lentamente. Ele respira fundo, sentindo a brisa suave que traz consigo o cheiro dos jasmins que florescem no jardim. Com sua cadela, Raio de Sol, deitada aos seus pés, decide que era hora de desabafar.
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DESABAFO

Desde a infância, fora moldado por pais que, embora judeus, não eram religiosos. Eles lhe ensinaram a importância dos valores, mas sempre o fizeram sob a rígida ótica dos mandamentos bíblicos. Cresceu ouvindo que deveria ser um homem de bem, mas em algum ponto, perdeu de vista o que realmente significava ser ele mesmo. A vida lhe deu rasteiras, e ele aprendeu a se levantar, mas a cada queda, um pedaço de sua essência se despedaçava.

Na juventude, enquanto trabalhava num laboratório, se apaixonou por Yasmin, uma mulher árabe, cujo sorriso iluminava até os dias mais sombrios. Juntos, enfrentaram o preconceito e a guerra que cercava suas vidas numa época de intolerância entre árabes e judeus, criando uma filha que, por um breve momento, trouxe luz ao seu mundo. Mas o destino, sempre cruel, não lhes deu tempo para sonhar. A menina foi tragicamente assassinada por assaltantes, e Yasmin, em um ato de desespero, tirou a sua própria vida, deixando ele em um abismo de dor e solidão.

Ele se lembra da noite em que tentou tirar a própria vida, atormentado pela crença de que Deus o condenara por amar alguém fora de suas crenças. A culpa e o luto se tornaram sombras que o acompanharam, enquanto buscava ajuda em terapias que nunca tocavam a raiz de sua dor. E assim, a vida passou, sem que ele conseguisse concluir nenhum projeto, sem que a sociedade e sua família entendesse a profundidade de suas cicatrizes.

Sozinho, se fechou em uma redoma e se lançou na literatura e na música, buscando preencher o vazio que parecia se alargar a cada dia. Mas, por mais que estudasse e se dedicasse, um sentimento de vazio o acompanhava. O olhar desaprovador dos outros, que viam sua falta de formação acadêmica como um fracasso, só alimentava sua frustração.

A literatura, a música e outras paixões foram as âncoras que o mantiveram à tona durante suas tempestades emocionais. Quando a dor da perda de Yasmin e da filha Samara, se tornava insuportável, ele encontrava refúgio nas páginas de livros que o transportavam para mundos distantes. Autores o ajudaram a explorar as profundezas da condição humana, refletindo sobre a dor, a culpa e a busca por sentido. Cada página virada era um passo a mais em seu processo de luto, permitindo-lhe externalizar sentimentos que, de outra forma, teriam permanecido aprisionados em seu coração.

A literatura ofereceu não apenas uma fuga, mas também a capacidade de dar voz ao seu sofrimento. Ele começou a escrever, não como um autor, mas como um catarse*. Poemas e contos curtos se tornaram diários de sua dor, em que registrava suas lembranças, seus medos e suas esperanças. As palavras se tornaram um espaço seguro onde ele podia chorar, gritar e, eventualmente, aceitar a realidade de sua perda.

A escrita se transformou em um refúgio e um processo terapêutico essencial em sua jornada de luto. Desde o momento em que a dor da perda se instalou em seu coração, ele percebeu que precisava de uma forma de liberar suas emoções e dar voz ao que sentia. A caneta se tornou sua aliada, e o papel, seu confidente. Cada palavra escrita era uma liberação. Começou a escrever como uma forma de catarse; suas emoções, antes sufocadas pelos traumas, encontravam espaço para serem expressas. Ao registrar suas lembranças, lágrimas e angústias, ele não apenas falava sobre a dor, mas também a confrontava. A escrita ofereceu um meio de transformar o sofrimento em algo tangível, permitindo que ele olhasse para sua dor de uma nova perspectiva.

Ao escrever, se viu mergulhado em um processo de reflexão. As páginas tornaram-se um espelho onde ele podia observar suas lutas internas. Ele começou a questionar suas crenças, suas decisões e as influências que moldaram sua vida. Começou a construir narrativas que lhe permitiram ressignificar suas experiências. Ele escrevia para Yasmin e Samara, não apenas como figuras trágicas, mas como partes essenciais de sua história. Ao recontar suas memórias, ele pôde celebrar os momentos felizes que viveram juntos, transformando a dor da perda em uma homenagem ao amor que compartilhavam. Ao escrever sobre essa experiência, ele conseguiu explorar sua dor e sua luta interna. Através das palavras, ele começou a libertar-se do fardo da culpa, compreendendo que o amor não era um pecado, mas uma força poderosa que transcendia barreiras.

Em suas reflexões, começou a escrever cartas que nunca seriam enviadas, endereçadas a Yasmin e à sua filha. Essas cartas, embora não destinadas a serem lidas, tornaram-se uma forma de diálogo com aquelas que ele perdera. Essa prática o ajudou a sentir uma conexão contínua com elas, como se pudesse compartilhar seus pensamentos e sentimentos, mesmo na ausência física.

A música, por sua vez, era como um bálsamo para a alma. Encontrou consolo nas melodias de compositores clássicos, cujas sinfonias pareciam compreender sua tristeza. As notas de Chopin e Beethoven ecoavam em sua casa, preenchendo o ar de uma beleza que contrastava com sua dor. Ele aprendeu a tocar saxofone, cada som se tornando uma extensão de seu coração partido. Quando a melancolia o envolvia, ele se entregava à música, permitindo que as emoções fluíssem através de suas mãos.

A música também o conectava a memórias de Yasmin. Havia uma canção que ela costumava cantar para a filha, Acalanto, de Caymmi; ao tocá-la, sentia como se estivesse revivendo aqueles momentos e as lágrimas vertiam por sua face como cachoeiras. Essa conexão o ajudou a navegar pela dor, transformando-a em algo mais palatável. Em vez de ser um mero espectador de sua tragédia, ele se tornou o protagonista de uma sinfonia de luto e amor.

Através da literatura e da música, ele encontrou um propósito renovado, um modo de honrar a memória de Yasmin e de Samara. Ele entendeu que a vida continuava, e que, apesar das cicatrizes, ainda havia espaço para o amor àqueles que lhe foram caros na vida.

A solidão tornou-se sua única companheira, até que encontrou um amor inesperado nos animais.

Seus cães e gatos tornaram-se irmãos, preenchendo o vazio que a vida lhe deixara. Raio de Sol, uma cadela resgatada das ruas, entrou em sua vida como um sopro de esperança. Com ela, redescobriu a capacidade de amar. Ela é a razão de seu sorriso, o motivo de suas caminhadas e as tardes de sol. Com ela ao seu lado, ele se sente menos sozinho, mesmo que a dor da perda ainda o assombre, mesmo após 50 anos.

Agora, sentado no quintal, olha para Raio de Sol, que o observa com aqueles olhos cheios de amor incondicional. Ele sente que, apesar de tudo, ela é a sua salvação. Com diversos problemas de saúde e o tempo se esvaindo entre os dedos, ele reza diariamente. Não por um Deus que o abandonou, mas por uma vida mais longa para Raio de Sol. Que sua cadela tenha o tempo que ele não pôde dar à sua filha, que possa sentir o amor que ele não pôde oferecer à Yasmin.

“Se eu tiver que partir”, pensa, “quero que seja ao lado dela. Que minha alma a acompanhe, onde quer que vá.” A paz verdadeira parece distante, mas ele sente que, ao menos, não estará sozinho na partida.

O amor que ele dá e recebe de Raio de Sol, que, mesmo em meio à dor, lhe proporciona momentos de pura felicidade. E assim, ele sorri, no silêncio, sabendo que, apesar de tudo, tinha vivido um amor que transcendeu todas as barreiras e preconceitos.

Ele fecha os olhos, desejando que o amor que sente por sua cadela seja o último legado que deixará ao mundo.
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EPÍLOGO

A madrugada é a mais fiel companheira, é ela que abraça e envolve em seu cobertor.

Madrugada, suave manto,
que me envolve em teu calor,
teu silêncio é um canto,
que acalma minha profunda dor.

Em teus braços a solidão se esconde,
e as estrelas, testemunhas do meu sofrer,
a lua, amiga que responde,
a cada lágrima que insiste em verter.

Teus sussurros são bálsamo e abrigo,
enxugando as dores que venho a sentir,
teu cobertor um carinho antigo,
que me ensina a esperar e a resistir.

A noite tece sonhos em meio ao pranto,
e na escuridão encontro a luz.
Madrugada… teu amor é um canto,
que me abraça, que me conduz.

Em cada pensamento que flutua,
teu silêncio se torna um lar.
Madrugada… doce e nua,
é em ti que aprendo a amar.

E quando a aurora, tímida, chega,
leva com ela o peso da dor,
mas em ti, ó madrugada, o mundo se aconchega, 
pois é em ti que vive o amor.
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* Catarse = em psicologia, liberação de emoções ou tensões reprimidas.
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JOSÉ FELDMAN nasceu na capital de São Paulo. Formado em técnico de patologia clínica trabalhou por mais de uma década no Hospital das Clínicas. Foi enxadrista, professor, diretor, juiz e organizador de torneios de xadrez a nível nacional durante 24 anos; como diretor cultural organizou apresentações musicais; membro da Casa do Poeta “Lampião de Gás”. Foi amigo pessoal de literatos de renome (falecidos), como Artur da Távola, André Carneiro, Eunice Arruda, Izo Goldman, Ademar Macedo, e outros. Casado com a escritora, poetisa, tradutora e atualmente professora pós-doutorada da UEM, mudou-se em 1999 para o Paraná, morou em Curitiba e Ubiratã, morando atualmente em Maringá/PR em 2011. Consultor educacional junto a alunos e professores do Paraná e São Paulo. Pertence a diversas academias de letras, como Academia Rotary de Letras, Academia Internacional da União Cultural, Academia de Letras de Teófilo Otoni, Confraria Luso-Brasileira de Trovadores, Academia Virtual Brasileira de Trovadores, etc, possui o blog Singrando Horizontes desde 2007, e Pérgola de Textos, um blog com textos de sua autoria. Assina seus escritos por Floresta/PR. Publicou mais de 500 e-books. Premiações em poesias no Brasil e exterior.

Fontes:
José Feldman. Labirintos da vida. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
Imagem criada por Jfeldman com Microsoft Bing