(1955 Curitiba/Paraná)
A GOTA DE CADA UM
Para Mário de Andrade,
Uma gota de sangue em cada poema.
Para Bilac, uma gota de orvalho.
Para Vinícius, uma de uisque.
Para Cabral, uma de vinagre.
Para Castro Alves, uma de suor.
Para Jorge de Lima, uma de vinho.
Para Ascenso, uma gota de cana.
Para Drummond, uma de colírio.
Para Quintana, uma de framboesa.
Para Oswald, uma gota de café.
Para Augusto dos Anjos,
Uma gota de água da fonte.
Para Bandeira, uma gota de rio.
Para Cardozo, uma de agá-dois-ó.
Para Gonçalves Dias
Uma gota de mar.
Para Guimarães Rosa,
Uma gota de magma cachaça.
E AGORA?
Um dia você foi dormir
Embalado pelas certezas
Na cama absoluta da lógica
Irrefutável,
destruidora daquela ordem que
Oprime, canta e castra.
Um dia você já tinha esquecido o
José de Drummond,
Tão velho no passado,
Pensado e abandonado no acostamento
dos anos setenta, oityenta,
Nos ventos do mundo que consolavam,
Esqueciam, liberavam,
cicatrizavam e preparavam para
Novos atos na paz da
Nova cidade
Armada com velhos e novos tijolos.
Um dia você confundiu,
Emaranhou-se nas teias da
Aranha caranguejeira,
Nas negaças dos que você esperava
Serem iluminados como José.
E um dia você acordou
Na cama desmontável da
Ordem cantada,
Na pior das horas,
A de agora.
O QUINHÃO
( Pelos 500 anos do "Descobrimento" )
Até agora não se sabe
A quantos quinhentos bandos e tribos
Passaram a caminhar sem ajuda das mãos
Na Amazônia, nos Andes, na Patagônia,
Pelas margens dos paranás,
Na beira do São Francisco,
Margens do Solimões, do Guaíba,
Pelos matos dos igapós.
Só se sabe que um dia essa gente viu
Barcos grandes no mar verde,
Palavras absurdas como estas chegando na areia,
Panos no ar e gritos, atropelos, correntes,
Paus cruzados enfiados na areia,
Homens ajoelhados gritando
Iesumaria!
E apertando em nossas testas os paus cruzados
E jogando água em nossas cabeças
E gesticulando pra gente entender.
Depois esticaram panos vermelhos, verdes
E mostraram umapedra lisa em que tinha nela
Nós mesmos,
Rindo, fazendo careta.
E nos deram vinho escuro, depois água de fogo
Que dá alegria, saber, força, fraqueza nas pernas,
Doença, escravidão.
E aí proibiram nossa fala,
Policiaram nossas danças,
Proibiram nossa reza
E tomaram nossas árvores
E acabaram completando os quinheiros.
O DOM NÃO SILENCIOSO
( Lembrando dom Hélder Câmara )
Velha muralha,
Semente, folha nas fendas,
Na casca dura
Por onde a vida tanto bate
Como água.
Americana batalha,
Pé ante pé, seguindo.
Do espírito horizontal
Resistente abelha operária.
Trombone, verrina fecunda
Nas brechas já expostas
Pelo corpo da pedra,
Pela madrugada,
Pelo novo, pelo belo, pelo elo
Com o amanhã.
Aqui o rio que existe pela minha aldeia,
O Dom não silencioso.
BRASÍLIAS
Cena pintada,
Cena forjada em duas medidas.
Brasília Alphaville,
Brasília alfavela.
restos de caixas, pneus rasgados,
Trapos no vento salgado,
Parede traçada, erguida a mão, a pé,
A pulso.
Descompasso na lama,
Sem régua e prumo
Na beira d´água,
Precisão da linha torta.
Brasília precisa no papel,
Na prancheta, no planalto.
Brasília precisão
de ter, ser, mastigar, engolir,
Curar.
Verde,
Brasília palácio fita o horizonte do Brasil.
Amarela,
Brasília palafita do Recife.
CACHAÇA
No cálice de vidro está
Parado,
Translúcido,
Mais do que o cálice,
Mais do que água pura,
Atravessado em todos os graus pela
Luz,
O Sol feito
Senhora imaculada.
A louca cheirosa
Que atravessa os campos da Mata
Até este vidro que imita a
Transparente água doce da cana,
A louca ardente
Pousa serena
À minha espreita.
No instante do cálice,
Sujeita à luz total,
O ardor sobe aos lábios,
À língua, à glote
No gole que finca no espírito
Os raios do Sol feitos
Chama brava,
Chama quente,
No coração,
Na mente.
QUE RECIFE SEJA
A cidade foi fincada no mangue beira de rio-mar,
Está hoje como está
E assim esteja
E que assim sejam
Os sóis derramados de seu tempo,
As mangueiras de seus quintais,
Os caminhos até suas praias,
Assim seja a sombra de suas palmeiras,
matas,
Seja a lua de suas curtas noites,
Seja o arrumadinho de seus pratos à mesa,
Sejam as aves e crianças de seus ninhos,
Seja o marulho verde de seus mares,
Sejam as águas que desenham suas pontes,
Sejam os murais dos que traçaram seu perfil,
Sejam as festas de suas camas e carnavais,
Sejam os seres de seus amores, imaginação,
E que assim eles sejam,
Mudando que estejam,
Por todos os ósculos dos
ósculos,
Amem-se por aí.
NA ILHA MÁGICA
Do pé da ponte em diante, rumo ao mar,
O climágico pinta, dá peso às paredes
Enquanto o sopro vem dos guindastes,
Passa e benze o bairro de janelas-altares,
Assobia nas escadas que rangem
Um idioma do tempo nos pés
E deixa aéreas Minerva e Ceres na cabeça da ponte.
Divindades de dia em pesada capa de ferro
Embalam à noite o fantasma do príncipe Nassau,
Fixando a face perfeita e fria sobre nós
Enquanto olham eternas para o Chanteclair,
Num cântico mudo na boca de metal,
Em vigília perene varrendo as sacadas-púlpitos
Empedradas pelas décadas da ilha do Recife.
Imagirreal na trajetória das pombas do porto,
Além dos dias, do calendário de papel,
Ancorada no presente sem fim de suas caras e bares
Que desenham o pedaço iluminado da cidade.
NO BOLEIRO
O teto da cidade,
Aquele de mato e barro encostado,
Seguro pelos cabelos, aquele quebrado
Sobre o chão em declive serpenteado
Em ladeiras, falsificado pelo arrimo,
Aquele teto simulado em destino
No alto da cidade,
Aquele telhado cinzento cobrindo
O ponto de busca, o ponto de fuga,
O ponto de ninguém, o ponto falso
Liquefeito líquido pelo escorrer
D´água numa manhã cinzenta, numa meia-noite
De barulho no amianto,
Num ranger de tábuas às duas e meia
Quando o Boleiro estremeceu
Em cima do falso piso,
Debaixo do falso teto e embolou
Numa pasta preta água abaixo.
A menina mãe,
A fiação de luz,
O grito na lama contra os choques.
Fios, fogo e espanto misturaram-se
Numa morte enleada para a
Mumificação – em barro e chuva –
Das fantasias de chão e teto no alto da cidade,
Boleiro abaixo.
O PÁTIO FANTASMA
As pombas do pátio
Imitam nuvens do céu
Aberto sobre o pátio
À luz do templo de
São Pedro
Barroco delirante com
Ervas de passarinho nas franjas,
O verde contra o barro do santo.
São Pedro sob a concha,
Inerte barba
Segura na altura,
Oração sob o cruzeiro no ápice,
Olhos cerrados do santo
Sobre as mesas e sons em cores do
Pátio pop palco,
Pedras quentes, frias no suporte da
Física música fera fono som.
Portas da fé belas cerradas
No seu estrondo barroco,
Só com as pombas, ervas, globos e sinos
Enfeixados nas alturas
Sobre o pátio largo, líquido,
Louco espaço de vôos em
Asas fantasias.
=================
A GOTA DE CADA UM
Para Mário de Andrade,
Uma gota de sangue em cada poema.
Para Bilac, uma gota de orvalho.
Para Vinícius, uma de uisque.
Para Cabral, uma de vinagre.
Para Castro Alves, uma de suor.
Para Jorge de Lima, uma de vinho.
Para Ascenso, uma gota de cana.
Para Drummond, uma de colírio.
Para Quintana, uma de framboesa.
Para Oswald, uma gota de café.
Para Augusto dos Anjos,
Uma gota de água da fonte.
Para Bandeira, uma gota de rio.
Para Cardozo, uma de agá-dois-ó.
Para Gonçalves Dias
Uma gota de mar.
Para Guimarães Rosa,
Uma gota de magma cachaça.
E AGORA?
Um dia você foi dormir
Embalado pelas certezas
Na cama absoluta da lógica
Irrefutável,
destruidora daquela ordem que
Oprime, canta e castra.
Um dia você já tinha esquecido o
José de Drummond,
Tão velho no passado,
Pensado e abandonado no acostamento
dos anos setenta, oityenta,
Nos ventos do mundo que consolavam,
Esqueciam, liberavam,
cicatrizavam e preparavam para
Novos atos na paz da
Nova cidade
Armada com velhos e novos tijolos.
Um dia você confundiu,
Emaranhou-se nas teias da
Aranha caranguejeira,
Nas negaças dos que você esperava
Serem iluminados como José.
E um dia você acordou
Na cama desmontável da
Ordem cantada,
Na pior das horas,
A de agora.
O QUINHÃO
( Pelos 500 anos do "Descobrimento" )
Até agora não se sabe
A quantos quinhentos bandos e tribos
Passaram a caminhar sem ajuda das mãos
Na Amazônia, nos Andes, na Patagônia,
Pelas margens dos paranás,
Na beira do São Francisco,
Margens do Solimões, do Guaíba,
Pelos matos dos igapós.
Só se sabe que um dia essa gente viu
Barcos grandes no mar verde,
Palavras absurdas como estas chegando na areia,
Panos no ar e gritos, atropelos, correntes,
Paus cruzados enfiados na areia,
Homens ajoelhados gritando
Iesumaria!
E apertando em nossas testas os paus cruzados
E jogando água em nossas cabeças
E gesticulando pra gente entender.
Depois esticaram panos vermelhos, verdes
E mostraram umapedra lisa em que tinha nela
Nós mesmos,
Rindo, fazendo careta.
E nos deram vinho escuro, depois água de fogo
Que dá alegria, saber, força, fraqueza nas pernas,
Doença, escravidão.
E aí proibiram nossa fala,
Policiaram nossas danças,
Proibiram nossa reza
E tomaram nossas árvores
E acabaram completando os quinheiros.
O DOM NÃO SILENCIOSO
( Lembrando dom Hélder Câmara )
Velha muralha,
Semente, folha nas fendas,
Na casca dura
Por onde a vida tanto bate
Como água.
Americana batalha,
Pé ante pé, seguindo.
Do espírito horizontal
Resistente abelha operária.
Trombone, verrina fecunda
Nas brechas já expostas
Pelo corpo da pedra,
Pela madrugada,
Pelo novo, pelo belo, pelo elo
Com o amanhã.
Aqui o rio que existe pela minha aldeia,
O Dom não silencioso.
BRASÍLIAS
Cena pintada,
Cena forjada em duas medidas.
Brasília Alphaville,
Brasília alfavela.
restos de caixas, pneus rasgados,
Trapos no vento salgado,
Parede traçada, erguida a mão, a pé,
A pulso.
Descompasso na lama,
Sem régua e prumo
Na beira d´água,
Precisão da linha torta.
Brasília precisa no papel,
Na prancheta, no planalto.
Brasília precisão
de ter, ser, mastigar, engolir,
Curar.
Verde,
Brasília palácio fita o horizonte do Brasil.
Amarela,
Brasília palafita do Recife.
CACHAÇA
No cálice de vidro está
Parado,
Translúcido,
Mais do que o cálice,
Mais do que água pura,
Atravessado em todos os graus pela
Luz,
O Sol feito
Senhora imaculada.
A louca cheirosa
Que atravessa os campos da Mata
Até este vidro que imita a
Transparente água doce da cana,
A louca ardente
Pousa serena
À minha espreita.
No instante do cálice,
Sujeita à luz total,
O ardor sobe aos lábios,
À língua, à glote
No gole que finca no espírito
Os raios do Sol feitos
Chama brava,
Chama quente,
No coração,
Na mente.
QUE RECIFE SEJA
A cidade foi fincada no mangue beira de rio-mar,
Está hoje como está
E assim esteja
E que assim sejam
Os sóis derramados de seu tempo,
As mangueiras de seus quintais,
Os caminhos até suas praias,
Assim seja a sombra de suas palmeiras,
matas,
Seja a lua de suas curtas noites,
Seja o arrumadinho de seus pratos à mesa,
Sejam as aves e crianças de seus ninhos,
Seja o marulho verde de seus mares,
Sejam as águas que desenham suas pontes,
Sejam os murais dos que traçaram seu perfil,
Sejam as festas de suas camas e carnavais,
Sejam os seres de seus amores, imaginação,
E que assim eles sejam,
Mudando que estejam,
Por todos os ósculos dos
ósculos,
Amem-se por aí.
NA ILHA MÁGICA
Do pé da ponte em diante, rumo ao mar,
O climágico pinta, dá peso às paredes
Enquanto o sopro vem dos guindastes,
Passa e benze o bairro de janelas-altares,
Assobia nas escadas que rangem
Um idioma do tempo nos pés
E deixa aéreas Minerva e Ceres na cabeça da ponte.
Divindades de dia em pesada capa de ferro
Embalam à noite o fantasma do príncipe Nassau,
Fixando a face perfeita e fria sobre nós
Enquanto olham eternas para o Chanteclair,
Num cântico mudo na boca de metal,
Em vigília perene varrendo as sacadas-púlpitos
Empedradas pelas décadas da ilha do Recife.
Imagirreal na trajetória das pombas do porto,
Além dos dias, do calendário de papel,
Ancorada no presente sem fim de suas caras e bares
Que desenham o pedaço iluminado da cidade.
NO BOLEIRO
O teto da cidade,
Aquele de mato e barro encostado,
Seguro pelos cabelos, aquele quebrado
Sobre o chão em declive serpenteado
Em ladeiras, falsificado pelo arrimo,
Aquele teto simulado em destino
No alto da cidade,
Aquele telhado cinzento cobrindo
O ponto de busca, o ponto de fuga,
O ponto de ninguém, o ponto falso
Liquefeito líquido pelo escorrer
D´água numa manhã cinzenta, numa meia-noite
De barulho no amianto,
Num ranger de tábuas às duas e meia
Quando o Boleiro estremeceu
Em cima do falso piso,
Debaixo do falso teto e embolou
Numa pasta preta água abaixo.
A menina mãe,
A fiação de luz,
O grito na lama contra os choques.
Fios, fogo e espanto misturaram-se
Numa morte enleada para a
Mumificação – em barro e chuva –
Das fantasias de chão e teto no alto da cidade,
Boleiro abaixo.
O PÁTIO FANTASMA
As pombas do pátio
Imitam nuvens do céu
Aberto sobre o pátio
À luz do templo de
São Pedro
Barroco delirante com
Ervas de passarinho nas franjas,
O verde contra o barro do santo.
São Pedro sob a concha,
Inerte barba
Segura na altura,
Oração sob o cruzeiro no ápice,
Olhos cerrados do santo
Sobre as mesas e sons em cores do
Pátio pop palco,
Pedras quentes, frias no suporte da
Física música fera fono som.
Portas da fé belas cerradas
No seu estrondo barroco,
Só com as pombas, ervas, globos e sinos
Enfeixados nas alturas
Sobre o pátio largo, líquido,
Louco espaço de vôos em
Asas fantasias.
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Sérgio Augusto Silveira nasceu em Curitiba, Paraná. Ingressou no jornalismo, em 1970, no jornal ACrítica, de Manaus, como repórter de Geral, com passagens pelas Editorias de Polícia e de Economia. De 1973 a 1974 foi correspondente da revista Veja, no Amazonas. Transferiu-se para o Recife em 74, ingressando no Curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, onde se formou na Turma de 1979.
Atuou como free-lancer das revistas da Editora Abril; e no Diario de Pernambuco, de 1976 a 1985, como repórter de Polícia e de Política, voltando a essa empresa, em 1998, para trabalhar em reportagens da área de Política.
Por duas ocasiões, trabalhou no Jornal do Commercio, sempre na Editoria de Política. Foi diretor de Redação da Assessoria de Imprensa da Prefeitura da Cidade do Recife (1985-1987); assessor de Imprensa da Secretaria de Indústria e Comércio, no segundo Governo Arraes. Foi, ainda, editor de Política da Folha de Pernambuco. Ganhou, em equipe, dois prêmios Esso, no Jornal do Commercio, com as reportagens SOS Pernambuco e 10 Anos da Anistia. Tem um livro publicado: Reportagem e Resistência - 1978-1982. Atualmente, é free-lancer de jornais e revistas nacionais
================
Fontes:
http://www.interpoetica.com/sergio_augusto_silveira.htm
http://www.alepe.pe.gov.br/perfil/parlamentares/OswaldoLimaFilho/dadosdoautor.html
Atuou como free-lancer das revistas da Editora Abril; e no Diario de Pernambuco, de 1976 a 1985, como repórter de Polícia e de Política, voltando a essa empresa, em 1998, para trabalhar em reportagens da área de Política.
Por duas ocasiões, trabalhou no Jornal do Commercio, sempre na Editoria de Política. Foi diretor de Redação da Assessoria de Imprensa da Prefeitura da Cidade do Recife (1985-1987); assessor de Imprensa da Secretaria de Indústria e Comércio, no segundo Governo Arraes. Foi, ainda, editor de Política da Folha de Pernambuco. Ganhou, em equipe, dois prêmios Esso, no Jornal do Commercio, com as reportagens SOS Pernambuco e 10 Anos da Anistia. Tem um livro publicado: Reportagem e Resistência - 1978-1982. Atualmente, é free-lancer de jornais e revistas nacionais
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Fontes:
http://www.interpoetica.com/sergio_augusto_silveira.htm
http://www.alepe.pe.gov.br/perfil/parlamentares/OswaldoLimaFilho/dadosdoautor.html
3 comentários:
Lidas poesias, sua poesia sempre esteve no seu olhar ao mundo.
Legal, Sérgio!
Poemas exatos e profundos
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