Depois de 1940, ou pouco antes, vamos percebendo a constituição de um período novo. Nos dois decênios de 1920 e 1930, assistimos o admirável esforço de construir uma literatura universalmente válida (pela sua participação nos problemas gerais do momento, pela nossa crescente integração nestes problemas) por meio de uma intransigente fidelidade ao local. A partir de 1940, mais ou menos, assistiremos, ao lado disso, a um certo repúdio do local, reputado apenas pitoresco e extraliterário; e um novo anseio generalizador, procurando fazer da expressão literária um problema de inteligência formal e de pesquisa interior. O Modernismo regionalista, folclórico, libertino, populista, se amaina, inclusive nas obras que os seus próceres escrevem agora, — revelando preocupação mais exigente com a forma ou esforço anti-sectário no conteúdo. Não obstante, é o momento em que os próceres dos dois decênios publicam algumas das suas melhores produções (Fogo morto, de José Lins do Rego, e Terras do sem-fim, de Jorge Amado, por exemplo, ambos de 1943; Sentimento do mundo e Rosa do povo, de Carlos Drummond de Andrade, em 1940 e 1946).
Até 1945, mais ou menos, vemos uma produção intensa, favorecida por grande surto editorial, em que brilham veteranos e novos, estes com tendência crescente para repudiar a literatura social e ideológica, o que veio finalmente a predominar sob a forma de uma queda da qualidade média do romance e uma grande voga de pesquisas formais e psicológicas na poesia. Entretanto, o abandono da linha modernista não se deu segundo os rumos previstos e propugnados pelos espiritualistas, — a saber, a atenção para o drama moral e o catolicismo poético. Os novos manifestaram pouco interesse pela literatura ideológica de esquerda e de direita, e os que tinham vocação política desleixaram não raro a literatura, passando diretamente à militância. Desenvolve-se, desse modo, o que parece constituir um dos traços salientes dessa fase: a separação abrupta entre a preocupação estética e a preocupação político-social, cuja coexistência relativamente harmoniosa tinha assegurado o amplo movimento cultural do decênio de 1930. Com a definição cada vez mais clara das posições políticas (não só entre direita e esquerda, como antes, mas dentro da própria esquerda e da própria direita), os escritores políticos se tornaram cada vez mais sectários, no sentido técnico da expressão. Tornaram-se especializados na direção propagandística e panfletária, enquanto por outro lado os escritos de cunho mais propriamente estético (sobretudo a poesia e a crítica, os dois gêneros em expansão nos nossos dias) se insulavam no desconhecimento, propositado ou não, da realidade social.
O decênio de 1930 nos aparece agora como um momento de equilíbrio entre a pesquisa local e as aspirações cosmopolitas, já novamente dissociadas em nossos dias de sectarismo estreito acotovelando-se com o formalismo. A queda do movimento editorial, a voga avassaladora da rádio-novela e do rádio-teatro, do cinema e dos strips; o conflito entre a inteligência participante e a inteligência contemplativa, que se vão tornando, uma e outra, cada vez mais estritas e inconciliáveis; a própria mobilidade da opinião culta, sempre fascinada pela Europa e agora também pelos Estados Unidos: — eis alguns traços que ajudam a compreender as contradições literárias dos nossos dias e o afastamento em relação ao período precedente. Vivemos uma fase crítica, demasiado refinada nuns, demasiado grosseira noutros; em todo o caso, pouco criadora, embora muito engenhosa.
Em poesia, as melhores vozes ainda nos vêm de antes, com a de Henriqueta Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vinícius de Moraes (Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros livros são de 1930, ou Manuel Bandeira, pré-modernista e modernista da primeira hora. No romance, é significativo o êxito de um veterano, José Geraldo Vieira, cuja obra é revalorizada depois da publicação, em 1943, de A quadragésima porta. Obra de cunho cosmopolita, às voltas com problemas intemporais do destino humano, não raro tendo a Europa por cenário, carregada de intenções simbólicas, de vistosa erudição e complicados arrojos vocabulares. Não menos significativo, o de Clarice Lispector (Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946), que situa os seus romances fora do espaço, em curiosas encruzilhadas do tempo psicológico.
Mais significativo do que tudo, porém, são as revistas e agrupamentos poéticos e críticos, as mais das vezes fascinados por problemas de organização formal da sensibilidade, de clarividência poética, e manifestando irritada impaciência com as impurezas literárias da geração anterior. Rapazes frequentemente afeitos à nova crítica, neoformalista, ou à dialética existencial; admiradores de T. S. Eliot e Rilke, umas vezes excessivamente maduros, outras com o ingênuo egotismo da adolescência. Em qualquer caso, raras vezes passando além da habilidade superficial, do drama simulado ou da revolta aparente. Para quem lê com mais atenção a poesia brasileira dos últimos anos, impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer. E quando tem, o quanto é devido à sensibilidade e aos temas da geração anterior. Salvo num ou noutro mais bem dotado (um Bueno de Rivera, um Wilson Figueiredo, sobretudo um João Cabral de Melo Neto, para citar apenas três), esta poesia é de pouca personalidade e menor ressonância humana. Em vão buscaríamos entre estes jovens o sopro ardente das Cinco elegias, de Vinicius de Moraes, ou a comovedora profundidade de Henriqueta Lisboa em Flor da morte.
No entanto, como conjunto e como experiência, os novos poetas representam algo apreciável: com a sua exigência crítica e psicológica, representam a barragem que será estourada quando as correntes represadas da inspiração adquirirem, na experiência individual e coletiva, energia suficiente para superar as atuais experiências técnicas, mais de poética do que de poesia.
É uma constante não desmentida de toda a nossa evolução literária que a verdadeira poesia só se realiza, no Brasil, quando sentimos na sua mensagem uma certa presença dos homens, das coisas, dos lugares do país. Esta presença pode ser ostensiva em certas obras-primas, como o LEITO DE FOLHAS VERDES, de Gonçalves Dias, e mais ainda O NAVIO NEGREIRO, de Castro Alves; e pode ser implícita, misteriosamente pressentida, como em JUVENÍLIA, de Varela. De qualquer modo, ela é por assim dizer o penhor de eficácia dos nossos poetas, e a condição de que dependem para chegar a esferas menos presas às condições locais. Para alçarem o vôo dos HINOS, (Gonçalves Dias), de SUB TEGMINE FAGI (Castro Alves), do CÂNTICO DO CALVÁRIO (Varela). Pouco sentimos desta impregnação nos atuais poetas. Terão eles superado realmente uma etapa de poesia mais contingente, toda cheia de modismos, pitoresco, sentimentos, para lançar a nossa literatura em sendas mais largas, nas quais seja definitivamente sublimada a dialética do local e do geral? Ou representam (ao mesmo título que os últimos parnasianos, embora sob aspectos totalmente diversos) um momento de cosmopolitismo, que convém ultrapassar rapidamente? Não é possível responder desde já. Apenas parece que orientações como as deles (ou melhor, dos mais característicos dentre eles) são antes experiências do que realizações; neste caso, terão cumprido o papel de fornecer aos sucessores um instrumento renovado e ajustável às necessidades de uma sensibilidade nova, que se desenvolverá certamente quando transpusermos este limiar de coletivismo em que vivemos. A sua consciência artesanal poderá, então, ser conservada e fecundada.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
Até 1945, mais ou menos, vemos uma produção intensa, favorecida por grande surto editorial, em que brilham veteranos e novos, estes com tendência crescente para repudiar a literatura social e ideológica, o que veio finalmente a predominar sob a forma de uma queda da qualidade média do romance e uma grande voga de pesquisas formais e psicológicas na poesia. Entretanto, o abandono da linha modernista não se deu segundo os rumos previstos e propugnados pelos espiritualistas, — a saber, a atenção para o drama moral e o catolicismo poético. Os novos manifestaram pouco interesse pela literatura ideológica de esquerda e de direita, e os que tinham vocação política desleixaram não raro a literatura, passando diretamente à militância. Desenvolve-se, desse modo, o que parece constituir um dos traços salientes dessa fase: a separação abrupta entre a preocupação estética e a preocupação político-social, cuja coexistência relativamente harmoniosa tinha assegurado o amplo movimento cultural do decênio de 1930. Com a definição cada vez mais clara das posições políticas (não só entre direita e esquerda, como antes, mas dentro da própria esquerda e da própria direita), os escritores políticos se tornaram cada vez mais sectários, no sentido técnico da expressão. Tornaram-se especializados na direção propagandística e panfletária, enquanto por outro lado os escritos de cunho mais propriamente estético (sobretudo a poesia e a crítica, os dois gêneros em expansão nos nossos dias) se insulavam no desconhecimento, propositado ou não, da realidade social.
O decênio de 1930 nos aparece agora como um momento de equilíbrio entre a pesquisa local e as aspirações cosmopolitas, já novamente dissociadas em nossos dias de sectarismo estreito acotovelando-se com o formalismo. A queda do movimento editorial, a voga avassaladora da rádio-novela e do rádio-teatro, do cinema e dos strips; o conflito entre a inteligência participante e a inteligência contemplativa, que se vão tornando, uma e outra, cada vez mais estritas e inconciliáveis; a própria mobilidade da opinião culta, sempre fascinada pela Europa e agora também pelos Estados Unidos: — eis alguns traços que ajudam a compreender as contradições literárias dos nossos dias e o afastamento em relação ao período precedente. Vivemos uma fase crítica, demasiado refinada nuns, demasiado grosseira noutros; em todo o caso, pouco criadora, embora muito engenhosa.
Em poesia, as melhores vozes ainda nos vêm de antes, com a de Henriqueta Lisboa (Flor da morte, 1949) ou Vinícius de Moraes (Poemas, sonetos e baladas, 1946), para não citar Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade, cujos primeiros livros são de 1930, ou Manuel Bandeira, pré-modernista e modernista da primeira hora. No romance, é significativo o êxito de um veterano, José Geraldo Vieira, cuja obra é revalorizada depois da publicação, em 1943, de A quadragésima porta. Obra de cunho cosmopolita, às voltas com problemas intemporais do destino humano, não raro tendo a Europa por cenário, carregada de intenções simbólicas, de vistosa erudição e complicados arrojos vocabulares. Não menos significativo, o de Clarice Lispector (Perto do coração selvagem, 1944; O lustre, 1946), que situa os seus romances fora do espaço, em curiosas encruzilhadas do tempo psicológico.
Mais significativo do que tudo, porém, são as revistas e agrupamentos poéticos e críticos, as mais das vezes fascinados por problemas de organização formal da sensibilidade, de clarividência poética, e manifestando irritada impaciência com as impurezas literárias da geração anterior. Rapazes frequentemente afeitos à nova crítica, neoformalista, ou à dialética existencial; admiradores de T. S. Eliot e Rilke, umas vezes excessivamente maduros, outras com o ingênuo egotismo da adolescência. Em qualquer caso, raras vezes passando além da habilidade superficial, do drama simulado ou da revolta aparente. Para quem lê com mais atenção a poesia brasileira dos últimos anos, impressiona desde logo o pouco ou nada que ela tem para dizer. E quando tem, o quanto é devido à sensibilidade e aos temas da geração anterior. Salvo num ou noutro mais bem dotado (um Bueno de Rivera, um Wilson Figueiredo, sobretudo um João Cabral de Melo Neto, para citar apenas três), esta poesia é de pouca personalidade e menor ressonância humana. Em vão buscaríamos entre estes jovens o sopro ardente das Cinco elegias, de Vinicius de Moraes, ou a comovedora profundidade de Henriqueta Lisboa em Flor da morte.
No entanto, como conjunto e como experiência, os novos poetas representam algo apreciável: com a sua exigência crítica e psicológica, representam a barragem que será estourada quando as correntes represadas da inspiração adquirirem, na experiência individual e coletiva, energia suficiente para superar as atuais experiências técnicas, mais de poética do que de poesia.
É uma constante não desmentida de toda a nossa evolução literária que a verdadeira poesia só se realiza, no Brasil, quando sentimos na sua mensagem uma certa presença dos homens, das coisas, dos lugares do país. Esta presença pode ser ostensiva em certas obras-primas, como o LEITO DE FOLHAS VERDES, de Gonçalves Dias, e mais ainda O NAVIO NEGREIRO, de Castro Alves; e pode ser implícita, misteriosamente pressentida, como em JUVENÍLIA, de Varela. De qualquer modo, ela é por assim dizer o penhor de eficácia dos nossos poetas, e a condição de que dependem para chegar a esferas menos presas às condições locais. Para alçarem o vôo dos HINOS, (Gonçalves Dias), de SUB TEGMINE FAGI (Castro Alves), do CÂNTICO DO CALVÁRIO (Varela). Pouco sentimos desta impregnação nos atuais poetas. Terão eles superado realmente uma etapa de poesia mais contingente, toda cheia de modismos, pitoresco, sentimentos, para lançar a nossa literatura em sendas mais largas, nas quais seja definitivamente sublimada a dialética do local e do geral? Ou representam (ao mesmo título que os últimos parnasianos, embora sob aspectos totalmente diversos) um momento de cosmopolitismo, que convém ultrapassar rapidamente? Não é possível responder desde já. Apenas parece que orientações como as deles (ou melhor, dos mais característicos dentre eles) são antes experiências do que realizações; neste caso, terão cumprido o papel de fornecer aos sucessores um instrumento renovado e ajustável às necessidades de uma sensibilidade nova, que se desenvolverá certamente quando transpusermos este limiar de coletivismo em que vivemos. A sua consciência artesanal poderá, então, ser conservada e fecundada.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
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