Se não existe literatura paulista, gaúcha ou pernambucana, há sem dúvida uma literatura brasileira manifestando-se de modo diferente nos diferentes Estados. Neste artigo, não interessa, por isso mesmo, delimitar produções e autores segundo o critério estrito do nascimento, mas segundo o critério mais compreensivo e certo da participação na vida social e espiritual da cidade de São Paulo. Esta apresenta algumas características, e é compreensível que a sua influência marque literariamente os que nela vivem, de modo mais forte que as do lugar onde nasceram.
Com efeito, entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidencia, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma "expressão". A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma "comunicação".
Assim, não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre tenham consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enferme a sua produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma herança), que signifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo.
Segundo este critério, só há literatura em São Paulo depois da Independência, e notadamente depois da Faculdade de Direito. Mas antes, na segunda metade do século XVIII, já se esboçavam aquelas condições. Manifestações literárias, — que é coisa diferente, — isto houve desde os autos e poemas de José de Anchieta.
Nem podia ser de outra maneira. Que meio seria o paulistano, para permitir a atividade intelectual? No século XVIII, quando os costumes principiam a civilizar-se, sabemos que não havia por aqui homens de letras senão os clérigos, e um ou outro civil. Grandes paulistas como Alexandre de Gusmão, Teresa Margarida, Matias Aires, Lacerda e Almeida são na verdade portugueses pela inteligência, não chegando a contribuir diretamente para as luzes da pátria. O ambiente era culturalmente tão pobre, que em 1801 o governador Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça oficiava do seguinte modo ao agitado D. Rodrigo de Sousa Coutinho, dando conta dos resultados da sua política cultural:
Recebi o Avizo n° 19 de 6 de agosto de 1800, e com elle a relação de alguns Impressos com a importância de 165$780 rs. cujos Impressos já chegarão a esta Capitania; mais como nella há tanta falta de compradores, quanta é a negligência, e descuido q' tem havido em se cultivar as Artes e as sciencias não há que se anime a comprar hum só livro, de maneira que muitos dos que se tem espalhado, tem sido dados por mim etc.
As letras compareciam de maneira oficial, em sentido puramente comemorativo, como verso e prosa de circunstância, nas solenidades públicas. Artur Mota cita um manuscrito pertencente a Ian de Almeida Prado, onde se compendia a parte literária das solenidades em homenagem a Sant'Ana, por ordem do Morgado de Mateus no ano de 1770 — a cargo de clérigos e professores na maior parte. De que maneira o poder público incorporava a literatura, geralmente pífia, às suas comemorações, podemos ver, por exemplo, no ofício do governador Franca e Horta, datado de 10 de março de 1808, "Pa. os Professores de Philozofia, Retórica e Gramática", no ensejo da chegada da Família Real:
No detalhe das Festas, — q' se vão apromptar pa. festejarmos a feliz chegada de S.A.R., e de sua Augusta Família a Capital do Ro. de Janro. está determinado, q' nas três noites de Encamizadas, q' hão de fazer os Cavalleiros Milicianos e nas três noites de fogos dados pelo Corpo do Negocio, os Estudantes de todas as classes darão hum Carro de Parnazo com Oi-teiro em q' se repitão, e facão obras aluzivas a tão sublime assumpto: o q' participo a V. Mces. não só pa. q. assim o facão saber aos seus respectivos alunos, mas tão bem pa. os derigirem não só em o do. festejo mas tão bem nas mmas. Compuzições Poéticas afim de poderem ser todas aplaudidas pelo Povo. Não devo recommendar-lhes a Importância desta Matteria, pr. q' conto com as suas vontades, ainda mais amplas q' os meus desejos.
Outra via de manifestação literária seriam as verrinas contra o governo. Em Minas, — onde a vida urbana bastante intensa permitiu floração brusca e magnífica nas artes — elas eram de qualidade invulgar, haja vista as Cartas chilenas. Seriam bem menos polidas as de São Paulo, como as que escarneciam o Morgado de Mateus em 1767, "chamando-me de destruhidor do Povo (…) carreiro (…) fidalgo de aldeya, e de meya tigela, e outros impropérios indignos". E que proliferavam também nas vilas, como se vê pela repreensão de Franca e Horta ao Juiz Ordinário de Cananéia, em 1804, por não haver providenciado contra os que lá se afixaram.
Fora daí, as letras existiriam como atividade privada de um ou outro homem culto, — frade bento, vigário, mestre régio, magistrado, — não dando lugar a relações intelectuais capazes de caracterizar, uma literatura, de acordo com o critério acima proposto.
* * *
Este estudo pretende sugerir o papel das formas de sociabilidade intelectual, e da sua relação com a sociedade, na caracterização das diferentes etapas da literatura brasileira em São Paulo. Escolhendo um ângulo de visão — o sociológico — tentará reconhecer no seu processo evolutivo cinco momentos, socialmente condicionados, desde estes primórdios toscos até a atividade intensa dos nossos dias. Trata-se, para isto, de analisar rapidamente os tipos de associação entre escritores, os valores específicos que os norteiam e a sua posição em face dos valores gerais e da organização da sociedade. Não é uma interpretação estética, portanto, nem se deseja apresentá-la como única, pois é de alcance voluntariamente delimitado. Parece, todavia, que não há outra mais adequada para esclarecer a ligação orgânica entre produção literária e vida social.
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continua...
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
Com efeito, entendemos por literatura, neste contexto, fatos eminentemente associativos; obras e atitudes que exprimem certas relações dos homens entre si, e que, tomadas em conjunto, representam uma socialização dos seus impulsos íntimos. Toda obra é pessoal, única e insubstituível, na medida em que brota de uma confidencia, um esforço de pensamento, um assomo de intuição, tornando-se uma "expressão". A literatura, porém, é coletiva, na medida em que requer uma certa comunhão de meios expressivos (a palavra, a imagem), e mobiliza afinidades profundas que congregam os homens de um lugar e de um momento, para chegar a uma "comunicação".
Assim, não há literatura enquanto não houver essa congregação espiritual e formal, manifestando-se por meio de homens pertencentes a um grupo (embora ideal), segundo um estilo (embora nem sempre tenham consciência dele); enquanto não houver um sistema de valores que enferme a sua produção e dê sentido à sua atividade; enquanto não houver outros homens (um público) aptos a criar ressonância a uma e outra; enquanto, finalmente, não se estabelecer a continuidade (uma transmissão e uma herança), que signifique a integridade do espírito criador na dimensão do tempo.
Segundo este critério, só há literatura em São Paulo depois da Independência, e notadamente depois da Faculdade de Direito. Mas antes, na segunda metade do século XVIII, já se esboçavam aquelas condições. Manifestações literárias, — que é coisa diferente, — isto houve desde os autos e poemas de José de Anchieta.
Nem podia ser de outra maneira. Que meio seria o paulistano, para permitir a atividade intelectual? No século XVIII, quando os costumes principiam a civilizar-se, sabemos que não havia por aqui homens de letras senão os clérigos, e um ou outro civil. Grandes paulistas como Alexandre de Gusmão, Teresa Margarida, Matias Aires, Lacerda e Almeida são na verdade portugueses pela inteligência, não chegando a contribuir diretamente para as luzes da pátria. O ambiente era culturalmente tão pobre, que em 1801 o governador Antônio Manuel de Melo Castro e Mendonça oficiava do seguinte modo ao agitado D. Rodrigo de Sousa Coutinho, dando conta dos resultados da sua política cultural:
Recebi o Avizo n° 19 de 6 de agosto de 1800, e com elle a relação de alguns Impressos com a importância de 165$780 rs. cujos Impressos já chegarão a esta Capitania; mais como nella há tanta falta de compradores, quanta é a negligência, e descuido q' tem havido em se cultivar as Artes e as sciencias não há que se anime a comprar hum só livro, de maneira que muitos dos que se tem espalhado, tem sido dados por mim etc.
As letras compareciam de maneira oficial, em sentido puramente comemorativo, como verso e prosa de circunstância, nas solenidades públicas. Artur Mota cita um manuscrito pertencente a Ian de Almeida Prado, onde se compendia a parte literária das solenidades em homenagem a Sant'Ana, por ordem do Morgado de Mateus no ano de 1770 — a cargo de clérigos e professores na maior parte. De que maneira o poder público incorporava a literatura, geralmente pífia, às suas comemorações, podemos ver, por exemplo, no ofício do governador Franca e Horta, datado de 10 de março de 1808, "Pa. os Professores de Philozofia, Retórica e Gramática", no ensejo da chegada da Família Real:
No detalhe das Festas, — q' se vão apromptar pa. festejarmos a feliz chegada de S.A.R., e de sua Augusta Família a Capital do Ro. de Janro. está determinado, q' nas três noites de Encamizadas, q' hão de fazer os Cavalleiros Milicianos e nas três noites de fogos dados pelo Corpo do Negocio, os Estudantes de todas as classes darão hum Carro de Parnazo com Oi-teiro em q' se repitão, e facão obras aluzivas a tão sublime assumpto: o q' participo a V. Mces. não só pa. q. assim o facão saber aos seus respectivos alunos, mas tão bem pa. os derigirem não só em o do. festejo mas tão bem nas mmas. Compuzições Poéticas afim de poderem ser todas aplaudidas pelo Povo. Não devo recommendar-lhes a Importância desta Matteria, pr. q' conto com as suas vontades, ainda mais amplas q' os meus desejos.
Outra via de manifestação literária seriam as verrinas contra o governo. Em Minas, — onde a vida urbana bastante intensa permitiu floração brusca e magnífica nas artes — elas eram de qualidade invulgar, haja vista as Cartas chilenas. Seriam bem menos polidas as de São Paulo, como as que escarneciam o Morgado de Mateus em 1767, "chamando-me de destruhidor do Povo (…) carreiro (…) fidalgo de aldeya, e de meya tigela, e outros impropérios indignos". E que proliferavam também nas vilas, como se vê pela repreensão de Franca e Horta ao Juiz Ordinário de Cananéia, em 1804, por não haver providenciado contra os que lá se afixaram.
Fora daí, as letras existiriam como atividade privada de um ou outro homem culto, — frade bento, vigário, mestre régio, magistrado, — não dando lugar a relações intelectuais capazes de caracterizar, uma literatura, de acordo com o critério acima proposto.
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Este estudo pretende sugerir o papel das formas de sociabilidade intelectual, e da sua relação com a sociedade, na caracterização das diferentes etapas da literatura brasileira em São Paulo. Escolhendo um ângulo de visão — o sociológico — tentará reconhecer no seu processo evolutivo cinco momentos, socialmente condicionados, desde estes primórdios toscos até a atividade intensa dos nossos dias. Trata-se, para isto, de analisar rapidamente os tipos de associação entre escritores, os valores específicos que os norteiam e a sua posição em face dos valores gerais e da organização da sociedade. Não é uma interpretação estética, portanto, nem se deseja apresentá-la como única, pois é de alcance voluntariamente delimitado. Parece, todavia, que não há outra mais adequada para esclarecer a ligação orgânica entre produção literária e vida social.
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Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
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