sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Sonhos de Encantar de Donzília Martins


Donzília Martins, natural de Murça, é uma autora cuja produção literária foi dada a público quase na totalidade na primeira década do séc. XXI. Apenas o primeiro livro, em poesia, com o título Lágrimas e Sorrisos em Sonhos de Vida, é de 1991. Os dois seguintes, Lírios Do Campo e Quando o teu Olhar, também em poesia, já são respectivamente de 2004 e de 2006.

Em 2007 publicou a sua primeira obra em prosa, com o título Um país na Janela do meu Nome, com a qual, através das histórias que conta relacionadas com momentos da sua infância passada na área geográfica de Murça, contribui para a preservação da memória cultural de Trás-os-Montes dos anos cinquenta e sessenta do século XX. Um país na Janela do meu Nome é um livro que resulta de uma memória que se vai construindo. É como uma caixinha de música que, ao abrir-se nos delicia com sons da nossa infância, só que esta caixinha é mágica e, em vez de nos dar apenas sons, dá-nos também imagens, cheiros, sabores de um tempo e de um espaço trasmontano. Nele o leitor encontra vivências que a Autora pretende fazer crer “sem utopias nem ficção”, considerando-o “um livro de memórias, de vivências”, “um livro branco onde abriu e estendeu a alma” (Martins 2007: 14), como há já algum tempo escrevemos (Monteiro 2008: 101-108).

Os dois últimos livros que Donzília Martins publicou são de literatura infanto-juvenil e têm por título História do Zé Luís, o menino petiz, de 2008, e Sonhos de Encantar, publicado em 2009. É dele que vamos falar com mais detalhe:

Donzília Martins no “Prefácio” afirma “Só há pouco tempo descobri a magia que é sonhar contos do imaginário com crianças” e essa possibilidade resulta sobretudo do fato de ser avó e de se ter aposentado. Assim, tem agora mais tempo disponível para se ver “transportada para o tempo tempo em que, à lareira, ouvia as lindas histórias de encantar”.

Antigamente, sem televisão, sem computador, sem as atividades e as condições de vida que hoje as crianças têm, o tempo em família era muitas vezes ocupado à lareira, em ambiente comunitário e de aconchego. O tempo e o espaço eram propícios ao relato de contos tradicionais e de histórias do quotidiano. Mas havia também os serões comunitários que Miguel Torga, alterónimo de Adolfo Rocha, apresenta no conto «Abre-te, Sésamo», no qual nos aparecem “as mulheres a fiar, a dobar ou a fazer meia, os homens a fumar e a conversar, e a canalhada a dormitar ou nas diabruras do costume” (Torga 1988:101). Mas, quando chegava “a hora do Raul ler as histórias do seu grande livro, todos arrebita[va]m a orelha”. As pessoas da aldeia reuniam-se numa “loja de gado, ao quente bafo animal” e “todos os moradores se cotizavam para pagar a luz do carboneto ou de petróleo e o serão começava” (Torga 1988: 102). Como escreve aquele autor trasmontano, natural de S. Martinho de Anta, “é no Inverno, nas grandes noites sem-fim, que se goza na aldeia essa fraternidade” (Torga 1988: 102). Nos anos quarenta do século passado, era assim em algumas aldeias. Hoje, no séc. XXI, os serões são bem diferentes, na maior parte das vezes mais solitários, em que cada um se ocupa a estudar, a ver televisão ou com os telemóveis, os jogos de computador, a Internet.

Em Sonhos de Encantar, Donzília Martins refere que tem a preocupação de reinventar os sonhos que os contos tradicionais faziam surgir e também a cultura popular que foi a sua escola para a vida, até porque, como escreve no mesmo “Prefácio”:

É dessa cultura popular que vim e da qual me orgulho. Foi ela a minha escola para a vida. Por isso quero dar o meu testemunho às crianças, a fim de que também elas no seu imaginário possam sonhar e serem mais felizes.” (Martins 2009: 4)

Essa escola da vida já o leitor a conhece de uma obra que a Autora escreveu anteriormente, Um País na Janela do meu Nome, e é ela que leva a que uma menina diga que vale mais estudar do que ter dinheiro. Falamos do conto «A caixinha mágica», no qual encontramos uma lição de vida que é dada pela menina, para quem estudar era mais importante do que as moedas, porque “o dinheiro gasta-se e a sabedoria fica” (Martins 2007: 25). Ao preferir a sabedoria ao dinheiro, a adolescente revela a sua prioridade, porque com sabedoria poderia ter um melhor trabalho mais tarde. Assim, o dinheiro que a avó queria deixar-lhe após a morte, foi utilizado para pagar os estudos e realizar o seu sonho. O sonho da menina do conto «A caixinha mágica» tornou-se realidade na história de Donzília Martins, mas nesse tempo nem sempre assim acontecia, como muito bem o demonstrou o escritor duriense Soeiro Pereira Gomes (cujo centenário do nascimento ocorreu em 14/04/2009 e que aqui homenageamos de forma singela). Na sua obra Esteiros, Soeiro Pereira Gomes deu a conhecer a exploração do trabalho infantil e a desigualdade de oportunidades no Portugal dos finais da década de trinta, princípios da de quarenta do séc. XX.

Em Sonhos de Encantar Donzília Martins refere que tem a preocupação de apresentar ao leitor “textos mais didácticos e reais do que lúdicos ou ficcionais” (Martins 2009: 4), contudo a fórmula encantatória com que abre as histórias “Era uma vez...” transporta logo o leitor para o mundo mágico da ficção intemporal. Existe também um apelo à imaginação de quem lê o livro, procurando-se desenvolver a criatividade infantil. E isso é feito de maneira natural, quando no fim de cada uma das histórias encontramos expressões como:

“Agora conta tu...” (Martins 2009: 9);
“Entra. Vem, para ficares a saber.” (Martins 2009: 15);
“Queres vir também? Anda. Sobe.” (Martins 2009: 22);
“Também tens uma cãozinho? Fala-nos dele. Se não tens e gostavas de ter, imagina que tens um...” (Martins 2009: 28).
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Mas vejamos mais de perto cada uma das histórias. A primeira, «A menina que aprendeu com o olhar», estabelece um contraste entre uma menina que não gostava de comer a sopa e um menino que não tinha sopa para comer. O problema da fome e da desigualdade social é abordado com simplicidade, acabando a menina por compreender a diferença de condições de vida. E assim, a partir daí, “nunca mais deixou ficar a sopa arrefecida, ou a merenda da escola (...) na pasta esquecida” (Martins 2009: 9).

Na história «No Jardim do Alfabeto» fala-se de um jardim “muito verde, muito especial, muito engraçado” que ficava perto de uma escola. Esse jardim era especial porque em vez de flores os meninos viam nascer letras de muitas cores, tamanhos e formas. É uma história que, de forma, lúdica e divertida, pretende chamar a atenção das crianças para o fato de as letras poderem formar palavras quando bem agrupadas. Tudo é feito naturalmente:

“Um dia, andando a passear por entre elas uma abelha e uma borboleta, ambas deliciadas com tão doce perfume e tamanha beleza, pediram às letras que se juntassem no meio do jardim para fazerem um baile de roda.” (Martins 2009: 10-11)

E, ao juntarem-se, as letras formavam palavras, surgindo uma série delas com cada uma das letras do alfabeto.

A experiência docente com crianças que a Autora possui permite-lhe fazer uma espécie de aula onde, de maneira lúdica, os meninos podem ver palavras iniciadas com cada uma das letras do alfabeto. A essas, mais tarde, juntam-se outras começadas pela mesma letra e, ordenadas, acabam por viverem “felizes para sempre no DICIONÁRIO” (Martins 2009: 15). Donzília Martins, de forma alegre e divertida, usando a imaginação que lhe permite criar histórias, ensina aos meninos o abecedário e o que é um dicionário, um livro para onde “todas as letras, ordenadas, cada uma no seu lugar e a seu tempo, puderam entrar” (Martins 2009:15). No final, há um apelo ao pequeno ouvinte/leitor: “Entra. Vem, para ficares a saber” (Martins 2009:15).

Um dos temas do livro é a morte, um tema pouco usual para crianças, e que aparece tratado com alguma poesia, idealismo, apelando à imaginação, em contos como «A gatinha Kokas», «O Flash» e «A morte é uma flor (Filosofia para crianças)».

No primeiro, depois de a gata Kokas ter morrido, a Mariana, de oito anos, tem esperança de voltar a vê-la, uma vez que dizem que os gatos têm sete vidas. Então:

E como por magia, uma nuvem branca, que ia a voar nas costas do vento, acenou-lhe.
– Não me reconheces? Sou a Kokas. Vou andar sempre aqui em cima a passear. Quando te apetecer brincar comigo basta olhares e sonhar. Aqui posso transformar-me em tudo o que tu imaginares: fada, príncipe, castelo, rio, ponte, livro, amigos, escola, jardins floridos, o pôr-do-sol, comboios a correr, tudo o que quiseres. Sobe nesse raio de sol e vem brincar.
A menina, embalada, subiu por um fio de cabelo de oiro que o sol estendeu e foi brincar com a sua linda gatinha de olhos cor de mar e céu...” (Martins 2009: 22)

Sugestivamente, encontramos a pergunta: “Queres vir também? Anda. Sobe.” E é assim que termina o conto, com este apelo à imaginação das crianças, tal como sucede com a história do cão Flash, um pastor alemão que dá o título ao conto.

Em «O Flash» temos a Catarina que, “sentada no baloiço, entretanto adormecera e sonhava! Então entrámos todos no sonho dela e vimos o Flash com umas asas, que um anjo lhe emprestara, a voar, a voar, a voar, a voar...” (Martins 2009: 28).

E a história termina com um convite ao leitor para falar de um cão, seja ele real seja imaginário:

Nas asas do Flash, feito vento, todos subiram. A brisa serena beijava os rostos dos meninos que sorriam, sorriam, sorriam...
Também tens um cãozinho?
Fala-nos dele. Se não tens e gostavas de ter, imagina que tens um...” (Martins 2009: 28)

Nas páginas 29-36 temos a história «Na caixinha da Biblioteca», na qual se fala de uma “menina ‘Grande’” que entra na Biblioteca de Guimarães. É uma projeção da Autora que, com um grupo de colegas está a festejar os 44 anos do Curso do Magistério e vai ver um filme no edifício da Biblioteca de Guimarães.

A “menina ‘Grande’”, ao ver o filme, recordou-se da sua meninice, junto dos avós. “Como por magia” e atraído pelo sonho de a menina ter um exemplar da sua autoria no conjunto dos livros do Plano Nacional de Leitura, um livro poisou-lhe no colo e deu-lhe a esperança de um dia poder ver um livro seu naquele conjunto: “Ainda um dia hás-de dar-me um irmão por companhia” (Martins 2009: 33). E, mais adiante:

Também tu terás a tua fada boa a tocar com a sua varinha mágica na tua mão, porque no teu coração ela já tocou. (...) Ainda não chegou a tua hora. Não desesperes e nunca desistas. Caminha. É com pequenos passos que se fazem os caminhos.” (Martins 2009: 35)

Com esta mensagem para a personagem, Donzília Martins torna mais abrangente o conselho, fazendo com que se aplique a todos, deixando-nos um incentivo para uma caminhada gradual no sentido de alcançarmos os ideais almejados.

A história termina com a “menina ‘Grande’” a descer as escadas e então, “como por magia, transformou-se em livro!!! “Sonhos de Encantar”... com sete histórias para imaginar!...” (Martins 2009: 36). É um livro em que duas crianças querem pegar, um livro desconhecido para a bibliotecária, mas que elas dizem que fala e salta, porque o viram a descer as escadas.

Esta história e as duas seguintes «Aliz no País dos sonhos» e «A morte é uma flor» (Filosofia para crianças» são as únicas em que não existe o apelo final ao leitor.

Em «Aliz no País dos sonhos» Donzília Martins retoma o gênero de histórias de Um país na Janela do meu Nome, na medida em que evoca cenas da infância passadas na província, numa aldeia de gente “sofrida e pobre que vive escondida e perdida no meio das fragas, por entre as montanhas...” (Martins 2009: 40).

Nesta história aparece-nos a personagem Aliz, anagrama de Zila, forma abreviada de Donzília. Esta personagem, que é o alter ego da Autora, vive num meio rural, onde passam poucas pessoas, num tempo em que os colchões ainda eram de palha, numa casa em que sobressai a “lareira da cozinha, que era também sala e para a qual davam os quartos sem portas” onde ainda “brilhavam algumas brasas dos paus grossos de castanheiro que o avô colocara à noite para se aquecerem e e esquentar a pedra que serviria de botija para os pés” (Martins 2009: 38).

É neste ambiente que Aliz vive com os avós, sentindo-se muito só e desejando conhecer tudo o que a avó lhe conta nas historias. Uma das pessoas que passa na rua, uma vez por dia, é a moleira que também se sente só e se queixa do isolamento em que vive, já que o seu único companheiro é o burro, o Jeremias, com quem fala todo o caminho e a entende como ninguém. Esta situação da moleira lembra-nos a do protagonista de O Malhadinhas de Aquilino Ribeiro em que a personagem também trata o animal como um ser humano, ele que é a única companhia nas longas viagens que faz.

E, dado que estamos num conjunto de “Sete histórias para imaginar”, esta é mais uma em que se apela à imaginação e, assim, também surge uma fada. É uma fada flor de pessegueiro que consola a menina, incentivando-a a não se lamentar pela solidão:

Para se ser feliz basta olhar e ver a beleza das coisas que dançam e passam à nossa volta. Depois, beber toda a poesia que vive nelas...Um dia hei-de levar-te a viajar e a conheceres o mundo, como é teu desejo, e terás muitas escolas com meninos.” (Martins 2009: 42).

A história termina com a menina a ser acordada do sonho pelo barulho do ranger do ferrolho da porta, quando o avô chega, carregado de cogumelos. Enquanto o avô prepara uma refeição com eles, a Aliz vai à varanda e agora “ela era a fada encantada, e aquela varanda a torre do seu castelo de chuva dourado” (Martins 2009: 42).

O livro Sonhos de Encantar termina com a história «A morte é uma flor (Filosofia para crianças)», e nela se fala de uma avozinha. É um texto em que no início se fala, com alguma poesia, das avós:

“A maior parte delas tem os cabelos pintados de branco como a neve e lisos ou grifados a fazer de rios ou de pontes. Por cima das avós brilham duas estrelas que, de vez em quando, descem devagarinho e vão pousar-se-lhes nos olhos. Aí, nascem dois lagos grandes, redondos, umas vezes muito azuis, outras muito verdes, outras cinzentos, a baralharem a luz, mas neles, nas cores, brincam duas contas de azeviche, negras, fundas, onde vivem adormecidas mil histórias. É nesses olhares profundos que muitos meninos, sentados nos seus colos, gostam de mergulhar.” (Martins 2009: 43).

E Donzília Martins escreve, a propósito das lágrimas das avós, que muitas vezes também são de alegria:

“Na cara das nossas avós passam rios naturais, com leitos vincados, por onde de vez em quando correm grandes caudais em cataratas de lágrimas.”
Essas gotinhas de água transparentes são quase sempre de alegria por serem testemunhas vivas das crianças a crescerem.” (Martins 2009: 43).

Em «A morte é uma flor (Filosofia para crianças)» a Autora opta por falar livremente das avós, que são “exímias a ser ‘cadeirinhas’ de colo e que “são eternas! Nunca morrem. Ficam sempre connosco, deixando sempre um pouco delas em todos os passos do nosso caminho e, sobretudo, ficam para sempre a viver nas nossas almas.” (Martins 2009: 46). Nesta última história reflete-se claramente, por um lado, a relação afetiva muito forte que ligou Donzília Martins à sua avó e, por outro lado, a sua experiência, cheia de entusiasmo, de ser avó no momento presente.

Em conclusão, resta-nos dizer que, em Sonhos de Encantar, Donzília Martins, agora avó e a gostar de contar histórias aos netos, aproveita para nos contar pequenas histórias nas quais mostra de forma suave, idealizada e com alguma poesia, problemas com que as crianças e os adultos são confrontados no dia a dia das suas vidas. No seu livro encontramos páginas de encantar, com mensagens de amor, de fraternidade, de saudade motivada pela ausência eterna, uma saudade que pode ser colmatada ou atenuada através da imaginação.
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Os outros autores e respectivos livros citados no texto acima são:
Miguel Torga. Novos Contos da Montanha e
Maria da Assunção Monteiro. Trás-os-Montes e Alto Douro em contos/memórias de Donzília Martins
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Fonte:
Mª da Assunção Morais Monteiro. In Jornal dos Poetas e Trovadores, n.º 50, Outubro/Dezembro 2009, 3.ª Serie, Ano XXIX. Disponível no Grêmio Literário Vila-Realense, http://gremio.cm-vilareal.pt/

Um comentário:

Vana Fraga disse...

Passando Para Colher Pétalas Belas De Seu Tecer, Para Adonar Os Caminhos Que Irei Passar, Para Colorir Meu e Seu Existir!!!
Aplausos Poéticos A Tudo Que Li Aqui!!! Poetisa Linda Dia A Ti, Que Faz A Alma Sorrir!!!
Bjão No♥

Pequena Poetisa - Vana Fraga