segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Antonio Cândido (Literatura e Sociedade: A Literatura na Evolução de uma Comunidade) Parte 6, final


5 — O grupo se desprende da comunidade

Esta incorporação da literatura à comunidade — que noutras partes do Brasil já se havia dado antes — e a maneira por que se processou, explicam muitos aspectos do quinto e, para este estudo, último momento, que agora vamos considerar. Trata-se do Movimento Modernista, que nesta cidade se desenvolveu e teve as suas manifestações mais características de 1922 a 1935. Foi uma profunda renovação literária, estreitamente ligada à constituição de um agrupamento criador, como era o dos estudantes românticos; não mais justaposto à comunidade, todavia, mas formado a partir dela, oriundo da sua própria dinâmica, diferenciando-se de dentro para fora — por assim dizer. No plano funcional, diríamos que corresponde à necessidade de reajustar a expressão literária às novas aspirações intelectuais e às solicitações da mudança artística em todo o Ocidente. No plano da estrutura, diríamos que foi um esforço — em parte vitorioso — para substituir a uma expressão nitidamente de classe (como a dos anos 1890-1920) por uma outra, cuja fonte inspiradora e cujos limites de ação fossem a sociedade total.

Nesta parte, estamos ao alcance da memória de gente viva, e não há necessidade, como para os períodos anteriores, de aduzir documentos e provas. Todos sabem, por exemplo, que este movimento é o único, na literatura em São Paulo, cujo início pode ser precisamente datado: começa na famosa Semana de Arte Moderna, realizada em 1922 no Teatro Municipal. Espanemos mais uma vez a imagem cediça, para dizer que o Brasil teve, ali, a sua "noite do Ernâni"… Com efeito, ali se defrontaram duas facções, uma lutando por renovar a literatura de acordo com o espírito do tempo; outra, defendendo indignada uma tradição que, em São Paulo, correspondia a algo enraizado na sensibilidade. De ambos os lados, boa-fé e energia. Do lado dos conservadores, a aprovação tácita da comunidade; mas os renovadores tinham por si a premonição dos tempos novos e (tocamos no ponto que nos concerne sobretudo) formavam um agrupamento capaz de provocar o seu advento.

No seu estudo clássico sobre SUPERORDENAÇÃO E SUBORDINAÇÃO, procurando explicar o motivo pelo qual o tirano — que é um só — pode manter submisso o povo, — que são todos, — argumenta Simmel que todos apenas de passagem se aplicam a pensar ou agir contra a opressão, e ainda assim com uma parte mínima das suas energias, empenhadas nos interesses vários da vida; portanto, exercem uma reação desconexa e parcial. O tirano, pelo contrário, põe no ato de mandar toda a sua personalidade em todos os momentos da sua vida, de tal forma que as reações parciais encontram sempre de volta a ação total da sua energia, expressa na inteireza do sistema repressivo.

Podemos aproveitar esta explicação para dizer que, ao passo que as tendências conservadoras se ocupavam apenas eventualmente em defender o seu ponto de vista, houve em São Paulo, durante anos, um grupo que punha na ação renovadora toda a sua capacidade de criação e agressão. De tal modo, que se as suas opiniões não chegaram a substituir a literatura dominante, elas exerceram atração poderosa sobre as forças criadoras, sobretudo o que havia de vivo e promissor. Com isso, encurralaram a literatura oficial no academismo mais estéril, e abriram caminho para a literatura nova, que dominaria completamente em nossos dias.

A ação de grupo foi, portanto, decisiva. Não só da parte do bloco inicial dos modernistas, que se manteve coeso durante algum tempo, como dos subgrupos que dele se originaram, decantando os vários aspectos contidos no movimento: Verdeamarelismo, Anta, Antropofagia, grupo do Diário Nacional, da Revista Nova etc.

No começo, o referido bloco abrangia os modernistas do Rio, dos quais Graça Aranha desejava passar por chefe. Os principais dentre os paulistas eram Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, A. Couto de Barros, Guilherme de Almeida, Rubens Borba de Morais, Sérgio Milliet — mais tarde Antônio de Alcântara Machado. O grupo desenvolveu uma linguagem própria, e muito do que se tornou expressão oficial do movimento, e pareceu ao público hermetismo voluntariamente perverso, se explica no fundo por certas formas de intercomunicação dos seus membros. Os modismos, o estritamente pessoal de cada um, passaram ao verso e à prosa, suscitando, para os não iniciados, problemas angustiosos de exegese, como certos versos de Mário de Andrade:

E os goianos governados por meu avô,
ou
A Flandres inimaginável
E a decadência dos Almeidas.

Ou ainda certo final de capítulo do Serafim Ponte Grande, jovial e realista, carregado de sentido para os que conheciam os motivos do autor.

Além desse esoterismo que reforça a coesão interna, opondo o grupo aos outros, e à sociedade geral, os modernistas desenvolveram as famosas atitudes "futuristas": interpelações públicas, protestos, intimidação, confusão do adversário. Estabeleceram uma desnorteante mistura de valores, como a citação do Guaraná Zanotta ao lado de referências a Bilac ou Fídias. Organizaram tertúlias famosas, espécies de cerimônias confirmatórias, em fazendas e salões de amigos, em excursões distantes, — a Ouro Preto, à Amazônia.

Passaram no crivo a tradição clássica, afetando total indiferença pelos seus valores. Todavia, este aparato esotérico e exotérico não passava de blindagem do grupo para a luta, cuja finalidade real foi o trabalho aturado e profundo de revisão literária. Pode-se reconhecer a autenticidade de um escritor dessa fase pela sua identificação com a vida aparente e a vida profunda do movimento. Os que dele participaram como quem tem catapora, e os que se realizaram nele, como obra e personalidade.

Na constituição desse, ou desses agrupamentos de campanha literária, deve-se apontar a relação que mantiveram com os salões burgueses, alguns oriundos da fase anterior e que, tendo constituído atmosfera estimulante para os efeitos convencionais do Parnasianismo, forneceram também, em certos casos, ambiente para os modernos. Algumas casas da classe dominante em São Paulo os acolheram, dando-lhes deste modo não apenas amparo e reconhecimento em face da tradição, mas reforçando os vínculos entre eles, confirmando-os na sua sociabilidade própria. Houve mesmo tensões e rupturas na base do apoio ou fidelidade aos vários mecenas. Dentre tais salões deve-se mencionar a famosa Vila Kyrial, onde "Freitas Vale o magnífico", — o poeta simbolista Jacques D'Avray, — congregou sucessivamente, por mais de um quarto de século, simbolistas, parnasianos, modernistas, estabelecendo um elo profundo entre estas diversas tendências. A circunstância dos modernistas se ligarem a formas tradicionais de sociabilidade literária mostra que a estrutura social da cidade, bastante rica a esta altura, já se encontrava aparelhada para assimilar as formações divergentes, originadas pela dinâmica do seu desenvolvimento.

Esta observação nos leva a outra, de natureza comparativa. Enquanto na São Paulo romântica a literatura surgiu e encorpou como expressão de um grupo, que não encontrava manifestação possível da sua integridade no quadro das atividades sociais disponíveis; na São Paulo pós-parnasiana o grupo modernista surgiu (isto é, constituiu-se enquanto grupo) como veículo de tendências intelectuais que não podiam manifestar-se através dos grupos literários (efetivos ou virtuais) então existentes.

Prossigamos na linha comparativa. Em 1922, como em 1845, o grupo literário se constituiu em oposição consciente à comunidade, na afirmação de uma existência própria. Em 1845, porém, a oposição era entre duas visões do mundo, e por assim dizer entre duas idades — adolescência e maturidade. Em 1922, era, além disso, de uma literatura a outra — pois o que se desejava era destruir um sistema literário solidamente constituído, coisa inexistente em São Paulo ao tempo do Romantismo.

Daí o estabelecimento, no plano literário, de uma competição com os grupos que representavam o sistema oficial: jornais, salões, academias, correntes de opinião. Foi nitidamente (e isto é o seu caráter diferencial do ponto de vista sociológico) uma porfia em torno da liderança intelectual em São Paulo. Foi uma concorrência em que se empenharam os defensores de uma literatura ajustada à ordem burguesa tradicional, implicando um "gosto de classe" (dominante), fielmente servido por escritores providos de beneplácito, difundindo-se pelo exemplo por toda a pirâmide social; e os renovadores, procurando exprimir valores mais profundos, aspirações e estilos recalcados na literatura popular pelo oficialismo burguês.

Por isso, embora os escritores de 1922 não manifestassem a princípio nenhum caráter revolucionário, no sentido político, e não pusessem em dúvida os fundamentos da ordem vigente, a sua atitude, analisada em profundidade, representa um esforço para retirar à literatura o caráter de classe, transformando-a em bem comum a todos. Daí o seu populismo — que foi a maneira por que retomaram o nacionalismo dos românticos. Mergulharam no folclore, na herança africana e ameríndia, na arte popular, no caboclo, no proletário. Um veemente desrecalque, por meio do qual as componentes cuidadosamente abafadas, ou laboriosamente deformadas (é o caso de "literatura sertaneja") pela ideologia tradicional, foram trazidas à tona da consciência artística. O admirável TUPI OR NOT TUPI, do Manifesto Antropófago de Oswald de Andrade — mestre incomparável das fórmulas lapidares —, resume todo este processo, de decidida incorporação da riqueza profunda do povo, da herança total do país, na estilização erudita da literatura. Sob este ponto de vista, as intuições da Antropofagia, a ele devidas, representam o momento mais denso da dialética modernista, em contraposição ao superficial "dinamismo cósmico" de Graça Aranha.

Outro traço, que reforça a semelhança geral do Romantismo com o Modernismo, é a atitude de negação, que lá foi satanismo e aqui troça, piada. O humor e a chacota pertencem também à atitude romântica, e uma das suas manifestações mais típicas, A ORGIA DOS DUENDES, de Bernardo Guimarães, é um xadrez de brincadeira, melancolia e perversidade, com predomínio das duas últimas. Já o Modernismo é o movimento mais alegre e jovial da nossa literatura, — manifestado no próprio comportamento dos seus protagonistas, na sua furiosa ânsia de diversão. Lembremos O CLARO RISO DOS MODERNOS, de Ronald de Carvalho, para sugerir que a alegria foi dogma equivalente à tristeza romântica e, por isso mesmo, não raro artificial, como esta. Ambas foram norma e expressão de grupo, a que se conformavam os seus membros respectivos. Macunaíma, de Mário de Andrade, a maior obra do movimento, reflete bem esta condição; mas termina num quebranto de melancolia, que revela as correntes profundas da atitude modernista.

E agora, terminando, lembremos a analogia derradeira: como o Romantismo, o Modernismo é, de todas as nossas correntes literárias, a que adquiriu tonalidades especificamente paulistanas. Se em São Paulo não tivesse havido os escritores que houve no período clássico, no Naturalismo, no Parnasianismo e no Simbolismo, a literatura brasileira teria perdido um ou outro bom escritor, mas nada de irremediável. Se tal acontecesse no Romantismo e no Modernismo, o Brasil ficaria mutilado de algumas das suas mais altas realizações artísticas, como são a tonalidade noturna do Macário e a explosão rabelaisiana de Macunaíma, com tudo o que se organizou de fecundo em volta dessas obras culminantes. Dois momentos paulistanos, portanto; dois momentos em que a cidade se projeta sobre o país e procura dar estilo às aspirações do país todo:

Dançamos juntos no Carnaval das gentes,
Bloco pachola do "Custa mas vai!"
Mário de Andrade

* * *

Se as considerações anteriores alcançaram o objetivo, o leitor terá obtido uma rápida visão da literatura nas suas relações com a comunidade paulistana. Terá visto que ambas se explicam e se complementam, se as quisermos ver solidariamente.

Com efeito, os cinco momentos mostram cinco maneiras diversas de associação dos escritores, de participação dos mesmos na vida social, de ajuste da expressão à dinâmica dessas relações e sua influência nelas.

A princípio, uma cidade em que não há condições para a vida organizada da inteligência, mas onde há alguns indivíduos animados do desejo de exprimir os valores locais. É o primeiro e vago esboço de uma literatura paulistana, definida pelo encontro de poucos intelectuais com os valores tradicionais da comunidade, já socialmente amadurecidos, mas ainda não simbólica e intelectualmente elaborados.

Decênios mais tarde, vemos desenvolver-se um agrupamento que permite a atividade literária permanente. Ele pertence à cidade, está demograficamente integrado nela, mas lhe é espiritualmente alheio. Não possui forças para elaborar uma expressão original, mas dá lugar a certas tendências que floresceriam mais tarde.

Em seguida, encontramos o corpo estudantino já estruturado e solidamente justaposto à cidade. A sua duração, a evolução das formas de sociabilidade, que lhe são próprias, deram lugar a uma atmosfera espiritual altamente condutora, que o segrega da comunidade. Os aspectos satânicos do Romantismo se casam admiravelmente a estas condições, e surge pela primeira vez uma literatura de tonalidade paulistana — expressão de um grupo que é corpo estranho na pequena cidade.

Mas esta cresce, e a moda romântica passa. O aumento de densidade demográfica e social abre novas possibilidades de ajuste dos moços, e deste modo rompe a sua sociabilidade hermética. As novas tendências literárias acentuam o caráter comunicativo da palavra, surgem escritores que não dependem da Faculdade de Direito. A literatura e os escritores se integram na comunidade. Como a sociedade é de classes, constitui-se uma literatura convencional, ajustada aos padrões de refinamento e inteligibilidade da classe dominante, cujo prestígio garante a sua difusão pelas outras camadas.

Ora, nessas condições, a literatura passa de tal modo a ser um elemento da ordem social, que não se sente nela a vibração e a receptividade em face das novas sugestões da vida, em constante fluxo. Daí um novo movimento, para lhe dar amplitude ainda maior, fundando-a, não no gosto e no interesse de um limitado setor da sociedade, mas na vida profunda de toda esta, na sua totalidade. O Modernismo completa o processo iniciado na segunda metade do século XVIII, quando os seus grupos revolucionários procuram alargar o âmbito da criação artística, englobando os aspectos recalcados da sociedade e da cultura nacional. É o segundo momento em que a cidade de São Paulo contribui com algo próprio ao patrimônio comum do país.

Um grupo virtual, bruxuleando na cidade indiferente; um grupo ordenado, estabelecendo a tradição literária; um grupo ordenado e vivo, criando uma expressão à margem da cidade; a cidade absorvendo este grupo e chamando a si a atividade literária, que se ordena pelos padrões eruditos da burguesia culta; da cidade surgindo um grupo que rompe esta dependência de classe e, quebrando as barreiras acadêmicas, faz da literatura um bem de todos. Há uma história da literatura que se projeta na cidade de São Paulo; e há uma história da cidade de São Paulo que se projeta na literatura.
–––––––––––––––-
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.

Nenhum comentário: