segunda-feira, 2 de agosto de 2010

João Cabral de Melo Neto (Poemas Avulsos)


A VIAGEM

Quem é alguém que caminha
Toda a manhã com tristeza
Dentro de minhas roupas, perdido
Além do sonho e da rua?

Das roupas que vão crescendo
Como se levassem nos bolsos
Doces geografias, pensamentos
De além do sonho e da rua?

Alguém a cada momento
Vem morrer no longe horizonte
Do meu quarto, onde esse alguém
É vento, barco, continente.

Alguém me diz toda a noite
Coisas em voz que não ouço.
- Falemos na viagem, eu lembro.
Alguém me fala na viagem.

In "O engenheiro", 1945.

A LIÇÃO DE POESIA

1.

Toda a manhã consumida
como um sol imóvel
diante da folha em branco:
princípio do mundo, lua nova.

Já não podias desenhar
sequer uma linha;
um nome, sequer uma flor
desabrochava no verão da mesa:

nem no meio-dia iluminado,
cada dia comprado,
do papel, que pode aceitar,
contudo, qualquer mundo.

2.

A noite inteira o poeta
em sua mesa, tentando
salvar da morte os monstros
germinados em seu tinteiro.

Monstros, bichos, fantasmas
de palavras, circulando,
urinando sobre o papel,
sujando-o com seu carvão.

Carvão de lápis, carvão
da idéia fixa, carvão
da emoção extinta, carvão
consumido nos sonhos.

3.

A luta branca sobre o papel
que o poeta evita,
luta branca onde corre o sangue
de suas veias de água salgada.

A física do susto percebida
entre os gestos diários;
susto das coisas jamais pousadas
porém imóveis - naturezas vivas.

E as vinte palavras recolhidas
as águas salgadas do poeta
e de que se servirá o poeta
em sua máquina útil.

Vinte palavras sempre as mesmas
de que conhece o funcionamento,
a evaporação, a densidade
menor que a do ar.

EDUCAÇÃO PELA PEDRA

Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas).
A lição de moral, sua resistência fria
ao que flui e a fluir, a ser maleada;
a de poética, sua carnadura concreta;
a de economia, seu adensar-se compacta;
lições da pedra (de fora para dentro,
cartilha muda), para quem soletrá-la.

Outra educação pela pedra: no Sertão
(de dentro para fora, e pré-didática).
No Sertão a pedra não sabe lecionar,
e se lecionasse, não ensinaria nada;
lá não se aprende a pedra; lá a pedra,
uma pedra de nascença, entranha a alma.

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