Tendo feito a síntese interpretativa do movimento literário nos últimos cinquenta anos, podemos agora fazer algumas considerações sociológicas sobre a função da literatura na cultura brasileira e a sua posição atual.
Constatemos de início (como já tive oportunidade de fazer em outro escrito) que as melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária. Isto é verdade não apenas para o romance de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos; para a poesia de Gonçalves Dias, Castro Alves, Mário de Andrade, como para Um estadista do Império, de Joaquim Nabuco, Os sertões, de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre — livros de intenção histórica e sociológica. Diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.
O exemplo da sociologia é elucidativo a este respeito. Esboçados os trabalhos e a orientação sociológica desde o último quartel do século XIX, sobretudo com A mulher e a sociogenia, de Lívio de Castro, e alguns trabalhos de Sílvio Romero, o primeiro livro propriamente sociológico, no sentido estrito da palavra, só veio a aparecer entre nós em 1939: Assimilação e populações marginais no Brasil, de Emílio Willems. Antes, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a sociologia aparecia mais como "ponto de vista" do que como pesquisa objetiva da realidade presente. O poderoso ímã da literatura interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil, e à qual devemos a pouco literária História da literatura brasileira —, de Sílvio Romero, Os sertões, de Euclides da Cunha, Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, a obra de Gilberto Freyre e as Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Não será exagerado afirmar que esta linha de ensaio, — em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a ciência e a arte — constitui o traço mais característico e original do nosso pensamento. Notemos que, esboçada no século XIX, ela se desenvolve principalmente no atual, onde funciona como elemento de ligação entre a pesquisa puramente científica e a criação literária, dando, graças ao seu caráter sincrético, uma certa unidade ao panorama da nossa cultura.
Ora, nos nossos dias houve uma transformação essencial deste estado de coisas. Deixando de constituir atividade sincrética, a literatura volta-se sobre si mesma, especificando-se e assumindo uma configuração propriamente estética; ao fazê-lo, deixa de ser uma viga mestra, para alinhar-se em pé de igualdade com outras atividades do espírito. Se focalizarmos não mais o ritmo estético da nossa literatura (que parece desenvolver-se conforme a dialética do local e do cosmopolita), mas o seu ritmo histórico e social, poderíamos talvez defini-la como literatura de incorporação que vai passando a literatura da depuração.
Com efeito, é fácil perceber que o verbo literário vai perdendo terreno, não apenas em relação à matéria que lhe cabia, mas ao prestígio que tinha como padrão de cultura. Para dar um único exemplo: hoje não compreenderíamos mais fenômenos como a escola baiana de medicina, ou o prolongamento que lhe deram, na Faculdade do Rio, Francisco de Castro e os seus discípulos. Não se poderia admitir, de um lado, a ciência médica expressa em retórica literária; de outro, a literatura considerada como requisito de preeminência científica e social.
A longa soberania da literatura tem, no Brasil, duas ordens de fatores. Uns, derivados da nossa civilização européia e dos nossos contatos permanentes com a Europa, quais sejam o prestígio das humanidades clássicas e a demorada irradiação do espírito científico. Outros, propriamente locais, que prolongaram indefinidamente aquele prestígio e obstaram esta irradiação. Assinalemos, entre os fatores locais (que nos interessam mais de perto), a ausência de iniciativa política implicada no estatuto colonial, o atraso ainda hoje tão sensível da instrução, a fraca divisão do trabalho intelectual.
A literatura se adaptou muito bem a estas condições, ao permitir, e mesmo forçar, a preeminência da interpretação poética, da descrição subjetiva, da técnica metafórica (da visão, numa palavra), sobre a interpretação racional, a descrição científica, o estilo direto (ou seja, o conhecimento). Ante a impossibilidade de formar aqui pesquisadores, técnicos, filósofos, ela preencheu a seu modo a lacuna, criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento. Veja-se, por exemplo, o significado e a voga do Indianismo romântico, que satisfazia tanto às exigências rudimentares do conhecimento (graças a uma etnografia intuitiva e fantasiosa), quanto às da sensibilidade e da consciência nacional, dando-lhes o índio cavalheiresco como alimento para o orgulho e superação das inferioridades sentidas.
Uma consequência interessante foi a supremacia dos estudos de direito. Aos problemas coloniais de estabelecimento de fronteiras e consolidação do território, sucederam no século XIX os graves problemas de estabelecimento e consolidação do Estado, inclusive a ordenação de uma sociedade pouco organizada além dos limites paternalistas da família. É pois compreensível que se tenha propiciado a cultura jurídica (provida desde logo de bases universitárias), com toda a sua tendência para o formalismo, como orientação, através da retórica, como técnica. Se lembrarmos que o discurso e o sermão (sobretudo este) foram os tipos mais frequentes e prezados de manifestação intelectual no tempo da Colônia, veremos quanto a sua fusão no corpo da jurisprudência importa em triunfo do espírito literário como elemento de continuidade cultural.
Justamente devido a essa inflação literária, a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros.
No período em que a nossa literatura ganhou corpo (do século XVIII ao século XIX) eram muito restritos os grupos sociais ao seu alcance. Foi justamente em função destes que ela trabalhou, dando-lhes de certo modo alimento espiritual e recursos mentais para compreender o país. As ciências naturais e humanas, a despeito do belo início que tiveram aqui em fins de século XVIII e início do XIX (quando delimitam a nossa breve Aufklärung), não se desenvolveram em seguida no mesmo ritmo que as letras ou o direito. Em parte, porque não tinham ressonância ou possibilidade, como demonstra simbolicamente o ineditismo em que os poderes conservaram os escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira, ou a odisséia das pranchas de frei Mariano da Conceição Veloso; em parte, porque a tarefa social mais urgente era, como ficou indicado, de ordem política e jurídica. Desde modo, o espírito da burguesia brasileira se desenvolveu sob influxos dominantemente literários, e a sua maneira de interpretar o mundo circundante foi estilizada em termos, não de ciência, filosofia ou técnica, mas de literatura. Toda a renovação intelectual do Naturalismo, a partir do que Sílvio Romero chamou a Escola do Recife, nos aparece hoje sobretudo como um sistema de retórica. Bacharéis de mente acesa, alastrando de literatura, e mesmo literatice, noções científicas vagamente aprendidas em Haeckel, Huxley ou Büchner. É difícil encontrar maior verbalismo do que, por exemplo, nos estudos em que Fausto Cardoso pretendeu consolidar cientificamente os fundamentos da sociologia por meio do monismo haeckeliano.
Toda essa onda vem quebrar n'Os sertões, típico exemplo da fusão, bem brasileira, de ciência mal digerida, ênfase oratória e intuições fulgurantes. Livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior).
A obra de Euclides da Cunha foi escrita num tempo em que já estavam bastante modificadas as condições de formação do nosso pensamento, com indícios vivos de superação da tirania jurídico-retórica. Mas, como vimos acima, a literatura se caracterizava, no início do século XX, por uma acentuada inconsciência desta transformação. Ajustava-se à superfície da vida burguesa, sem pressentir as novas exigências de sensibilidade e conhecimento, percebidas apenas por alguns.
Nesta ordem de considerações, o Modernismo representa um esforço brusco e feliz de reajustamento da cultura às condições sociais e ideológicas, que vinham, desde o fim da Monarquia, em lenta mudança, acelerada pelas fissuras que a Primeira Guerra Mundial abriu também aqui na estrutura social, econômica e política. A força do Modernismo reside na largueza com que se propôs encarar a nova situação, facilitando o desenvolvimento até então embrionário da sociologia, da história social, da etnografia, do folclore, da teoria educacional, da teoria política. Não é preciso lembrar a sincronia dos acontecimentos literários, políticos, educacionais, artísticos, para sugerir o poderoso impacto que os anos de 1920-1935 representam na sociedade e na ideologia do passado.
Mas, apesar da cultura intelectual se haver desenvolvido em ritmo acelerado desde o início do século; apesar da intensa divisão do trabalho intelectual, com o estabelecimento da vida científica, em escala apreciável; apesar do surto das ciências humanas a partir sobretudo de 1930; apesar de tudo isto, a literatura permaneceu em posição-chave. Vimos que alguns dos produtos mais excelentes dessa época no campo dos estudos sociais, como Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, Raízes do Brasil, lhe são tributários, não apenas pelo estilo mas principalmente pelo ritmo da composição e a própria qualidade da interpretação. Por outro lado, o romance social e narrativo do decênio de 1930 segue a tradição naturalista de concorrência ao conhecimento científico; só que, neste caso, conhecimento mais sociológico e político, não obstante a ciência já haver, neste setor, alcançado e superado os recursos da ficção. Em todo o caso, os decênios de 1920 e de 1930 ficarão em nossa história intelectual como de harmoniosa convivência e troca de serviços entre literatura e estudos sociais.
Hoje, vemos que é necessário chamar Modernismo, no sentido amplo, ao movimento cultural brasileiro de entre as duas guerras, correspondente à fase em que a literatura, mantendo-se ainda muito larga no seu âmbito, coopera com os outros setores da vida intelectual no sentido da diferenciação das atribuições, de um lado; da criação de novos recursos expressivos e interpretativos, de outro.
A inteligência tomou finalmente consciência da presença das massas como elemento construtivo da sociedade; isto, não apenas pelo desenvolvimento de sugestões de ordem sociológica, folclórica, literária, mas sobretudo porque as novas condições da vida política e econômica pressupunham cada vez mais o advento das camadas populares. Pode-se dizer que houve um processo de convergência, segundo o qual a consciência popular amadurecia, ao mesmo tempo em que os intelectuais se iam tornando cientes dela. E este alargamento da inteligência em direção aos temas e problemas populares contribuiu poderosamente para criar condições de desenvolvimento das aspirações radicais, que tentariam orientar, dar forma, ou quando menos sentir a inquietação popular. O que se poderia, no melhor sentido, chamar de libertinagem espiritual do Modernismo contribuiu para o fermento de negação da ordem estabelecida, sem o qual não se desenvolvem a rebeldia social e o consequente radicalismo político. Aquilo que chamei o V Narod do decênio de 1930 apresenta, visto de hoje, uma configuração nitidamente renovadora, a despeito da atitude política e filosófica assumida ulteriormente pelos seus protagonistas. É preciso colocá-los no contexto daquele momento para compreender o sentido da sua ação. Um autor como Gilberto Freyre, que parece hoje um sociólogo conservador, significou então uma força poderosa de crítica social, com a desabusada liberdade das suas interpretações. A destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literário, a paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência como atitude: eis algumas contribuições do Modernismo que permitiriam a expressão simultânea da literatura interessada, do ensaio histórico-social, da poesia libertada.
Paralelamente, a ameaça aos valores tradicionais estimulou, no plano intelectual, manifestações que, embora tributárias em parte do Modernismo (como vimos), constituem sobretudo um prolongamento ou uma superação da linha espiritualista originada do Simbolismo e que hauriu no Modernismo alguns instrumentos formais, mas sobretudo o nacionalismo e a pesquisa do eu profundo. A poesia espiritualista, o romance de orientação problemática, o ensaio católico tradicionalista constituem modos, bastante diversos, e nem sempre ligados entre si, de reagir no sentido de uma preservação, ou reajustamento de valores sociais, políticos, ideológicos, ameaçados pelas manifestações modernistas. Diante da crise das velhas estruturas, e portanto dos valores tradicionais, a literatura reagiu com bastante sensibilidade — quer no sentido da reforma, contribuindo para a formação de uma atitude crítica, quer no da reação, intensificando o apelo daqueles valores.
Em nossos dias, estamos assistindo ao fim da literatura onívora, infiltrada como critério de valor nas várias atividades do pensamento. Assistimos, assim, ao fim da literatice tradicional, ou seja, da intromissão indevida da literatura; da literatura sem propósito. Em consequência, presenciamos também a formação de padrões literários mais puros, mais exigentes e voltados para a consideração de problemas estéticos, não mais sociais e históricos. É a maneira pela qual as letras reagiram à crescente divisão do trabalho intelectual, manifestado sobretudo no desenvolvimento das ciências da cultura, que vão permitindo elaborar, do país, um conhecimento especializado e que não reveste mais a forma literária.
Vista à luz da evolução literária, esta divisão do trabalho significa o aparecimento de um conflito no interior da literatura, na medida em que esta se vê atacada em campos que haviam sido até aqui (numas fases mais, noutras menos) seus campos preferenciais. Um Alencar ou um Domingos Olímpio eram, ao mesmo tempo, o Gilberto Freyre e o José Lins do Rego em seu tempo; a sua ficção adquiria significado de iniciação ao conhecimento da realidade do país. Mas hoje, os papéis sociais do romancista e do sociólogo já se diferenciaram, e a literatura deve retrair, se não a profundidade, certamente o âmbito da sua ambição. Daí as modernas tendências estetizantes aparecerem ao sociólogo e ao historiador da cultura como reação de defesa e ajustamento às novas condições da vida intelectual; uma delimitação de campo que, para o crítico, é principalmente uma tendência ao formalismo, e por vezes à gratuidade e ao solipsismo literário. Tanto para o crítico quanto para o estudioso da cultura e da sociedade, ela é, contudo, uma elaboração de novos meios expressivos e um desenvolvimento de nova consciência artesanal, que produzirão novas formas de expressão literária, mais ou menos ligadas à vida social, conforme os acontecimentos o solicitem.
Não há dúvida, porém, que o presente momento é de relativa perplexidade, manifestada pelo abuso de pesquisas formais, a queda na qualidade média da produção, a omissão da crítica militante. Se encararmos estes fatos de um ângulo sociológico, veremos que eles estão ligados — entre outras causas — à transformação do público e à transformação do grupo de escritores.
Vejamos o primeiro caso. Os analfabetos eram no Brasil, em 1890, cerca de 84%; em 1920 passaram a 75%; em 1940 eram 57%. A possibilidade de leitura aumentou, pois, consideravelmente. Muito mais, todavia, aumentou o número relativo de leitores, possibilitando a existência, sobretudo a partir de 1930, de numerosas casas editoras, que antes quase não existiam. Formaram-se então novos laços entre escritor e público, com uma tendência crescente para a redução dos laços que antes o prendiam aos grupos restritos de diletantes e "conhecedores". Mas este novo público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos novos meios de comunicação. Viu-se então que no momento em que a literatura brasileira conseguia forjar uma certa tradição literária, criar um certo sistema expressivo que a ligava ao passado e abria caminhos para o futuro, — neste momento as tradições literárias começavam a não mais funcionar como estimulante.
Com efeito, as formas escritas de expressão entravam em relativa crise, ante a concorrência de meios expressivos novos, ou novamente reequipados, para nós, — como o rádio, o cinema, o teatro atual, as histórias em quadrinhos. Antes que a consolidação da instrução permitisse consolidar a difusão da literatura literária (por assim dizer), estes veículos possibilitaram, graças à palavra oral, à imagem, ao som (que superam aquilo que no texto escrito são limitações para quem não se enquadrou numa certa tradição), que um número sempre maior de pessoas participasse de maneira mais fácil dessa quota de sonho e de emoção que garantia o prestígio tradicional do livro. E para quem não se enquadrou numa certa tradição, o livro apresenta limitações que aquelas vias superam, diminuindo a exigência de concentração espiritual.
O grupo de escritores, aumentado e mais claramente diferenciado do conjunto das atividades intelectuais, reage ou reagirá de maneira diversa em face deste estado de coisas: ou fornecerá ao público o "retalho de vida", próximo à reportagem jornalística e radiofônica, que permitirá então concorrer com os outros meios comunicativos e assegurar a função de escritor; ou se retrairá, procurando assegurá-la por meio de um exagero da sua dignidade, da sua singularidade, e visando ao público restrito dos conhecedores. São dois perigos, e ambos se apresentam a cada passo nesta era de incertezas. O primeiro faria da literatura uma presa fácil da não-literatura, subordinando-a a desígnios políticos, morais, propagandísticos em geral. O segundo, separá-la-ia da vida e seus problemas, a que sempre, esteve ligada pelo seu passado, no Brasil. E a alternativa só se resolverá por uma redefinição das relações do escritor com o público, bem como por uma redefinição do papel específico do grupo de escritores em face dos novos valores de vida e de arte, que devem ser extraídos da substância do tempo presente.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
Constatemos de início (como já tive oportunidade de fazer em outro escrito) que as melhores expressões do pensamento e da sensibilidade têm quase sempre assumido, no Brasil, forma literária. Isto é verdade não apenas para o romance de José de Alencar, Machado de Assis, Graciliano Ramos; para a poesia de Gonçalves Dias, Castro Alves, Mário de Andrade, como para Um estadista do Império, de Joaquim Nabuco, Os sertões, de Euclides da Cunha, Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre — livros de intenção histórica e sociológica. Diferentemente do que sucede em outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que a filosofia e as ciências humanas, o fenômeno central da vida do espírito.
O exemplo da sociologia é elucidativo a este respeito. Esboçados os trabalhos e a orientação sociológica desde o último quartel do século XIX, sobretudo com A mulher e a sociogenia, de Lívio de Castro, e alguns trabalhos de Sílvio Romero, o primeiro livro propriamente sociológico, no sentido estrito da palavra, só veio a aparecer entre nós em 1939: Assimilação e populações marginais no Brasil, de Emílio Willems. Antes, de Euclides da Cunha a Gilberto Freyre, a sociologia aparecia mais como "ponto de vista" do que como pesquisa objetiva da realidade presente. O poderoso ímã da literatura interferia com a tendência sociológica, dando origem àquele gênero misto de ensaio, construído na confluência da história com a economia, a filosofia ou a arte, que é uma forma bem brasileira de investigação e descoberta do Brasil, e à qual devemos a pouco literária História da literatura brasileira —, de Sílvio Romero, Os sertões, de Euclides da Cunha, Populações meridionais do Brasil, de Oliveira Viana, a obra de Gilberto Freyre e as Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Não será exagerado afirmar que esta linha de ensaio, — em que se combinam com felicidade maior ou menor a imaginação e a observação, a ciência e a arte — constitui o traço mais característico e original do nosso pensamento. Notemos que, esboçada no século XIX, ela se desenvolve principalmente no atual, onde funciona como elemento de ligação entre a pesquisa puramente científica e a criação literária, dando, graças ao seu caráter sincrético, uma certa unidade ao panorama da nossa cultura.
Ora, nos nossos dias houve uma transformação essencial deste estado de coisas. Deixando de constituir atividade sincrética, a literatura volta-se sobre si mesma, especificando-se e assumindo uma configuração propriamente estética; ao fazê-lo, deixa de ser uma viga mestra, para alinhar-se em pé de igualdade com outras atividades do espírito. Se focalizarmos não mais o ritmo estético da nossa literatura (que parece desenvolver-se conforme a dialética do local e do cosmopolita), mas o seu ritmo histórico e social, poderíamos talvez defini-la como literatura de incorporação que vai passando a literatura da depuração.
Com efeito, é fácil perceber que o verbo literário vai perdendo terreno, não apenas em relação à matéria que lhe cabia, mas ao prestígio que tinha como padrão de cultura. Para dar um único exemplo: hoje não compreenderíamos mais fenômenos como a escola baiana de medicina, ou o prolongamento que lhe deram, na Faculdade do Rio, Francisco de Castro e os seus discípulos. Não se poderia admitir, de um lado, a ciência médica expressa em retórica literária; de outro, a literatura considerada como requisito de preeminência científica e social.
A longa soberania da literatura tem, no Brasil, duas ordens de fatores. Uns, derivados da nossa civilização européia e dos nossos contatos permanentes com a Europa, quais sejam o prestígio das humanidades clássicas e a demorada irradiação do espírito científico. Outros, propriamente locais, que prolongaram indefinidamente aquele prestígio e obstaram esta irradiação. Assinalemos, entre os fatores locais (que nos interessam mais de perto), a ausência de iniciativa política implicada no estatuto colonial, o atraso ainda hoje tão sensível da instrução, a fraca divisão do trabalho intelectual.
A literatura se adaptou muito bem a estas condições, ao permitir, e mesmo forçar, a preeminência da interpretação poética, da descrição subjetiva, da técnica metafórica (da visão, numa palavra), sobre a interpretação racional, a descrição científica, o estilo direto (ou seja, o conhecimento). Ante a impossibilidade de formar aqui pesquisadores, técnicos, filósofos, ela preencheu a seu modo a lacuna, criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento. Veja-se, por exemplo, o significado e a voga do Indianismo romântico, que satisfazia tanto às exigências rudimentares do conhecimento (graças a uma etnografia intuitiva e fantasiosa), quanto às da sensibilidade e da consciência nacional, dando-lhes o índio cavalheiresco como alimento para o orgulho e superação das inferioridades sentidas.
Uma consequência interessante foi a supremacia dos estudos de direito. Aos problemas coloniais de estabelecimento de fronteiras e consolidação do território, sucederam no século XIX os graves problemas de estabelecimento e consolidação do Estado, inclusive a ordenação de uma sociedade pouco organizada além dos limites paternalistas da família. É pois compreensível que se tenha propiciado a cultura jurídica (provida desde logo de bases universitárias), com toda a sua tendência para o formalismo, como orientação, através da retórica, como técnica. Se lembrarmos que o discurso e o sermão (sobretudo este) foram os tipos mais frequentes e prezados de manifestação intelectual no tempo da Colônia, veremos quanto a sua fusão no corpo da jurisprudência importa em triunfo do espírito literário como elemento de continuidade cultural.
Justamente devido a essa inflação literária, a literatura contribuiu com eficácia maior do que se supõe para formar uma consciência nacional e pesquisar a vida e os problemas brasileiros. Pois ela foi menos um empecilho à formação do espírito científico e técnico (sem condições para desenvolver-se) do que um paliativo à sua fraqueza. Basta refletir sobre o papel importantíssimo do romance oitocentista como exploração e revelação do Brasil aos brasileiros.
No período em que a nossa literatura ganhou corpo (do século XVIII ao século XIX) eram muito restritos os grupos sociais ao seu alcance. Foi justamente em função destes que ela trabalhou, dando-lhes de certo modo alimento espiritual e recursos mentais para compreender o país. As ciências naturais e humanas, a despeito do belo início que tiveram aqui em fins de século XVIII e início do XIX (quando delimitam a nossa breve Aufklärung), não se desenvolveram em seguida no mesmo ritmo que as letras ou o direito. Em parte, porque não tinham ressonância ou possibilidade, como demonstra simbolicamente o ineditismo em que os poderes conservaram os escritos de Alexandre Rodrigues Ferreira, ou a odisséia das pranchas de frei Mariano da Conceição Veloso; em parte, porque a tarefa social mais urgente era, como ficou indicado, de ordem política e jurídica. Desde modo, o espírito da burguesia brasileira se desenvolveu sob influxos dominantemente literários, e a sua maneira de interpretar o mundo circundante foi estilizada em termos, não de ciência, filosofia ou técnica, mas de literatura. Toda a renovação intelectual do Naturalismo, a partir do que Sílvio Romero chamou a Escola do Recife, nos aparece hoje sobretudo como um sistema de retórica. Bacharéis de mente acesa, alastrando de literatura, e mesmo literatice, noções científicas vagamente aprendidas em Haeckel, Huxley ou Büchner. É difícil encontrar maior verbalismo do que, por exemplo, nos estudos em que Fausto Cardoso pretendeu consolidar cientificamente os fundamentos da sociologia por meio do monismo haeckeliano.
Toda essa onda vem quebrar n'Os sertões, típico exemplo da fusão, bem brasileira, de ciência mal digerida, ênfase oratória e intuições fulgurantes. Livro posto entre a literatura e a sociologia naturalista, Os sertões assinalam um fim e um começo: o fim do imperialismo literário, o começo da análise científica aplicada aos aspectos mais importantes da sociedade brasileira (no caso, as contradições contidas na diferença de cultura entre as regiões litorâneas e o interior).
A obra de Euclides da Cunha foi escrita num tempo em que já estavam bastante modificadas as condições de formação do nosso pensamento, com indícios vivos de superação da tirania jurídico-retórica. Mas, como vimos acima, a literatura se caracterizava, no início do século XX, por uma acentuada inconsciência desta transformação. Ajustava-se à superfície da vida burguesa, sem pressentir as novas exigências de sensibilidade e conhecimento, percebidas apenas por alguns.
Nesta ordem de considerações, o Modernismo representa um esforço brusco e feliz de reajustamento da cultura às condições sociais e ideológicas, que vinham, desde o fim da Monarquia, em lenta mudança, acelerada pelas fissuras que a Primeira Guerra Mundial abriu também aqui na estrutura social, econômica e política. A força do Modernismo reside na largueza com que se propôs encarar a nova situação, facilitando o desenvolvimento até então embrionário da sociologia, da história social, da etnografia, do folclore, da teoria educacional, da teoria política. Não é preciso lembrar a sincronia dos acontecimentos literários, políticos, educacionais, artísticos, para sugerir o poderoso impacto que os anos de 1920-1935 representam na sociedade e na ideologia do passado.
Mas, apesar da cultura intelectual se haver desenvolvido em ritmo acelerado desde o início do século; apesar da intensa divisão do trabalho intelectual, com o estabelecimento da vida científica, em escala apreciável; apesar do surto das ciências humanas a partir sobretudo de 1930; apesar de tudo isto, a literatura permaneceu em posição-chave. Vimos que alguns dos produtos mais excelentes dessa época no campo dos estudos sociais, como Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos, Raízes do Brasil, lhe são tributários, não apenas pelo estilo mas principalmente pelo ritmo da composição e a própria qualidade da interpretação. Por outro lado, o romance social e narrativo do decênio de 1930 segue a tradição naturalista de concorrência ao conhecimento científico; só que, neste caso, conhecimento mais sociológico e político, não obstante a ciência já haver, neste setor, alcançado e superado os recursos da ficção. Em todo o caso, os decênios de 1920 e de 1930 ficarão em nossa história intelectual como de harmoniosa convivência e troca de serviços entre literatura e estudos sociais.
Hoje, vemos que é necessário chamar Modernismo, no sentido amplo, ao movimento cultural brasileiro de entre as duas guerras, correspondente à fase em que a literatura, mantendo-se ainda muito larga no seu âmbito, coopera com os outros setores da vida intelectual no sentido da diferenciação das atribuições, de um lado; da criação de novos recursos expressivos e interpretativos, de outro.
A inteligência tomou finalmente consciência da presença das massas como elemento construtivo da sociedade; isto, não apenas pelo desenvolvimento de sugestões de ordem sociológica, folclórica, literária, mas sobretudo porque as novas condições da vida política e econômica pressupunham cada vez mais o advento das camadas populares. Pode-se dizer que houve um processo de convergência, segundo o qual a consciência popular amadurecia, ao mesmo tempo em que os intelectuais se iam tornando cientes dela. E este alargamento da inteligência em direção aos temas e problemas populares contribuiu poderosamente para criar condições de desenvolvimento das aspirações radicais, que tentariam orientar, dar forma, ou quando menos sentir a inquietação popular. O que se poderia, no melhor sentido, chamar de libertinagem espiritual do Modernismo contribuiu para o fermento de negação da ordem estabelecida, sem o qual não se desenvolvem a rebeldia social e o consequente radicalismo político. Aquilo que chamei o V Narod do decênio de 1930 apresenta, visto de hoje, uma configuração nitidamente renovadora, a despeito da atitude política e filosófica assumida ulteriormente pelos seus protagonistas. É preciso colocá-los no contexto daquele momento para compreender o sentido da sua ação. Um autor como Gilberto Freyre, que parece hoje um sociólogo conservador, significou então uma força poderosa de crítica social, com a desabusada liberdade das suas interpretações. A destruição dos tabus formais, a libertação do idioma literário, a paixão pelo dado folclórico, a busca do espírito popular, a irreverência como atitude: eis algumas contribuições do Modernismo que permitiriam a expressão simultânea da literatura interessada, do ensaio histórico-social, da poesia libertada.
Paralelamente, a ameaça aos valores tradicionais estimulou, no plano intelectual, manifestações que, embora tributárias em parte do Modernismo (como vimos), constituem sobretudo um prolongamento ou uma superação da linha espiritualista originada do Simbolismo e que hauriu no Modernismo alguns instrumentos formais, mas sobretudo o nacionalismo e a pesquisa do eu profundo. A poesia espiritualista, o romance de orientação problemática, o ensaio católico tradicionalista constituem modos, bastante diversos, e nem sempre ligados entre si, de reagir no sentido de uma preservação, ou reajustamento de valores sociais, políticos, ideológicos, ameaçados pelas manifestações modernistas. Diante da crise das velhas estruturas, e portanto dos valores tradicionais, a literatura reagiu com bastante sensibilidade — quer no sentido da reforma, contribuindo para a formação de uma atitude crítica, quer no da reação, intensificando o apelo daqueles valores.
Em nossos dias, estamos assistindo ao fim da literatura onívora, infiltrada como critério de valor nas várias atividades do pensamento. Assistimos, assim, ao fim da literatice tradicional, ou seja, da intromissão indevida da literatura; da literatura sem propósito. Em consequência, presenciamos também a formação de padrões literários mais puros, mais exigentes e voltados para a consideração de problemas estéticos, não mais sociais e históricos. É a maneira pela qual as letras reagiram à crescente divisão do trabalho intelectual, manifestado sobretudo no desenvolvimento das ciências da cultura, que vão permitindo elaborar, do país, um conhecimento especializado e que não reveste mais a forma literária.
Vista à luz da evolução literária, esta divisão do trabalho significa o aparecimento de um conflito no interior da literatura, na medida em que esta se vê atacada em campos que haviam sido até aqui (numas fases mais, noutras menos) seus campos preferenciais. Um Alencar ou um Domingos Olímpio eram, ao mesmo tempo, o Gilberto Freyre e o José Lins do Rego em seu tempo; a sua ficção adquiria significado de iniciação ao conhecimento da realidade do país. Mas hoje, os papéis sociais do romancista e do sociólogo já se diferenciaram, e a literatura deve retrair, se não a profundidade, certamente o âmbito da sua ambição. Daí as modernas tendências estetizantes aparecerem ao sociólogo e ao historiador da cultura como reação de defesa e ajustamento às novas condições da vida intelectual; uma delimitação de campo que, para o crítico, é principalmente uma tendência ao formalismo, e por vezes à gratuidade e ao solipsismo literário. Tanto para o crítico quanto para o estudioso da cultura e da sociedade, ela é, contudo, uma elaboração de novos meios expressivos e um desenvolvimento de nova consciência artesanal, que produzirão novas formas de expressão literária, mais ou menos ligadas à vida social, conforme os acontecimentos o solicitem.
Não há dúvida, porém, que o presente momento é de relativa perplexidade, manifestada pelo abuso de pesquisas formais, a queda na qualidade média da produção, a omissão da crítica militante. Se encararmos estes fatos de um ângulo sociológico, veremos que eles estão ligados — entre outras causas — à transformação do público e à transformação do grupo de escritores.
Vejamos o primeiro caso. Os analfabetos eram no Brasil, em 1890, cerca de 84%; em 1920 passaram a 75%; em 1940 eram 57%. A possibilidade de leitura aumentou, pois, consideravelmente. Muito mais, todavia, aumentou o número relativo de leitores, possibilitando a existência, sobretudo a partir de 1930, de numerosas casas editoras, que antes quase não existiam. Formaram-se então novos laços entre escritor e público, com uma tendência crescente para a redução dos laços que antes o prendiam aos grupos restritos de diletantes e "conhecedores". Mas este novo público, à medida que crescia, ia sendo rapidamente conquistado pelo grande desenvolvimento dos novos meios de comunicação. Viu-se então que no momento em que a literatura brasileira conseguia forjar uma certa tradição literária, criar um certo sistema expressivo que a ligava ao passado e abria caminhos para o futuro, — neste momento as tradições literárias começavam a não mais funcionar como estimulante.
Com efeito, as formas escritas de expressão entravam em relativa crise, ante a concorrência de meios expressivos novos, ou novamente reequipados, para nós, — como o rádio, o cinema, o teatro atual, as histórias em quadrinhos. Antes que a consolidação da instrução permitisse consolidar a difusão da literatura literária (por assim dizer), estes veículos possibilitaram, graças à palavra oral, à imagem, ao som (que superam aquilo que no texto escrito são limitações para quem não se enquadrou numa certa tradição), que um número sempre maior de pessoas participasse de maneira mais fácil dessa quota de sonho e de emoção que garantia o prestígio tradicional do livro. E para quem não se enquadrou numa certa tradição, o livro apresenta limitações que aquelas vias superam, diminuindo a exigência de concentração espiritual.
O grupo de escritores, aumentado e mais claramente diferenciado do conjunto das atividades intelectuais, reage ou reagirá de maneira diversa em face deste estado de coisas: ou fornecerá ao público o "retalho de vida", próximo à reportagem jornalística e radiofônica, que permitirá então concorrer com os outros meios comunicativos e assegurar a função de escritor; ou se retrairá, procurando assegurá-la por meio de um exagero da sua dignidade, da sua singularidade, e visando ao público restrito dos conhecedores. São dois perigos, e ambos se apresentam a cada passo nesta era de incertezas. O primeiro faria da literatura uma presa fácil da não-literatura, subordinando-a a desígnios políticos, morais, propagandísticos em geral. O segundo, separá-la-ia da vida e seus problemas, a que sempre, esteve ligada pelo seu passado, no Brasil. E a alternativa só se resolverá por uma redefinição das relações do escritor com o público, bem como por uma redefinição do papel específico do grupo de escritores em face dos novos valores de vida e de arte, que devem ser extraídos da substância do tempo presente.
Fonte:
CANDIDO, Antonio. Literatura e Sociedade. 9. ed. RJ: Ouro Sobre Azul, 2006.
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