sábado, 13 de agosto de 2011

Aparecido Raimundo de Souza (Celulares)


NO ÔNIBUS LOTADO, O CELULAR do passageiro, sentado ao lado da porta da saída, entoa a 9ª Sinfonia de Beethoven.

No terceiro toque o sujeito decide.

-Alô?Alô?Alô?...

Diante da mudez do aparelho, o cidadão espia, meio desconcertado, para um lado e outro, a fim de averiguar se alguém olha para ele. Ninguém parece preocupado, embora todas as atenções estejam discretamente voltadas para sua pessoa. Nova chamada. Dessa vez, espera uns segundos. Atende, ansioso.

-Alô?Alô?Droga!Alôooa?...

Nada.

Uma moça trajando conjunto verde - parece um abacate amarrado pelo meio - viaja logo atrás. O telefone dela, com o “Vamos fugir” também resolve se fazer presente. Ao atender, seu
rosto se ilumina num sorriso mágico.

- Tô chegando, amor...

Há uma pequena pausa.

- Você já está no ponto? Devo pintar aí dentro de uns cinco ou seis minutos...

Novo intervalo.

- Te amo. Beijos.

Um terceiro celular começa a encher com a Pantera Cor de Rosa. A colegial com o rosto abarrotado de espinhas emite uns gritinhos estridentes antes de iniciar a conversação.

- Rodriguinho, seu sem vergonha. Isso lá é hora de ligar?

A 9ª Sinfonia de Beethoven volta à baila e se mistura com a voz da adolescente.

-Alô?Alô?Alô?

Desta vez a ligação se completa. O passageiro ao lado da porta da saída consegue, finalmente, manter o diálogo com seu interlocutor.

- Legal, cara. Parabéns!

Gesticula e fala alto o suficiente para irritar um defunto. Sem um pingo de decência, age como se perto dele não houvesse uma leva de pessoas que merecesse, ao menos, respeito e educação.

-Até que enfim. Então você está indo pra Portugal? Faça uma boa viagem, meu amigo. O Pedro te manda um abraço. A Luíza um beijo, o Carlos um puxão de orelhas...

“Vamos fugir” volta a disparar no telefone da moça de verde. Ela prontamente atende:

-Amor, tenha um pouco de paciência. Que loucura! O quê? Fala mais alto...

De repente, a coisa toma proporções descomunais. A colegial pisa em ovos de tão indignada e irritada.

- Vá pro inferno, Rodriguinho. Não me racha a cara!

O sujeito no banco ao lado da porta parece um lunático.

- Seu avião sai a que horas? As 19?De onde? Eu...O quê?

Lado esquerdo do coletivo, um casal assiste a tudo com os olhos arregalados. A certa altura, o rapaz comenta, num cochicho:

- É mole ou quer mais?

-As pessoas – observa a moça igualmente aos murmúrios - perderam o senso do ridículo. A sensatez foi pro brejo. Ninguém respeita mais a individualidade.

-Virou febre esse negócio. Todo mundo agora tem celular. Li, ontem, no jornal, que estão à venda, no mercado, aparelhos celulares de última geração para cachorros.

Risos.

- Fala sério? Qual o quê! Isso é piada!
- Não é não. Agora, além de hospitais, hotéis e restaurantes, os cachorros poderão contar com mais essa vantagem. Celular para cães e gatos.

- Se for verdade o que está me dizendo, minha nossa. Será o cúmulo do absurdo. A que ponto chegamos. Olhe só para essa gente. Parece um bando de alucinados. Ninguém se entende.

Um homenzarrão puxa a campainha. Pessoas se levantam. Outras tantas tomam posição para apear.

- Vá se danar, Ro...

- Olhe, se lá em Portugal não tiver mulher que sirva, volta e leva uma brasileira. As mais bonitas do mundo estão aqui, meu chapa...

- Rodriguinho, eu pensava, até agora, que você fosse do conceito. Me enganei redondamente. Vá pro inferno, ta ligado?

A moça de verde pula do banco ao ver o rapaz que a espera, na calçada defronte à porta de acesso de uma loja de departamentos. Passa a mão no telefone e disca um número da memória.

- Ei, amor, olha euzinha aqui. Cheguei. Já me enxergou? Estou te vendo. Me dê adeusinho!

Nessa hora, então...

-A mãe te manda umabraço. Vá com Deus. Chegando em Lisboa, ligue... Entendeu? Ligue, ligue, ligue, surdo!...

No mesmo clima.

-Rodriguinho, ô, sem noção, o bagulho por aqui tá tenso. Meu namorado não vai gostar. Com certeza levará um “lero” contigo, e, depois, com certeza, te comerá na porrada, meu...

A moça de verde, afoita:

- Com licença, meu senhor... Com licença...

-Calma, senhorita. Vou ficar aqui também. Deixe ao menos o motorista parar e liberar a traseira.

-... De Lisboa? Que droga!!

-... Ro, Ro, cuidado com a tribo, malandro. Quer saber? Estou injuriada. Vá se danar de verde e amarelo...

-...Amor, amor, estou descendo...

Sobra o casal acomodado no lado esquerdo, rindo da galera a mais não poder.

– Odeio celular – pondera a jovem, depois que todos saem - parece que esses trocinhos controlam nossa vida. Aliás, dominam, vivem no nosso pé. Jogaram, definitivamente, para o ralo a nossa intimidade.

- Estou com você – completa o rapaz –O negocio é bom, mas, em certas horas, se torna deselegante, cai no vulgar. Tira a privacidade. Imagine, daqui a algum tempo, como lhe falei, ainda há pouco, a gente cruzando na rua, com essas madames, metidas à besta, atendendo ao telefone. “É pra você, Fifizinha!”. E o animal, posudo: “– Agora não posso, estou ocupada, lendo Os Melhores Contos de Cães e Gatos do meu amigo Flavio Moreira da Costa. Peça para me ligar mais tarde”.

A jovem se abre num sorriso contagiante. Pensa em responder alguma coisa. Entretanto, seu celular estronda Tchaikovsky.

- Desculpe. Meu marido...

Pede licença, baixa a cabeça. Sem tirar o aparelho do ouvido se acomoda num banco lá na frente, ao lado do cobrador.

Fonte:
Aparecido Raimundo de Souza. A Outra Perna do Saci. São Paulo: Ed. Sucesso, 2009.

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