Enquanto isso, os meninos lá na Lua contavam a São Jorge como eram as coisas em Saturno.
— Gostosura maior não pode haver! — dizia Narizinho. — A gente boiava, boiava como peixe na lagoa — e aquele saturnino de geléia ali a conversar como se fosse um amigo velho. Eles têm uns crocotós que saem de dentro da gelatina — são os órgãos lá deles.
São Jorge não sabia o significado de “crocotó” e a menina teve de explicar que era uma das melhores palavras do vocabulário da boneca.
— A Emília gosta de usar termos de sua invenção e às vezes saem coisas bem boas. Esse crocotó é ótimo.
— Mas afinal de contas que é crocotó? — indagou o santo.
— Crocotó é uma coisa que a gente não sabe bem o que é. Crocotó é tudo que sai para fora de qualquer coisa lisa. O seu nariz, por exemplo, é um crocotó da sua cara — mas como sabemos que nariz é nariz, não dizemos crocotó. Mas se nunca tivéssemos visto o seu nariz, nem soubéssemos o que é nariz, então poderíamos dizer que o seu nariz era um crocotó... São Jorge franziu a testa no esforço de entender aquilo — e se não entendeu fingiu que entendeu e passou adiante. Pôs-se a contar a história do dragão, nos tempos da sua mocidade na Terra. Falou do rei da Líbia e da bela princesa que o dragão quase havia devorado.
— Mas apareci de repente — disse ele — e dei um grande brado: “Sus! Sus!” O dragão, que já estava com a boca aberta e a língua de fora, entreparou e virou a horrenda cabeça para meu lado — e eu então, zás! Fisguei-o com a lança.
— Esta mesma? — quis saber Emília, apontando para a lança no colo do santo.
— Sim — respondeu São Jorge. — Fisguei-o, e ele, então...
Foi exatamente nesse “então” que o berro de Dona Benta chegou até lá — “Pedrinho! Narizinho! Emília! Desçam já daí, cambada!”
O santo capadócio interrompeu a frase e todos puseram-se de ouvido alerta.
— Lá está vovó nos chamando! — disse Pedrinho. — Como será que descobriu que estamos aqui?
— E temos de voltar já, numa voada — acrescentou a menina. — Mas... e o Doutor Livingstone? — Como deixá-lo perdido por estas imensidades infinitas?...
Pedrinho andava com uma hipótese na cabeça.
— Para mim — disse ele — o Doutor Livingstone está girando em redor da Lua como um satélite. Está na zona neutra — na zona em que a força de atração da Terra equilibra-se com a força de atração da Lua, e por causa disso não cai nem na Terra nem na Lua — fica girando eternamente em redor da Lua. Temos de passar por essa zona e agarrá-lo por uma perna.
Mas como arrancar o Doutor Livingstone de sua órbita? Era um problema dos mais difíceis. No vôo para a Terra eles iriam cortar a órbita do novo satélite da Lua, isso era evidente: mas o satélite podia estar muito distante do ponto da órbita que eles cortariam. Como fazer para cortar a órbita exatamente no ponto em que estivesse o satélite-Livingstone?
— Só fazendo cálculos astronômicos — lembrou a menina. — Os astrônomos descobrem no céu tudo quanto querem por meio de cálculos. Lembra-se do que vovó contou do tal astrônomo Halley?
São Jorge quis saber o que era. Narizinho tentou explicar.
— Pois esse Halley previu que um grande cometa ia passar pelo nosso céu em... em... em que ano mesmo, Pedrinho?
Pedrinho, que sabia aquilo na ponta da língua, gritou:
— Em 1.758! Halley previu isso por meio de cálculos. Mas não pôde ver se seus cálculos deram certo, porque morreu em 1.742.
São Jorge estava de boca aberta, admirado da ciência do menino.
— Pois bem — continuou Pedrinho — dezessete anos depois da morte de Halley o tal cometa apareceu de novo, exatinho no ponto indicado e no ano que ele disse — 1.758. Só que em vez de aparecer em meados de abril, como Halley previra, apareceu a 12 de março — menos de um mês de diferença. Era um errinho insignificante para um cometa que só aparece de setenta e tantos em setenta e tantos anos.
— Mas isso é estupendo! — exclamou São Jorge sacudindo a lança no ar de tanto entusiasmo. — Prever por meio de cálculos que um cometa vai aparecer em tal ponto do céu, em tal mês e tal ano, parece-me o assombro dos assombros!...
— Pois é para ver! — tornou Pedrinho. — A matemática é o que há de batatal, como diz a Emília, e esse Halley era batatalino na matemática. Depois de 1.758 outros astrônomos calcularam que o cometa ia aparecer de novo em 1.834 e a 24 de maio de 1.910.
— E apareceu?
— Apareceu, sim. Vovó o viu muito bem quando apareceu em 1.910, no dia 6 de maio. O erro foi ainda menor — só de dezoito dias. Batatalífero, não?
São Jorge ficava tonto com as batatalidades daquele menino...
— Pois é isso, Pedrinho — disse a menina. — Você também é astrônomo. Faça os cálculos e marque o momento e o ponto em que o Doutor Livingstone vai passar, e nós cheiraremos o pó nesse momento exato.
A boca de São Jorge não se fechava. Aquelas crianças falavam que nem um livro aberto...
Mas Pedrinho, com medo de errar nos cálculos e desmoralizar a astronomia, veio com uma desculpa.
— Não posso fazer os cálculos porque não tenho papel nem lápis.
— Isso é o de menos! — gritou Emília. — Papel eu tenho aqui no bolso — o papelzinho da bala puxa-puxa, e lápis Tia Nastácia tem no fogão — um pedacinho de carvão serve — e correu a buscar o “lápis” depois de entregar ao menino o papel da bala.
O pequeno Flammarion não teve remédio senão fazer todos os cálculos — e foi com base nesses cálculos que marcou o instante da partida, dizendo:
— Neste momento exato o Doutor Livingstone deve estar passando no ponto X de sua órbita. Partiremos então daqui e de passagem o agarraremos por uma perna.
E assim foi. Depois das comoventes despedidas do santo, o qual deu um beijo na Emília e outro no anjinho, os aventureiros celestes sorveram o pó de pirlimpimpim na horinha indicada pelas contas do jovem Flammarion.
Fiunnn!...
Tudo deu certissimamente certo. Eles cruzaram a órbita do satélite-Livingstone no momento exato em que o sabugo de cartola ia passando. Pedrinho agarrou-o pelo pé e lá se foram todos para a Terra.
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Continua … XXII – O Café dos Astronomos
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa
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