segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Carolina Ramos (Lurdeca)


Chegou ao novo emprego como um furacão! Pressionou a campainha da área de serviço e, porta aberta, sem esperar pela receptividade, foi logo se identificando.

- Bom dia. Eu sou Maria de Lurdes.

Magra, ágil, descontraída, mostrando disposição para o trabalho, a nova faxineira foi recebida com alívio.

Antes mesmo de qualquer ordem, foi entrando e depositando seus pertences no banheiro central, em desprezo ao que lhe fôra reservado.

Ante o olhar atônito da patroa, acrescentou:

- Já gostei de você! Vou ficar por aqui muito tempo!

Aturdida pela desenvoltura da recém chegada e principalmente pela intimidade do tratamento, a jovem guardou a pose de patroa no bolso do avental, retribuindo na mesma moeda.

- Também gostei de você, Maria de Lurdes.

Um bom começo.

O breve instante, do quebra jejum, foi o bastante para que Maria de Lurdes trocasse informações e saísse inteirada da vida da família que a recebia. Também, foi só. Ao lançar-se à tarefa, fechou-se. Era, apenas, mãos e pés, na mais plena atividade, movidos a pilha ou quem sabe, a corrente elétrica. Com ânimo, subiu pelas paredes - com o auxílio de escada, naturalmente - retirando quadros e tudo o mais que as decorava. O aspirador, puxado pela possante locomotiva humana, arrastou-se pelas dependências, engolindo pó acumulado. As vidraças mostraram um dia mais claro e os quadros voltaram aos lugares, deixando a desejar quanto ao prumo. Lá pelo meio da tarde, metade do apartamento estava um brinco! O restante foi relegado para a semana vindoura, que braços fortes não são de ferro!

De Lurdes continuou voltando, regularmente, toda quinta-feira, como um ciclone sugador de impurezas, levando do além do estipulado pela faxina, roupas, mantimentos, frutas, sapatos, etc., prova evidente do perfeito entrosamento do binômio patroa e empregada.

Com exuberante simpatia, a nova auxiliar conquistou até mesmo as boas graças da Tetê, caçulinha da família, nem sempre aberta à comunicação. Uma simples frase fizera o milagre:

– Você é uma menina linda, sabia?
– Sabia, sim! – resposta pronta, sem auto-censura, da garotinha, que se dignou desviar da TV, por instantes, os olhos deslumbrados pelos monstros apocalípticos, importados do Japão. Num rasgo de generosidade ou inversão de valores, a frase foi completada:

– Você também é linda!

Como exultara De Lurdes, ante a surpresa daquela afirmação! Em toda a sua laboriosa vida, ninguém, jamais, a chamaria de linda e muito menos qualquer espelho, por maior boa vontade tivesse!

Ficaram amigas, Lurdes e Tetê. A tagarelice desta, quebrou o mutismo da outra.

– Menina esperta essa! Muito esperta! Quatro anos? Benza Deus! Ela me bota no chinelo! – fôra a vez da mãe de Tetê exultar.

Dois meses de vai-vens semanais e patroa e criada só trocaram amabilidades, satisfeitas uma com a outra. Até que, um dia, inexplicavelmente, De Lurdes não voltou. Nem telefonou, para justificar a falta. Sumiu em definitivo.

Foi então que, reassumindo as tarefas domésticas, Jurema, a jovem patroa, começou a notar, coisas também desaparecidas. Eram cobertores, roupas, enlatados de estoque, talheres, sabonetes, etc. etc. O beliscão da desconfiança levou-a direto ao cofre de jóias. Praticamente vazio! Não que contivesse, anteriormente, nada de grande valia mas, o peso estimativo era mais do que suficiente para desequilibrar a boa-fé da moça. Jurema sentiu o espinho da desconfiança arranhar-lhe a pele. Ante a filha, indagou alarmada:

– E a sua pulseirinha de ouro, Tetê… onde está?!

A resposta da garota foi reveladora:

– O fecho não tava bom. A Lurdes levou ela, pra consertar.

Se a dúvida já se instalara, a certeza roubou-lhe o lugar.

De Lurdes, inapelavelmente, estava por detrás de todas as ausências constatadas. Como pudera fazer isso?! Como confiar em alguém, dali para frente?!

Embora magoada, a moça sentiu-se gelar quando ouviu, ao telefone, a voz inquiridora:

– Dona Jurema?
– Sim…
– Quem fala é do delegado de polícia, Heitor Lopes. A senhora conhece Maria de Lurdes da Silva?
– Conheço, sim. Foi minha faxineira… está sumida há tres meses, mais ou menos.
– Ela está presa. Sua faxineira é vulgarmente conhecida por Lurdeca, ladra reincidente, vigarista das maiores!

Jurema emudeceu, perplexa!

– A senhora tem alguma queixa? Há falta de provas. Se puder nos ajudar, será muito bom. Ou… logo ela estará livre para novas falcatruas.

Os olhos vivos, as mãos ligeiras da ex-empregada vieram chantagear a mente da patroa. As histórias sobre a família, a luta constante para a manutenção dos filhos sem pai… e outras lembranças pungentes, comoveram o coração sensível da moça.

A resposta veio rápida, sem vacilações:

– Não, Doutor… Eu não tenho queixa alguma da Lurdes. Trabalhou aqui por dois meses, e só posso dizer que foi ótima faxineira, respeitosa e… honesta. Sinto não poder ajudá-lo.

Ao depor o fone, Jurema sentiu-se algo estranha, mas, intimamente, não se arrependia de ter mentido.

Uma semana depois, gratificada, descobriu entre a folhagem do jardim, as jóias desaparecidas, embrulhadas num plástico. Nem um bilhete, nem palavra qualquer que identificasse o remetente.

E o caso morreria anônimo se, entre as jóias recuperadas, não estivesse a pulseirinha de ouro da Tetê…

Fonte:
RAMOS, Carolina. Interlúdio: contos. São Paulo: EditorAção, 1993.
Imagem = O Mascate

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