quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Machado de Assis (Badaladas – Capítulos dos Chapéus – 2 de fevereiro de 1873)

Hipocrate dit . . . que nous nous couvrions tous deux.
Geronte
Hipocrate dit cela?
Sganarelle
Oui.
Geronte
Dans son chapitre. . . dês chapeaux.
Molière: Le médecin malgré lui.
Act. II, sc. II.


Até sábado passado, às 11 horas menos cinco minutos, o chapéu era uma criatura ilibada. Não constava na política um só crime do chapéu. O júri não via comparecer o chapéu à barra do seu tribunal. As rebeliões faziam-se muitas vezes com o concurso das bengalas, mas sem intervenção do chapéu. O chapéu era austero; pode-se dizer que era o Sócrates do vestuário.

O que ele fazia era obedecer a Hipócrates, segundo Sganarello; cobria o homem. Não tinha outro ofício. Cortejava os conhecidos; ia na mão, quando o mortal, seu dono, entrava na igreja ; pendia quietamente à porta das fábricas.

Sua neutralidade na política era tal que os homens viravam a casaca, mas não consta nunca que mudassem o chapéu. Ele servia a todos com a mesma solicitude. Era desdém ou servilismo? Não sei; mas a verdade é que era assim.

Mas chegou o dia de sábado 25, caiu a noite, tocou o sino das dez, os relógios marcaram 15, 30, 55 minutos, momento fatal, em que o chapéu se afundou no abismo de todas as iniqüidades.

Foi o caso.

Os espectadores do Fênix gostam da atriz Jesuína, no que lhes acho razão, porque nada perdeu do talento de outrora.

Houve uma ocasião em que o entusiasmo subiu de ponto: foi às 10 horas e 55 minutos. Trovejavam as palmas e os bravos, e então (ó assombro!) dez ou doze chapéus caíram aos pés da atriz.

Dizer o pasmo, a indignação, a cólera muda que se desenhou em todos os semblantes seria coisa digna da pena de um Tácito ou da lira de um Homero — à escolha. Uns olharam para o teto, outros para o chão, outros para os outros, e todos pareciam pedir uma reparação à moral ultrajada, um castigo a insurreição do chapéu.

Se não quando, quatro soldados correm até a porta da caixa, e os dez ou doze delinqüentes (aqui sou obrigado a referir-me a informações) são conduzidos ao xadrez, onde tiveram tempo de refletir nas desvantagens de ir meter o nariz — quero dizer, a aba —onde não eram chamados.

Ora, eu apelo para todas as almas bem nascidas, e intimo-lhes que me respondam se esta correção do chapéu não equivale à passagem do Granico ou, quando menos, à invenção do molliscorium.

Na antiguidade houve igual situação. Dracon (donde fizemos draconiano) apresentava ao povo de Atenas umas leis novas, e quando menos esperava recebeu na cara todos os chapéus do congresso popular. Um espírito esclarecido, como eu imagino que e o meu leitor, liga naturalmente o ato de Atenas com o do Rio de Janeiro. Não digo que haja du Dracon dans la Jesuine; mas o povo fluminense é muita vez consoante do ateniense, e pode amanhã acontecer a um legislador o que hoje acontece a uma simples atriz.

Portanto,

V’la ce qu'c'est !
C'est bien fait !
Fallait pas qu'y aille ! (bis).

Simples observações aos pios franciscanos.

O governo pediu aos franciscanos que recebessem no seu convento alguns enfermos; e os franciscanos perguntaram-lhe a que lhe soube o almoço, resposta tão concisa quão incisiva, e que eu quisera ver gravada em letras de bronze como exemplo a futuros governos e estímulo a vindouros franciscanos.

Não posso afiançar se a resposta foi literalmente aquela; mas, se não foram as palavras, foi o sentido, visto que o efeito da resposta não passou de deixar os franciscanos naquela doce e deliciosa paz d'alma e de corpo, em que vão, arrastando este pesado exílio do século.

Há que diga que esta recusa dos franciscanos não prova amor do próximo nem de Deus. É verdade; mas não há só esses dois amores debaixo do sol. Há outra coisa, quase tão sublime como Deus, e muito mais simpática que o próximo: é a pele. Os franciscanos amam a pele e fazem bem.

Meia dúzia de doentes no seu convento podiam dar-lhes o reino do céu, mas podiam também tirar-lhes o deste mundo, e na opinião dos franciscanos, se o reino do céu é bom, o morro de Santo Antonio não é mau, e sem de todo renunciar a ir gozar lá em cima, desejam ainda por algum tempo engordar cá embaixo.

A conclusão, portanto, é que os franciscanos trancaram a porta à febre amarela, e que a pele de suas paternidades continua a esticar, sem embargo da opinião que o governo, o povo e este seu criado possamos fazer deles.

Eu, às vezes, quando não tenho que fazer, entro a cogitar no que fazem os frades. É positivo que não gastam todo o tempo a rezar; também não me parece verossímil que passam todo o tempo a ler ou dormir. Um Mont'Alverne teria muito em que ocupar o tempo; mas os monges daquela casta não vêm aos cardumes; são raros.

Quando investigo este assunto, lembro-me se passam as horas do dia a fazer charadas ou a passear em cavalinhos de pau. Outras vezes imagino que jogam cabra-cega. Já uma vez acreditei que faziam calemburgos.

E não digo isto por censura; porque se cá fora a vida não chega a netos, não é crível que chegue a netos no claustro. Alguma coisa é preciso fazer para matar o tempo.

S. Paulo, que fabricava barracas de campanha, andava pregando o evangelho, e ao mesmo tempo trabalhando no seu ofício. Tinha um ofício. O ofício do frade é ser frade, coisa hoje equivalente a uma farta aposentadoria. Nem S. Paulo trabalhou para outra coisa, senão para avolumar o cachaço do frade, arredondar-lhe a barriga, florescer-lhe as rosas do rosto. Não trabalhou para que ele morresse de febre amarela. Logo, fizeram muito bem os pios franciscanos.

A COZINHEIRA CELESTINA

Agora que cada médico apresenta o seu remédio contra a febre amarela, não é fora de propósito mencionar um que a cozinheira Celestina descobriu.

O qual foi exposto do seguinte modo:

— Para a febre amarela não há como refrescos e limonadas.

— Limonadas e refrescos? Disse o moleque.

— Sim, senhor; não há como isso. Em 1850 a filha do major B., onde eu estava, caiu com a febre amarela; deram-lhe logo uma limonada, que se foi repetindo de hora em hora. Não tomou outra coisa até o dia em que morreu.

A PAREDE DOS CONDUTORES

Mal sabe o leitor o que eu admiro em toda a história da parede que outro dia fizeram os condutores e cocheiros dos bonds.

O que mais me admirou foi (declaração da parte oficial) o estarem os chefes da revolta, às 6 horas da manhã. . . bêbedos!

Admira realmente que a empresa tolere beberrões de tal ordem. Bêbedos às 6 horas da manhã! O que não será ao meio-dia?

Quem os vê no seu ofício durante o dia mal pensa que cada um deles esta já com duas ou três garrafas no bucho. Isso é por força algum segredo de Ayer. Ou então há criaturas que não se embebedam para todos, mas para alguns, ao contrário do sol, que, como sabemos, lucet omnibus.

Humildemente peso ao varonil Greenough haja por despedir esses “embriagados de
Efraim”, não só para evitar outras paredes, mas, sobretudo para resguardar a pele dos contribuintes, seus criados.

Dr. Semana.

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Nota:
Dr. Semana é o pseudonimo que Machado usava nestas cronicas

Fonte:
Obra Completa, Machado de Assis, Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson,1938. Publicado originalmente na. Semana Ilustrada, Rio de Janeiro, de 22/10/1871 a 02/02/1873.

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