sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Miguel Sanches Neto (A Mulher e a Poeta)

Em sua obra, a angolana Paula Tavares dedica atenção aos ritos da África

Historiadora e prosadora, Ana Paula Tavares (Huíla, Angola, 1952) é também poeta e assume nesta última área o nome artístico de Paula Tavares, talvez para marcar uma diferença, insinuando ao leitor que são duas mulheres distintas em uma só. Este pequeno jogo aponta para questões mais profundas em sua produção poética, publicada na íntegra pela primeira vez no Brasil: Amargos como os Frutos: Poesia Reunida.

O seu território é o lirismo amoroso, em variações fragmentárias dos cantos de Sulamita, agora ambientados na África, o que lhe dá uma originalidade muito grande. Seu verbo vai deixando o espaço mais literário de Ritos de Passagem (1985), em que as construções poéticas são preponderantes, para incorporar progressivamente as vozes ancestrais. Mesmo neste seu primeiro livro, encontramos os frutos da terra, as temáticas tribais e uma presença modificante do corpo feminino, embora estes elementos tão caros à autora apareçam sob um olhar, digamos, mais estético, visível na própria forma dos poemas, com uma disposição gráfica que dialoga com a modernidade.

De O Lago da Lua (1999) até a última coletânea, Como Veias Finas na Terra (2010), o elemento étnico se faz mais denso e passamos a uma poesia que pertence, como linguagem, à poeta e, como voz, às mulheres africanas em geral. É neste sentido que a duplicidade se manifesta no interior da obra, conjugando as duas autoras nomeadas, a Ana Paula historiadora e a Paula poeta, uma escritora com um olhar focado nos produtos da literatura e outro nas tradições populares da África.

A sua poesia é, em inúmeras passagens, ritualística; ou seja, existe em consonância com uma concepção antropológica da palavra. Nenhuma imagem talvez seja mais forte do que a do sangue, não um sangue vertido em lutas, em guerras, ou, para dizer de outra forma, nos campos de combate essencialmente masculinos, mas o sangue da fêmea:

“No lago branco da lua / lavei meu primeiro sangue / Ao lago branco da lua / voltaria cada mês / para lavar / meu sangue eterno / a cada lua // No lago branco da lua / misturei meu sangue e barro branco...” (p.73)

O barro do Gênese e o sangue são metáforas da mesma ordem: da fertilização, dos inícios, da continuidade da vida. Esta vida de que fala Paula Tavares é dolorosa por conta das condições históricas de seu povo, tem um travo amargo, deixa marcas, suja a pessoa, daí a busca da água que tudo limpa.

As suas vozes femininas, tão doídas, acabam representando o próprio país. Esta equivalência faz com que as trajetórias das mulheres sejam uma metonímia da África. Como se a mulher fosse a pátria mais enraizada, por estar mais tragicamente vinculada à terra. Uma das tradições dramatizadas nestas vozes é a da jovem dada em casamento em troca de bois, numa relação de contiguidade da mulher e do animal sagrado. Daí vem a sua força telúrica, que a autora explora cifrando em um código poético: “Trouxe o canto / Não é claro, mãe / Mas tem os pássaros certos / Para seguir a queda dos dias / Entre o meu tempo e o teu” (p.168). Entre duas gerações, duas histórias femininas, a da terra e a da cultura, nasce esta poesia sob o signo do duplo.

Se a poeta diz que de onde ela vem, deste país mítico e histórico, “empresta-se o corpo à casa” (p.197), numa visão da mulher como morada, como eixo do mundo, podemos dizer que a sua poesia, marcada por uma denominação de origem, faz do corpo linguagem, onde se abrigam os ancestrais africanos e a cultura europeia adquirida, ponto de encontro do eu e do outro.

Serviço:
Amargos como os Frutos: Poesia Reunida, de Paula Tavares. Editora Pallas, 288 págs. Poemas.

Fonte:
Gazeta do Povo.  Caderno G.  11 março 2012 (texto e imagem)

Nenhum comentário: