sexta-feira, 4 de julho de 2008

Luiz Fernando Emediato (Os Herdeiros do Nada)

Estão aí pelas ruas,
tristes e solitários poetas
da sarjeta

Em 1977, um ano antes de abandonar Minas Gerais em troca da cidadania paulistana, conheci na avenida Afonso Pena, em Belo Horizonte, um músico de rua que se chamava Casquinha. O povo o tinha como mendigo, mas ele fazia questão de esclarecer que não pedia e jamais pediria esmolas: tocava sua flauta. Quem quisesse pagar pelo espetáculo era só deixar cair algumas moedas no seu velho e furado chapéu. Gordo, meio cego, diabético e neurótico, Casquinha só desaparecia do seu conhecido ponto na avenida quando a Saúde Pública o recolhia à força.

Tocava bem, e não eram poucos os que ficavam ali admirando-o, e quando parava explodiam aplausos. Um diretor de teatro deu-lhe emprego: de terça a domingo tocava flauta num canto do palco, enquanto se desenrolava, ao longo de duas horas, uma tragédia doméstica envolvendo duas mulheres que se odiavam.

Atração especial, Casquinha tornou-se famoso na imprensa e acabou se apresentando nos programas do Chacrinha e do Sílvio Santos, como uma curiosidade. Quis então ser artista, mas riram dele e o expulsaram do estúdio.

Pobre Casquinha. Em 1979, já vivendo em São Paulo, encontrei-o na praça Patriarca, cego de um olho, cada vez mais gordo, doente.

Não me reconheceu. Voz fraca, quase surdo, já não tocava tão bem. Recusava-se ainda a ser chamado de mendigo, mas era o que era. Poucos paravam, agora, para admirar-lhe a arte, que ele procurava sofisticar tocando também um tambor, com os pés, enquanto agitava chocalhos amarrados nos cotovelos. No alto da cabeça, prendera uma latinha com grãos de milho. E, enquanto soprava a flauta, fumava. Pobre coitado. Pobre Casquinha. Decadente, enquanto músico, procurava chamar a atenção fazendo malabarismos. Assim se apresentou num programa de calouros. Foi vaiado. Estava no fim.

Frágil e ingênuo Casquinha. Eu o vi uma vez mais, nem me lembro quando. Depois sumiu. Pode ter morrido por aí, numa noite gelada, talvez tenha sido enterrado como indigente – quem sabe? Quando vou a Belo Horizonte, ando pela avenida Afonso Pena, e quando ouço som de flauta corro para ver se o encontro. Inútil: outros Casquinhas, menos criativos, mas da mesma forma desgraçados, deserdados, espalham-se por ali, recolhendo migalhas.

Um dia, passeando pelo centro da cidade, vi diante do Mappin uma criancinha gorda, cega e suja. Sentava-se no chão, de pernas abertas, olhinhos fechados, e movia-se de um lado para o outro ao som da música que extraía, serenamente – mas com que tristeza, meu Deus! – de um pequeno acordeon. Como se parecia com o velho Casquinha! Devia ter uns onze ou doze anos, mas o rosto sofrido aparentava mais. Enquanto tocava, entretanto, parecia fora do mundo, em êxtase.

E ninguém parava para ouvi-lo.

Por todos os lados havia mendigos, alguns também vendendo dignamente sua música barata, mas a maioria só encostada por ali, exibindo sua miséria, seus lamentos, sua ferida, sua inevitável solidão. No meio deles, alguns loucos e alguns – poucos – mendigos falsos, tentando arrancar dinheiro de cidadãos ingênuos.

A repórter Alba Carvalho entrevistou um desses mendigos, ali mesmo no centro. – e a história, terrível, cortava o coração. Era – tinha sido – um jornalista. Um jornalista mineiro, culto, 45 anos. Afirmava ter trabalhado nos Diários Associados, mas estava, naquele instante, relegado à mais subumana condição: a de pedinte.

Voz firme, olhar duro e acusador, ele enfrentou a câmara, suportando dignamente a condição de entrevistado, ele que um dia fora entrevistador.

Eram ainda os tempos da Velha República. Chegou a Nova, com tanta esperança, e eu me perguntei: onde andará Casquinha? Estará morto, toca flauta em Belo Horizonte, em Itaquera, Fortaleza, Manaus? Aquele colega caído em desgraça, terá recuperado sua dignidade? O menino cego do Mappin, que futuro o aguarda? Eu pergunto e ninguém responde. Nas praças e ruas e campos deste país tão grande e tão rico, homens frágeis e outros, que foram fortes, dividem com as crianças abandonadas o mesmo e triste destino dos deserdados.

Pois tudo continua igual.
24-04-2008
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Sobre o autor
Luiz Fernando Emediato
Jornalista e escritor vencedor de vários prêmios literários, e dos prêmios Esso de Jornalismo e Rei de Espanha de Jornalismo Internacional. Criador do Caderno 2 de O Estado de S. Paulo e responsável pela introdução do "âncora" na televisão brasileira. Autor de "Trevas no Paraíso", "Geração Abandonada", entre outros livros. É editor da Geração Editorial.
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Fonte
Crônica retirada do livro A grande ilusão públicado em 1992
http://www.geracaobooks.com.br/colunistas/colunista.php?id=448

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