quinta-feira, 25 de março de 2010

Bueno de Rivera (Antologia Poética)


A CABEÇA

O mágico equilíbrio
da cabeça no espaço!
Meus olhos me fitam,
se espraiam no corpo,
mas roupas, botões,
nos longos sapatos.
Neus olhos na febre
me buscam, não estou.
Mas vejo a cabeça
tão vaga, distante,
tão minha, tão próxima!
O universo em síntese
no pescoço-base.

Ai! como sofrem
os meus pensamentos!
O suor nas pálpebras
ou na testa infinita
de que fonte virá?
Da fonte das lágrimas?
Dança a cabeça,
agita-se em sonhos
mas cai desolada

nas mãos inocentes.
E cabeças há tantas
expostas ao luxo,
brinquedo de fígaro;
o pente nas ondas,
o mar de loções,
tesouras voando
como aves marinhas
nos claros espelhos.

Tão longe vivo,
tão distante vou,
que o resto é apenas
abstração... -
A gravata louca,
as meias de cores,
as solas macias
tão simples enfeites.
Meus olhos aflitos
me buscam, não estou.
Irmãos, eu vos digo,
Meu corpo não há.

Apenas a cabeça
como estranha lâmpada
na imensa torre
vela os tormentos.
Sinto a tragédia
do irmão do mundo.
Triste mensagem
chega, abafada
pelos gemidos
de alguém pedindo
pão e calor.

Cabeça inquieta,
mundo pequeno
em vão pousado
na paina quente.
Insônia amarga
que espera ansiosa
a luz tranqüila
da aurora próxima.

O beijo amoroso
da mãe ou da amiga
pergunta em silêncio.
A cabeça, no entanto,
não pode dizer.
Na sombra do quarto
acende-se em febre
no doce delírio
de um mundo melhor.

NOTURNO MINEIRO

Boa Viagem
dos velhos tempos de Minas.

0 alvo carregador
põe as lembranças no ombro,
recebe o abraço e a gorjeta.
0 chefe apita com força.
Não há lenços, há. camisas
rôtas, meninos e fraldas
acenando nos quintais.

As estrelas da vidraça
e a cara do itinerante
dançam nos óculos
do bacharel disponível.

Na luz morna do carro
a memória acende o olho.
Sinto a primeira viagem,
o trem do oeste, as vacas
descendo a serra, a fazenda
com gente amável no alpendre
e as lavadeiras no vale
como aves mansas pousadas
no córrego claro.

Congonhas do Campo. A cabeça
na janela espia o templo.
Os profetas do Aleijadinho
viajam na segunda classe
mas os museus não percebem.

A madrugada no túnel
acorda os heróis.
A tarde traz a fumaça do
mar. Um homem sozinho.
O mineiro pensa na vida
sentado no cais.

POEMA SIMPLES PARA O ÓRFÃO

Chora. A tua mãe levou nos olhos mortos
a tua madrugada.

Sentirás saudades do carinho perdido
e olharás com tristeza o crepúsculo
sobre o mundo vazio.

Tua mãe é tua infância,
não volta mais.

O MICROSCÓPIO

O olho no microscópio
vê o outro lado, é solene
sondando o indefinível.

Dramática a paciência
do olho através da lente,
buscando o mundo na lâmina.

A tosse espera a sentença,
o Ieito aguarda a resposta.
0 tísico pensa na morte.

O silencio é puro e o frio envolve
o laboratório.
Os frascos tremem de susto.

0 infinito dos germes
reflete no olho imenso
que pousa na objetiva.

0 avental se levanta.
Os dedos inconscientes
escrevem a palavra ríspida.

0 resultado terrível
entra nos óculos do medico
e ele diz: positivo.

0 doente tira o lenço.
Aperta a mulher e o filho,
chora no ombro da esposa.

Imagina a reclusão
no sanatório, a saudade
e o vento no quarto branco.

olha o papel: positivo.
Cresce a palavra com a tosse.
A febre queima a esperança.

0 microscopista, no entanto,
conta anedotas no bar.
Esta alheio e feliz.

Não sabe que o olho esquerdo
ditou a sentença e a morte.
Paga o café e caminha.

MANHÃ

O pão entre as flores de janela,
a vasilha de leite sob o orvalho.
As rosas e as crianças nuas
esperando o sol no alpendre.
Leio no jornal a frase mágica
"Glória aos que amanhecem !"

Galo do vizinho, a lua ainda
perdida no céu claro,
A água fresca no rosto

as idéias como espuma
Amanhece no meu espírito.
sinto as alegrias, os afetos
como corolas acesas.
A gravata como um símbolo.
As roupas leves conduzem
o meu corpo pelas ruas.
Vamos apagar o ódio
da face dos semelhantes.
Vamos rasgar a história.
Façamos de conta, irmãos,
que este dia tão puro
é o primeiro de mundo!

Olho o relógio e a folhinha,
A cabeça cai nas mãos.
Não adianta a alegria
amorosa da manha,
nem os eflúvios, os arroubos.
Amanhece no pássaro, na flor,
no trabalho das abelhas,
na pureza dos meninos,
mas cai a tarde nos ombros,
anoitece nos espíritos.
O homem acorda a nao sabe
que a vida espera na esquina.

O HOMEM DO MUNDO

Quando acordei, nao vi mais os tempos de meu pai
a face de minha mãe não falou de orações.
minha avó rezando na tempestade

e o vulto do Monsenhor entre as rosas da praça.
As perdidas casuarinas no crepúsculo vago,
lembrança de mortos no soluço do vento.

Onde estas, vitrola do bilhar deserto?
Onde arquivaste os discursos de quatorze?
Agora, ouço apenas o clamor dos vivos
unindo os continentes.

Não sou mais o homem do interior, sou o homem do mundo.
Hoje, o meu coração é um alfinete no mapa,
aceso também na hora solidária.

Adeus, alegrias inúteis! A dor bateu às nossas portas.
Temos os olhos enxutos, estamos conscientes.

A DISCOTECA

0 passado surge nos discos,
a voz profunda ressuscita.
Há cavatinas gemendo,
melodias brancas, soluços
do violino em conserva.

A mão nervosa, a batuta
dança no estúdio. Silencio.
A pauta sugere as notas.

Schubert morrendo tísico,
Patápio nas serenatas.
Caruso da um suspiro
no fundo da cera mágica.

A agulha fere o mistério.
Um beijo de lua desce.

Catulo abraça Beethoven
e o luar a doce a limpo
na modinha e na sonata.

Contralto em gestos macios,
sopramos em amplos lamentos.
A tristeza envolve o rosto
do tenor com a flor no peito.

Cansado das vozes mortal
da minha vitrola dócil,
abro a janela, recebo
o forte rumor da noite.
Pregões, gritos na praça,
casal lutando no alpendre
crianças chamando a mãe

O céu grava em cera virgem
o choro vivo do mundo.
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Fonte:
J.G . de Araujo Jorge. Antologia da Nova Poesia Brasileira. 1. ed. 1948.
- Montagem da imagem = José Feldman

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