quinta-feira, 4 de março de 2010

Lilinha Fernandes (100 Trovas)


1
Do pomar da poesia,
os frutos que você trouxe,
coube à trova a primazia
por ser menor e mais doce.
2
Desejei fogo atear
ao mundo por onde trilho,
vendo uma cega indagar
como era o rosto do filho.
3
Tua ironia maldosa,
do amor não me, apaga o lume:
Procura esmagar a rosa,
vê se não fica o perfume.
4
Feliz nunca fui! Sem crença,
procuro a felicidade,
Como o cego de nascença
que quer ver a claridade.
5
"Que levas tu na mochila?"
Diz ao corcunda um peralta.
E o corcunda: - "A alma tranqüila
e a educação que te falta."
6
Quando tu passas na estrada,
dentro de casa adivinho:
é teu passo uma toada
musicando teu caminho.
7
São meus ouvidos dois ninhos
onde guardo, ao meu sabor,
um bando de passarinhos!
- Tuas mentiras de amor.
8
Na velha igreja te ouço
sino alegre ... Estás dizendo
que há muito coração moço
em peito velho batendo.
9
Eu não bebia... te juro!
Beijei-te, então, podes crer:
foi teu beijo, vinho impuro,
que me ensinou a beber.
10
Se ouvisse o homem da terra,
de Deus o conselho amigo,
em vez de campos de guerra
faria campos de trigo.
11
Velho em trajes de rapaz
dá a impressão, diz o povo,
de um livro antigo demais
encadernado de novo.
12
Que o mundo acabe, no fundo,
não me causa dissabor,
pois vivo fora do mundo,
no meu mundo de amor.
13
Amanhece... Vibra a terra!
O sol que em ouro reluz,
sai da garganta da serra
como uma trova de luz.
14
Vejo teu rosto, formosa,
e o corpo - graça profana -
como se visse lima rosa
num jarro de porcelana.
15
Chorei na infância insofrida
para na roda ir cantar.
Hoje, na roda da vida,
eu canto pra não chorar.
16
No trabalho em que me escudo,
lutando para viver,
tenho tempo para tudo,
menos para te esquecer.
17
O mar que geme e palpita
no seu tormento profundo,
é uma lágrima infinita
que Deus chorou sobre o mundo.
18
Minha netinha embalando,
da alegria sigo os passos.
Julgo-me o Inverno cantando
com a Primavera nos braços.
19
A modéstia não se ostenta,
se esconde e é pressentida:
a presunção se apresenta
e passa despercebida.
20
Dei-te amor sem falsidade.
- Uma floresta de amor!
E tu, só por crueldade,
te fizeste lenhador.
21
Sofres no céu, Mãe querida,
sentindo, ao ver minha sorte,
que me pudeste dar vida
e não me podes dar morte!
22
Minhas netas, sempre rindo,
são meu alegre evangelho.
Musgo verde revestindo
de esperança, um muro velho.
23
A Inveja dorme na rede
da Injustiça, sua amiga;
do Mal se alimenta, e a sede
mata na fonte da Intriga.
24
Sempre a tristeza se espanta
e se amenizam cansaços,
tendo trovas na garganta
e uma viola nos braços.
25
Quem não tem ouro disperso,
nem prata velha na mão,
paga com o níquel do verso
as contas do coração.
26
Partiste ... Ficou-me n'alma
tua voz suave e pura...
- Ave a cantar sobre a calma
da mais triste sepultura.
27
A aurora corou de pejo
naquele claro arrebol,
sentindo na face o beijo
da boca rubra do Sol.
28
Num vôo de pomba mansa,
quisera ir ao céu saber
qual o crime da criança
que é condenada a nascer.
29
Ao amor fiel, que não minta,
a palavra injuriosa
é como um borrão de tinta
manchando tela famosa.
30
É assim a boca do mundo
que vigia nossas portas:
esconde nossos triunfos,
propala nossas derrotas.
31
Se te vais, que dor imensa!
Mas s e vens, meu grande amor,
ante a tua indiferença
cresce mais a minha dor.
32
Que eu tive felicidade,
minha saudade vos diz,
pois só pode ter saudade
quem já foi multo feliz!
33
O tempo passa voando ...
Mentira, posso jurar.
Se estou meu bem esperando,
como ele custa a passar!
34
Amei e não fui amada...
Minha alma encheu-se de dor.
E fui tão desventurada
que não morri desse amor.
35
Como é um facho de luz,
fosse de madeira a trova,
eu mesma faria a cruz
que irá marcar minha cova.
36
A um cego alguém perguntou
vendo-o só: - Que é de teu guia?
E ele sorrindo mostrou
a cruz que ao peito trazia.
37
Abelha que o favo, prova
é o trovador - velho ou novo
fabricando o mel da trova
que adoça a boca do povo.
38
Pra que acender a candeia
da minha choça? Pra quê?
Basta a luz que me incendeia
que há nos olhos de você.
39
A cordilheira hoje à tarde,
de um verde claro e bonito,
era um colar de esmeraldas
no pescoço do infinito.
40
Sua cruz que eu sei pesada,
minha mãe leva sozinha.
Mesmo assim, velha e cansada,
me ajuda a levar a minha.
41
Minhas trovas sem beleza,
se as dizes, são divinais!
Só por isso, com certeza,
elas serão imortais.
42
Que bom quando todos deixam
na casa o silencio agir,
e os dedos do sono fecham
meus olhos, para eu dormir.
43
Por te amar de alma inditosa,
não quero paga nenhuma:
o vento desfolha a rosa,
mesmo assim ela o perfuma
44
Morreu o abade. O terror
do pecado, o clero invade:
era uma trova de amor
o escapulário do abade.
45
Minha casa pobre, é rica!
Mesmo no escuro tem brilhos;
porque o amor a santifica,
porque a iluminam meus filhos.
46
Num beijo fez imortal
o nosso amor sem ressábios:
um romance original
escrito por quatro lábios.
47
A trova é a alma da gente
desventurada ou feliz.
Em quatro versos somente,
quanta coisa a gente diz!
48
Vida e morte vão andando
no mesmo campo a lutar.
A primeira semeando,
para a segunda ceifar.
49
Pra que eu te esqueça, não tenhas
confiança em teu desdém:
quanto mais de mim desdenhas,
quanto mais te quero bem.
50
De idéias velhas ou novas,
eu faço trovas também.
Quem gosta de fazer trovas,
nunca faz mal a ninguém.
51
Não me odeias nem me queres...
Meu Deus! Que tortura imensa!
Mais do que o ódio, as mulheres
detestam a indiferença.
52
Da morta felicidade
guarda a saudade dorida,
pois quem tem uma saudade
tem muita coisa na vida.
53
Não peço um prazer sequer
à vida que à dor se iguala.
Já faz muito se me der
coragem pra suportá-la.
54
Eu canto quando a saudade
me fere com seu desdém.
O canto é a modalidade
mais bela que o pranto tem.
55
A definição exata
do remorso, está patente:
fino punhal que não mata
mas tira a vida da gente.
56
Para rimar com teu nome,
que é do céu a obra-prima,
mãe, não existe um vocábulo!
Nem mesmo Deus achou rima.
57
Saudade é assim como fado
lembrando quem vive ausente:
é um suspiro do passado
na garganta do presente.
58
Meu amor foi acabando ...
Mas a saudade chegou:
chuva boa refrescando
o chão que o sol causticou
59
És de beleza um portento,
no perfil, nas formas puras.
Mas beleza sem talento
é um palácio às escuras.
60
No meu viver triste e escuro,
na minha sede de amar,
és aquele que eu procuro
e não me quer encontrar.
61
Meus filhos! ... Minha alegria!
Dentro da minha pobreza,
nunca pensei ter um dia
tão opulenta riqueza!
62.
Pensei fazer um feitiço
para esquecer-te, mas vi
que de tanto pensar nisso
é que penso mais em ti.
63
Nunca maldigas teu fado.
Confia em Deus, firmemente.
O arvoredo mais copado
já foi humilde semente.
64
Mãe: nem um tálamo nobre
esquecerei, sem mentir,
aquele bercinho pobre
que embalavas pra eu dormir,
65
Todo amante, em sua lida,
o espinho chama de flor,
porque a verdade da vida
é a mentira do amor.
66
Mãe: por mais que um filho aprenda,
sempre esquece que sois vós
a única fonte de renda
que paga imposto por nós.
67
Quem é do dever escravo
e não faz coisas a esmo,
pode dizer que é um bravo
e o próprio rei de si mesmo.
68
Embora em própria defesa,
é réu quem vidas destrói.
Mas na guerra, que tristeza!
quem mata se chama herói.
69
Na tua fronte bendita
dei um beijo, mãe querida!
Foi a trova mais bonita
que já fiz em minha vida.
70
Do nosso amor acabado
não pode esquecer a gente,
porque a saudade é o passado
que nunca sai do presente.
71
Quem vive em casa ou nas ruas,
chagas alheias curando,
nem se apercebe que as suas
foram sozinhas fechando.
72
Felicidade... Sonhá-la
é um mal de fundas raízes.
O desejo de encontrá-la
é que nos faz infelizes.
73
Manhã. O Sol é um botão
de fina prata dourada,
abotoando o roupão
todo azul da madrugada.
74
Esperança, és bandoleira,
mas és também sol doirado,
de luz a única esteira
na cela de um condenado.
75
Há muita gente cativa
neste mundo, como eu,
que vive porque está viva,
no entanto, nunca viveu.
76
Quem - seja nobre ou plebeu -
no Bem sua vida encerra,
sem estar dentro do céu,
está acima da terra.
77
De vergonha não se peja
quem em sua última viagem,
o ódio, o Remorso e a Inveja
não leva em sua bagagem.
78
Cantas! Minha alma te aprova
e eu choro - que coisa louca!
querendo ser uma trova
para andar em tua boca.
79
Lua e Saudade - rendeiras
da dor que com a ausência vem,
se vós não sois brasileiras,
pátria não tendes também.
80
Pra quem é mãe não existe
bem de mais funda raiz,
que o de viver sempre triste,
mas ver seu filho feliz.
81
"A traição é a própria vida."
É a violeta que assim fala,
porque se esconde e é traída
pelo perfume que exala.
82
Chamas-me louca e eu não chamo
infamante a tua boca.
Quem ama como eu te amo
é muito mais do que louca.
83
Para ingratos trabalhando,
de santo prazer me inundo,
pois, perdendo vou ganhando
a maior glória do mundo.
84
O vento que atro zunia,
queria a noite açoitar;
e a noite, calma, dormia
no regaço do luar.
85
O amor que brinca com a sorte,
que é sempre chama incendida,
é o que vai além da morte!
- Não há dois em toda a vida!
86
Procurar-te, eu? que loucura!
Olha, eu te vou confessar:
de mim mesma ando à procura
e não consigo me achar.
87
De Cornélia, as jóias caras,
vêm ao pensamento meu
quando vejo outras mais raras;
as netas que Deus me deu.
88
Esses teus olhos rasgados,
muito azuis, muito leais,
são miosótis deitados
em vasos originais.
89
Podem subir os felizes!
Agarro-me ao solo, em festa.
- Se não fossem as raízes,
que seria da floresta?
90
Do orgulho, conforme vês,
tenho opinião formada:
é a senhora estupidez
com presunção de educada.
91
Pela saudade ferida,
minha musa se renova!
E eu abro o livro da vida
e escrevo nele uma trova.
92
Se o bem não podes fazer,
o mal não faças também,
que o bem já faz sem saber,
quem não faz mal a ninguém.,
93
É a trova, em seu natural,
mordaz, alegre ou dolente,
lindo trecho musical
de quatro notas somente.
94
Do violão o seg redo
de imitar os passarinhos,
é já ter sido arvoredo
e abrigo de muitos ninhos.
95
Dizem que o amor é feitiço,
é mágoa, alegria e dor.
- Mas se amor não fosse isso,
que graça teria o amor?
96
Sem ti, que treva cerrada
pelos caminhos que trilho!
Sou como a Lua apagada
que, sem o Sol, não tem brilho.
97
Morre o poeta. Em oração
se escutam vozes bizarras.
- É a missa que as cigarras
celebram por seu irmão.
98
Se a trova faz suicidas,
não sou eu quem a reprova.
- Vale uma trova mil vidas!
Não vale a vida uma trova!
99
Noel exclamou pesaroso
vendo a cidade: - Jesus!
Quanto cartaz luminoso
e quanto teto sem luz!
100
Quisera, de idéia nova
de teu amor presa aos laços,
fazendo a última trova,
morrer feliz em teus braços.
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Fonte:
Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge . 100 Trovas de Lilinha Fernandes. vol. 2.RJ: Ed. Vecchi, 1959. Coleção Trovadores Brasileiros

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