segunda-feira, 1 de março de 2010

Daniel Mazza (Poemas de Fim de Tarde)


A CARPIDEIRA

Na sala, emudecido, esquife intransigente,
Com a seda branca e fúnebre aconchegando
O corpanzil do morto, glacial e infando,
Em repouso cansado, exausto eternamente.

Tece preces, a esposa, pelo Miserando,
Enquanto genuflexo, o filho, penitente,
Em alta voz pranteia, sua mão tremente
A soltar do pai a gélida, segue negando.

Enlutados na fila para as despedidas:
Aproximam-se um a um, benzem-se, balbuciam
E prosseguem, por fim, com as almas recolhidas...

Num canto, em espetáculo de encenação,
Soluços teatrais, lágrima financeira,
Concentrada e calma, chora uma carpideira

PÃO E CIRCO

No Coliseu, o urro das famintas feras
O povaréu romano alvoroçava.
O circo mais o pão que alimentava
A Roma augusta das passadas eras.

Ao sinal das trombetas, os escravos
Na saliva da morte agonizavam...
Festejos na tribuna onde brindavam
Tibério César e a súcia de ignavos.

Os caninos cravados no pescoço...
Ventres rasgados expelindo a entranha...
O banquete das feras inclementes...

O brilho rubro aumentava o alvoroço...
Enquanto César, com a face estranha,
Mudo, sorria, sorrateiramente..

ODES

I

Não sei se o sonho que tenho
É o sonho que sonho.
A mesma
Chuva que irriga os vales,
Inunda as pequenas aldeias.
A lua sobre os amantes risonhos
É a mesma,
Sombria nos bosques escuros.

II

Se creres que podes:
Tenta.
Arrisca a perder-te,
Mas desbrava longe.
Arrisca à deriva,
Mas navega além do horizonte.
Melhor é a certeza da derrota
Que a vitória na possibilidade.
Se creres que podes:
Ousa.
Confia em ti.

III

As tuas esperanças
Deposita-as em ti.
As pedras do teu jardim,
Remove-as.
Planta as tuas sementes,
Varre os teus canteiros,
Rega as tuas árvores.
Não esperes que o vento
Limpe o chão do teu Outono.
Limpa-o tu. Sê teu estro.

IV

Reina sobre ti,
Mas não como um César: ergue o teu polegar.
Calígula perscruta
As viscosidades do teu corpo: reina sobre ti.
Estrangula o Iscariotes
Nas tuas mãos avarentas:
Reina sobre ti.

V

A mesma terra que calcamos
É a manta que nos recama no sono da sepultura.
Como uma brisa beijando as ramagens,
Passamos...

Após dormirmos
As folhas cinzas,
Ao pé das árvores
No Outono alheio,
Todos os anos
Ainda assim
Sobrevirão.

VI

Muitas vezes mais Judas
Do que Judas temos sido.
O beijo na face dado
Ainda hoje
Nós o damos!
Nada diferentes
De escribas e fariseus.
Esbanjamos Avarezas
E Vaidades, Vaidades.
Facilmente corrompidos
Por um punhado de moedas.
Muitas vezes mais Judas
Do que Judas temos sido.

VII

Meu coração publicano,
Corrupto cobrador de impostos...
Meu coração fariseu,
Mesquinho doutor da lei...
Meu coração soldado romano com as mãos ensangüentadas,
Pôncio Pilatos com as mãos impecavelmente lavadas,
Caifás com a consciência impecavelmente limpa,
Barrabás impecável.

Lázaro meu coração...

O ladrão
Meu coração
Na cruz.

VIII

Com a força com que abraçamos
Somos abraçados.
O beijo que pomos na face,
Simultaneamente,
Na face é-nos posto.
Das sementes do Mal plantadas,
O Mal medrará.
No espelho invejoso fitamos
Nossos olhos invejosos...

IX

Entre lobos
Lobos sejamos.
Entre ovelhas:
Ovelha.
Perante tantos Césares,
Submissos nunca.
Os oprimidos, entre nós,
Não sejam oprimidos.
Demo-nos
As mãos.

X

Melhor é a coroa na choupana
Que o esfregão no palácio.
Enfuna as tuas velas,
Conduz a tua jangada:
O parco peixe pescado
É teu.
O mar
Pertence a Deus.

XI

Aos deuses,
Nunca tarda,
A dádiva pedida...

Passem-se os anos:
Não tardará
O que nunca tarda.

Em breve,
Sobre o campo seco,
O amanhecer da chuva.

XII

Antes pelos jardins em que caminho,
Sem uma única flor,
Que caminhar por jardins floridos de outrem.

Quando fui semear
A terra não era minha...

Quando olhei para trás
Tinha virado à esquerda
Ao invés de à direita...

XIII

As lágrimas perdidas,
Na face humana
Diamantes são
Garimpados da vida...
A risada de hoje
É o soluçar de amanhã.

A mesma
Lagarta
Que hoje,
Penosamente,
Arrasta-se,
Amanhã,
Borboleta,
Graciosamente,
Voa.

XIV

Brinca enquanto ainda
Tens tempo para brincar.
A infância não é infinda
Há de chegar ainda
O tempo em que vais chorar.

O Outono em breve vem
Com as folhas murchas e pardas.
O Verão ficou mais além,
A Primavera passou também
O Inverno no peito guardas!

XV

De mim mesmo
Padrasto.
Estou farto da disciplina!
Ando
Por cima dos muros.
Salto
Das sacadas das janelas.
Da educação que me deram,
Restaram os pés descalços.
Algum dia
De mim mesmo
Pai.

A "EPOPÉIA" DA MORTE

I

Na companhia dos bichos,
Na terra que lhe foi dada,
O homem com os seus caprichos
São o resumo do nada.

Seiva das árvores altas,
A sua carne é do fruto.
O homem com as suas faltas
Paga por fim o tributo.

O homem é cálcio e carbono,
O húmus a nutrir a terra.
O seu corpo é um abono
Doado a faminta terra.

O homem é a pele...E os ossos,
Braços e rins, sangue e dedos,
Carne exalando remorsos,
Pútrida de ânsias, de medos.

O homem enriquece o solo
Como o fez a sua avó.
E repete o protocolo
Assim retornando ao pó.

E a sombra noutrora viva
Agora é raiz de um horto.
Foi a solução aditiva
Da terra o seu corpo morto.

Debaixo do chão que o cobre
O homem, servido, é a ceia.
Da terra a ceia tão nobre
Temperado com areia.

Debaixo do chão que o enterra
É o homem a comida farta
Que a fome enorme da terra
Nem os seus ossos descarta.

Debaixo dessas ramagens
O homem alimenta os milhos.
E transforma-se nas vagens
Que nutrirão os seus filhos.

Debaixo do chão que o come
O homem a vida renova.
E sobra apenas seu nome
Para, da vida, dar prova.

II

Propriedade divina,
A morte arrendou esse chão.
E eis que moureja na sina
Do homem nessa plantação.

A lida infinda da morte
É ceifar toda a arrogância,
E plantar toda a coorte
Junto com sua ganância.

III

A morte não quer passagem
Para a viagem fortuita.
E o homem não leva bagagem
Nessa viagem gratuita...

Com o seu infindo labor,
Essa Matrona infalível,
No sofrimento e na dor
Traz a benção indizível.

Com o seu infindo labor,
Essa Matrona usurpável,
No regozijo e no amor
Traz a agonia execrável.
G G G G G G G G G G G G

Fonte:
MAZZA, Daniel. Fim de Tarde. Editora Funpec, 2004.

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