SEM TÍTULO
Áries investe para a minha face
mas domino-o com três pedras de sorte,
derramo-lhe nos olhos o rubim
e um signo mais propício me renasce.
Desfaço o que me habita — o secundário —
e caminho empunhando o belo facho
de luz que me revela sempre março
aberto para todo itinerário.
Meu é o silêncio, minha a madrugada
e as vozes que se acordam nestes versos
vou tangendo inspirado no precário:
Escutai-me, ó feridos da beleza,
para salvar-vos tanjo o louro pássaro,
invento em minha boca este canário.
XXV
Exata como o número
a sombra é a medida
a sombra no rigor
do corpo no rigor
da sua geometria.
Solitária à figura,
se estende toda e vai
atrás dos próprios pés
como a correr parada.
É a medida do lápis
na folha do papel,
o fogo liberado
do carvão quando escreve.
Ela é o vácuo e se move
no chão, com a constância
de serva presa às pernas
sonâmbulas do amo.
É a réplica ao visível,
claro contra o escuro,
o abismo aberto ao corpo
levantado do muro.
Seu tecido é maleável
e foge à tentativa
de reter-se nos dedos
como a água fugitiva.
A sombra é o silêncio
das coisas transformadas
audíveis é o vazio
na cor manifestado.
Como encadear o ar?
Como encadear o fogo?
Como encadear a água?
Como encadear a sombra?
Os animais se curvam
ao domínio do rei,
assim como as paixões
são as forças sem lei.
Ela é o peso da inércia
disposta em movimento,
a cor negra do abismo,
o retrato do vento.
VESTÍGIOS DE MAGIA
I
Leia os traços cruzados neste rosto
cercado de silêncio: pedra viva
em movimento. A boca cresce esquiva
e ri branca e despida para dentro
no rumo dos seus lábios. São os dentes
a cerca protegida, são a vida
as sombras de cabelo derramadas
pelo corpo calado. Leia os traços
da fala - a mão repele, vibra, grita
no barbante seu nó para outra boca
acesa em pensamento: porta aberta
às grades do sorriso, cerca estreita
ao alcance da reta ameaçada
e o rumor pelo susto sacudido.
II
Este vôo de cor vôo caído,
pano guardado no ar preso por mãos
perdidas de sua forma: vôo ruído,
que traços traz, que letras, que mistura
que nem chega a compor-se nos sentidos?
Atrás desse tremor coloco o ouvido,
atrás do ouvido as mãos, busco a figura
do súcubo no escuro. Qual seu dom?
de assaltar-me e fugir, de ser perdido
acúmulo de sombra, assombração?
Vejo os dedos; agulhas distribuídas,
multiplicam-se quietas, trazem linha
nas unhas - aparecem resguardadas
no enleio derramado dos sorrisos.
III
De que curva das trevas, de que ponta
o negro vôo treme e o ar trespassa
e bate nos sentidos suas asas
para acordar o canto, vil presságio
de sujo enigma, este susto e espanto?
Uma treva sem trégua, uma perdida
face escondida se desprende e foge
atrás de si para encontrar-se ao lado
de quem renega e aceita. Ser sem nome,
cujo dom é nutrir-se de seus passos
como o corvo se nutre com seu vôo
da solidão que o habita, sem receio,
rompe com o bico a negridão e surge
nas páginas abertas deste espaço.
IV
Não é do sono que nasce
nem de obscuras palavras
mas da luz que me ilumina
os braços, olhos e face.
Nasce de estranhos presságios
submersos nos meus sentidos
esta encantação de pássaros
que voam da minha fala.
Nasce talvez dos meus gestos
de recônditos segredos
e são as minhas secretas
alegrias e meus medos.
São meus transes, meus instantes
que me possuem com a beleza
de extrair corpos e plumas
das tábuas da minha mesa.
São minhas múltiplas horas
de alucinados prazeres
em que me assistem transidos
o anoitecer e as auroras.
Ah dom de inventar-me alado
e voar com os meus vocábulos
sem espaços que limitem
meus pés no chão repousados.
O PODER DA PALAVRA
Articular o verbo até medir-lhe o som,
a extensão de suas cordas, suas arestas,
as potências contidas no ritmo
interior
o colorido
seu poder de fuga
e apreensão, seu fogo
e ouro, sua hora
inflamada,
as vibrações diluídas nos dentes,
sua fluida aparência
de poliedro disfarçado,
sua aritmética de pedra
e explosão,
seu trânsito na escala rarefeita
da audiência à voz que o emite,
condensando-o em cargas — símbolos
lançados — dardo
O VERBO
ar ao touro
não a flor para sua fúria
barbante atando os gestos
barro entre pedreiro e muro
liberto
como um risco
no corpo, como um risco
de faca, como um risco
de bala, como um risco
de espelho, como um risco
de ouro
que se queima nas folhas
rubras do fogo
se consome nas dobras
sujas da mente, não crepita
nem freme, sim
acende o grito
da fome
FOGO E OURO
corcel violento com jatos
de cor
sua meta, a linha
do ar
seu pasto
EXERCÍCIO
Despir-se do olhar
como quem se despe
de uma realidade.
Despir-se da fala
como quem se despe
de seus pensamentos.
Despir-se dos gestos
como quem se despe
de sua própria essência.
Ser dentro do vácuo
raro como o íntimo
de qualquer distância.
Como a água despida,
ser raso no leito,
longe como o sono,
Como corpo ou tempo,
formar-se por dentro
de seu próprio espaço.
Tempo ou movimento,
durar existindo
fora de seu trânsito.
Ser imperceptível,
a sombra invadida
pela loura luz
o avesso dos trajes
largos, a medida
exata da ausência,
Tão leve na estrada,
caminhar no rumo
deserto dos passos.
Fio dágua ou linha
agulha molhada
que em si caminha:
Vácuo e plenitude,
ser flecha e ferida
o servo e senhor.
ÁRVORE QUEBRADA
Vinha do tempo o brilho
traçando com seu lastro
rota insuspeitada
da hora, acesa aurora
de pedra, pedra e astro.
Vinha da linha reta
e presa pelos ângulos
era a árvore quadrada
nos limites do triângulo:
ou árvore despida
ou musa, musa oclusa,
era ela com sua boca
exata, séria era
a flor, o vinho, a terra.
Vinha de si nos passos
dobrada — para achar-se
trazia só a face
a senha, era o dia
o guia que a trazia.
AS SOMBRAS CORREM
As sombras correm soltas pela noite
à cata de suas formas apagadas,
tecendo solidões que são abismos,
sinais que são multiplicadas máscaras
de uma face movida pela luz
que desata do feixe o movimento
e se dispersa em fugas para atar-se
à unidade que flui do próprio tempo.
Os cabelos transformam-se em ramagens,
as árvores caminham. As florestas
combatem. Exercita a quadratura
do circulo o artesão moldando a pedra,
polindo arestas, desenhando a fórmula
da sombra em sua ordenação geométrica
como um todo partido que se reúne
pelo esforço que move o vento, a terra.
As águas correm negras, desatadas
das formas, com seus silvos de serpentes
nervosas sobre o leito das estradas,
luzindo a cor sinistra das correntes.
(...)
Sobre a boca formosa adormecida
tímidas aves, asas assustadas
sobrevoavam ligeiras com os bicos
famintos, a procura do arrozal
perdido na quietude da calada
planície verde agora adormecida
pela brisa da morte tal um mar
de pedra a desafiar a clara vida.
O rosto transformara-se em metal
e recusava dar-se ao movimento
dos círculos em vôo a procura
da cantora partida: apenas vinha
com a quietude amarga o frio som
de prata antiga da serena chuva
a derramar-se em finas linhas de água
nas figuras sonâmbulas da rua.
Eu a vi por detrás da clara máscara
armada para a vida com bandeiras
desfraldadas no corpo. A face dura
denunciava a cantora, ave guerreira.
Vi pedrarias na corrente verde
da fala, o brilho de esmeralda ardia
e inundava de líquidas vogais
a sala prisioneira da poesia.
(...)
Eu vi a palavra fora de sua boca
desenrolar o manto da poesia.
O som criava pássaros alegres
que voavam e desapareciam.
O encanto era tal que se perdia
a imagem verdadeira, e vi a palavra
transformar-se de nítido metal
em labareda, em fogo, em sombra alada,
com as asas abertas sobre nós:
o rumor da poesia urdia a voz
e o pássaro incendiava-se na luz
que sua fala espargia (negro sol).
______________________
Áries investe para a minha face
mas domino-o com três pedras de sorte,
derramo-lhe nos olhos o rubim
e um signo mais propício me renasce.
Desfaço o que me habita — o secundário —
e caminho empunhando o belo facho
de luz que me revela sempre março
aberto para todo itinerário.
Meu é o silêncio, minha a madrugada
e as vozes que se acordam nestes versos
vou tangendo inspirado no precário:
Escutai-me, ó feridos da beleza,
para salvar-vos tanjo o louro pássaro,
invento em minha boca este canário.
XXV
Exata como o número
a sombra é a medida
a sombra no rigor
do corpo no rigor
da sua geometria.
Solitária à figura,
se estende toda e vai
atrás dos próprios pés
como a correr parada.
É a medida do lápis
na folha do papel,
o fogo liberado
do carvão quando escreve.
Ela é o vácuo e se move
no chão, com a constância
de serva presa às pernas
sonâmbulas do amo.
É a réplica ao visível,
claro contra o escuro,
o abismo aberto ao corpo
levantado do muro.
Seu tecido é maleável
e foge à tentativa
de reter-se nos dedos
como a água fugitiva.
A sombra é o silêncio
das coisas transformadas
audíveis é o vazio
na cor manifestado.
Como encadear o ar?
Como encadear o fogo?
Como encadear a água?
Como encadear a sombra?
Os animais se curvam
ao domínio do rei,
assim como as paixões
são as forças sem lei.
Ela é o peso da inércia
disposta em movimento,
a cor negra do abismo,
o retrato do vento.
VESTÍGIOS DE MAGIA
I
Leia os traços cruzados neste rosto
cercado de silêncio: pedra viva
em movimento. A boca cresce esquiva
e ri branca e despida para dentro
no rumo dos seus lábios. São os dentes
a cerca protegida, são a vida
as sombras de cabelo derramadas
pelo corpo calado. Leia os traços
da fala - a mão repele, vibra, grita
no barbante seu nó para outra boca
acesa em pensamento: porta aberta
às grades do sorriso, cerca estreita
ao alcance da reta ameaçada
e o rumor pelo susto sacudido.
II
Este vôo de cor vôo caído,
pano guardado no ar preso por mãos
perdidas de sua forma: vôo ruído,
que traços traz, que letras, que mistura
que nem chega a compor-se nos sentidos?
Atrás desse tremor coloco o ouvido,
atrás do ouvido as mãos, busco a figura
do súcubo no escuro. Qual seu dom?
de assaltar-me e fugir, de ser perdido
acúmulo de sombra, assombração?
Vejo os dedos; agulhas distribuídas,
multiplicam-se quietas, trazem linha
nas unhas - aparecem resguardadas
no enleio derramado dos sorrisos.
III
De que curva das trevas, de que ponta
o negro vôo treme e o ar trespassa
e bate nos sentidos suas asas
para acordar o canto, vil presságio
de sujo enigma, este susto e espanto?
Uma treva sem trégua, uma perdida
face escondida se desprende e foge
atrás de si para encontrar-se ao lado
de quem renega e aceita. Ser sem nome,
cujo dom é nutrir-se de seus passos
como o corvo se nutre com seu vôo
da solidão que o habita, sem receio,
rompe com o bico a negridão e surge
nas páginas abertas deste espaço.
IV
Não é do sono que nasce
nem de obscuras palavras
mas da luz que me ilumina
os braços, olhos e face.
Nasce de estranhos presságios
submersos nos meus sentidos
esta encantação de pássaros
que voam da minha fala.
Nasce talvez dos meus gestos
de recônditos segredos
e são as minhas secretas
alegrias e meus medos.
São meus transes, meus instantes
que me possuem com a beleza
de extrair corpos e plumas
das tábuas da minha mesa.
São minhas múltiplas horas
de alucinados prazeres
em que me assistem transidos
o anoitecer e as auroras.
Ah dom de inventar-me alado
e voar com os meus vocábulos
sem espaços que limitem
meus pés no chão repousados.
O PODER DA PALAVRA
Articular o verbo até medir-lhe o som,
a extensão de suas cordas, suas arestas,
as potências contidas no ritmo
interior
o colorido
seu poder de fuga
e apreensão, seu fogo
e ouro, sua hora
inflamada,
as vibrações diluídas nos dentes,
sua fluida aparência
de poliedro disfarçado,
sua aritmética de pedra
e explosão,
seu trânsito na escala rarefeita
da audiência à voz que o emite,
condensando-o em cargas — símbolos
lançados — dardo
O VERBO
ar ao touro
não a flor para sua fúria
barbante atando os gestos
barro entre pedreiro e muro
liberto
como um risco
no corpo, como um risco
de faca, como um risco
de bala, como um risco
de espelho, como um risco
de ouro
que se queima nas folhas
rubras do fogo
se consome nas dobras
sujas da mente, não crepita
nem freme, sim
acende o grito
da fome
FOGO E OURO
corcel violento com jatos
de cor
sua meta, a linha
do ar
seu pasto
EXERCÍCIO
Despir-se do olhar
como quem se despe
de uma realidade.
Despir-se da fala
como quem se despe
de seus pensamentos.
Despir-se dos gestos
como quem se despe
de sua própria essência.
Ser dentro do vácuo
raro como o íntimo
de qualquer distância.
Como a água despida,
ser raso no leito,
longe como o sono,
Como corpo ou tempo,
formar-se por dentro
de seu próprio espaço.
Tempo ou movimento,
durar existindo
fora de seu trânsito.
Ser imperceptível,
a sombra invadida
pela loura luz
o avesso dos trajes
largos, a medida
exata da ausência,
Tão leve na estrada,
caminhar no rumo
deserto dos passos.
Fio dágua ou linha
agulha molhada
que em si caminha:
Vácuo e plenitude,
ser flecha e ferida
o servo e senhor.
ÁRVORE QUEBRADA
Vinha do tempo o brilho
traçando com seu lastro
rota insuspeitada
da hora, acesa aurora
de pedra, pedra e astro.
Vinha da linha reta
e presa pelos ângulos
era a árvore quadrada
nos limites do triângulo:
ou árvore despida
ou musa, musa oclusa,
era ela com sua boca
exata, séria era
a flor, o vinho, a terra.
Vinha de si nos passos
dobrada — para achar-se
trazia só a face
a senha, era o dia
o guia que a trazia.
AS SOMBRAS CORREM
As sombras correm soltas pela noite
à cata de suas formas apagadas,
tecendo solidões que são abismos,
sinais que são multiplicadas máscaras
de uma face movida pela luz
que desata do feixe o movimento
e se dispersa em fugas para atar-se
à unidade que flui do próprio tempo.
Os cabelos transformam-se em ramagens,
as árvores caminham. As florestas
combatem. Exercita a quadratura
do circulo o artesão moldando a pedra,
polindo arestas, desenhando a fórmula
da sombra em sua ordenação geométrica
como um todo partido que se reúne
pelo esforço que move o vento, a terra.
As águas correm negras, desatadas
das formas, com seus silvos de serpentes
nervosas sobre o leito das estradas,
luzindo a cor sinistra das correntes.
(...)
Sobre a boca formosa adormecida
tímidas aves, asas assustadas
sobrevoavam ligeiras com os bicos
famintos, a procura do arrozal
perdido na quietude da calada
planície verde agora adormecida
pela brisa da morte tal um mar
de pedra a desafiar a clara vida.
O rosto transformara-se em metal
e recusava dar-se ao movimento
dos círculos em vôo a procura
da cantora partida: apenas vinha
com a quietude amarga o frio som
de prata antiga da serena chuva
a derramar-se em finas linhas de água
nas figuras sonâmbulas da rua.
Eu a vi por detrás da clara máscara
armada para a vida com bandeiras
desfraldadas no corpo. A face dura
denunciava a cantora, ave guerreira.
Vi pedrarias na corrente verde
da fala, o brilho de esmeralda ardia
e inundava de líquidas vogais
a sala prisioneira da poesia.
(...)
Eu vi a palavra fora de sua boca
desenrolar o manto da poesia.
O som criava pássaros alegres
que voavam e desapareciam.
O encanto era tal que se perdia
a imagem verdadeira, e vi a palavra
transformar-se de nítido metal
em labareda, em fogo, em sombra alada,
com as asas abertas sobre nós:
o rumor da poesia urdia a voz
e o pássaro incendiava-se na luz
que sua fala espargia (negro sol).
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Fontes:
CHAMMA, Foed Castro. O Poder da Palavra. Rio de Janeiro: Jornal de Poesia, 1959
Jornal de Poesia.
CHAMMA, Foed Castro. O Poder da Palavra. Rio de Janeiro: Jornal de Poesia, 1959
Jornal de Poesia.
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