Já faz uns cinco ou seis anos que não saio desta estante; às vezes perco a conta. Ou seriam seis ou sete anos?... Você que começa a ler esta minha pequena história talvez nunca tenha parado para pensar na dura realidade dos livros sem leitor. Não quero aborrecê-lo com queixas inócuas, mas é da natureza dos seres da minha espécie, os livros, a vontade, o incontido desejo de servir a vocês, os humanos. Esta é a nossa razão de ser, de existir. Ser esquecido em uma estante por anos a fio é a maior frustração que pode ocorrer na vida de um livro. E olhe que não devia estar me lamentando tanto: meu vizinho, “O Corcunda de Notre Dame”, comentou outro dia que já deve ter bem uns quinze anos que ninguém o retira da estante. Melhor sorte tem outro vizinho, o Senhor Brás Cubas: suas Memórias Póstumas foram solicitadas nas listas de leituras obrigatórias de alguns vestibulares e ele não para mais no lugar, sempre é retirado por jovens leitores.
— As traças me apavoram! É terrível, à noite, quando as luzes são apagadas e ouvimos, aterrorizados, o monótono e contínuo ruído do movimento de suas mandíbulas mastigando indefesas páginas. A monotonia de viver confinado às estantes produz melancolia, enfado. Não poucas vezes, quando consigo mergulhar em um sono mais profundo, sonho que fui tomado por empréstimo por algum leitor e saio outra vez para o mundo exterior, vendo-me livre dos muros desta masmorra em que se converte a biblioteca para os que são abandonados nas estantes. Que alegria ver de novo a luz do sol! Que prazer compartilhar a vida, o intenso e caloroso pulsar do mundo nas mãos de um leitor ou de uma leitora. Que delícia percorrer ruas, praças, parques, entrar na casa dele, ir aos lugares aonde vai e ser manuseado por ele ou por ela. Nada é melhor para um livro do que a sensação de ter na pele de suas páginas os olhos atentos de uma leitora. Nestes mágicos momentos, desfruto da grata satisfação de sentir que me torno um manancial de sonhos e desejos, indagações e dúvidas, divagações e certezas. Delicio-me quando cismo com ele à beira do abismo da existência e depois voamos juntos com as asas da imaginação das histórias que carrego no meu corpo.
Mas pior ainda do que as traças (posso afirmar que este medo aflige também aos meus semelhantes) é ser degradado à condição de um reles xerox ou ser aviltado pelos nefastos resumos que pululam na internet e se arvoram a traduzir em umas poucas e mal construídas linhas toda a complexidade de uma obra que algum escritor levou, às vezes, anos para elaborar. Estes dois sujeitos, xerox e resumo, são inimigos mortais nossos, os livros. É a danação da nossa espécie, é a traição maior que pode ser cometida contra os livros verdadeiros que devem ser lidos de forma integral em suas versões originais. Não quero me meter a herói, mas em nome de todos os livros, declaro guerra aos clones! E creio poder falar também em nome de todos os escritores, poetas, ilustradores e por que não, dos leitores conscientes que sabem que é preciso preservar os livros originais! Para encerrar, gostaria de pensar que em um futuro próximo não venha ser só um sonho voltar a ter leitores em profusão. Quero acreditar que voltaremos a fazer parte da vida de pessoas de todos os tipos e idades que vão encontrar neste “admirável mundo novo” dos dias de hoje, com toda a sua complicada modernagem, a paz, o sossego, na simples companhia de um bom livro.
— Humanos: somos seus cúmplices eternos, sempre solidários; nossa missão é estar prontos e dispostos para ser abertos e nos oferecer inteiramente aos que nos queiram. Nossa entrega é completa, sem restrições. Querida amiga, querido amigo, quero estar em suas mãos!
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RODRIGO LESTE foi co-editor de jornais alternativos que na década de 70 fizeram história em Minas como “Gol-a-Gol”, “Vapor” e “Circus” e é poeta, ator e produtor cultural, atuando no teatro desde 1974.
Fonte:
Suplemento Literário de Minas Gerais. Novembro de 2009. n. 1326.
— As traças me apavoram! É terrível, à noite, quando as luzes são apagadas e ouvimos, aterrorizados, o monótono e contínuo ruído do movimento de suas mandíbulas mastigando indefesas páginas. A monotonia de viver confinado às estantes produz melancolia, enfado. Não poucas vezes, quando consigo mergulhar em um sono mais profundo, sonho que fui tomado por empréstimo por algum leitor e saio outra vez para o mundo exterior, vendo-me livre dos muros desta masmorra em que se converte a biblioteca para os que são abandonados nas estantes. Que alegria ver de novo a luz do sol! Que prazer compartilhar a vida, o intenso e caloroso pulsar do mundo nas mãos de um leitor ou de uma leitora. Que delícia percorrer ruas, praças, parques, entrar na casa dele, ir aos lugares aonde vai e ser manuseado por ele ou por ela. Nada é melhor para um livro do que a sensação de ter na pele de suas páginas os olhos atentos de uma leitora. Nestes mágicos momentos, desfruto da grata satisfação de sentir que me torno um manancial de sonhos e desejos, indagações e dúvidas, divagações e certezas. Delicio-me quando cismo com ele à beira do abismo da existência e depois voamos juntos com as asas da imaginação das histórias que carrego no meu corpo.
Mas pior ainda do que as traças (posso afirmar que este medo aflige também aos meus semelhantes) é ser degradado à condição de um reles xerox ou ser aviltado pelos nefastos resumos que pululam na internet e se arvoram a traduzir em umas poucas e mal construídas linhas toda a complexidade de uma obra que algum escritor levou, às vezes, anos para elaborar. Estes dois sujeitos, xerox e resumo, são inimigos mortais nossos, os livros. É a danação da nossa espécie, é a traição maior que pode ser cometida contra os livros verdadeiros que devem ser lidos de forma integral em suas versões originais. Não quero me meter a herói, mas em nome de todos os livros, declaro guerra aos clones! E creio poder falar também em nome de todos os escritores, poetas, ilustradores e por que não, dos leitores conscientes que sabem que é preciso preservar os livros originais! Para encerrar, gostaria de pensar que em um futuro próximo não venha ser só um sonho voltar a ter leitores em profusão. Quero acreditar que voltaremos a fazer parte da vida de pessoas de todos os tipos e idades que vão encontrar neste “admirável mundo novo” dos dias de hoje, com toda a sua complicada modernagem, a paz, o sossego, na simples companhia de um bom livro.
— Humanos: somos seus cúmplices eternos, sempre solidários; nossa missão é estar prontos e dispostos para ser abertos e nos oferecer inteiramente aos que nos queiram. Nossa entrega é completa, sem restrições. Querida amiga, querido amigo, quero estar em suas mãos!
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RODRIGO LESTE foi co-editor de jornais alternativos que na década de 70 fizeram história em Minas como “Gol-a-Gol”, “Vapor” e “Circus” e é poeta, ator e produtor cultural, atuando no teatro desde 1974.
Fonte:
Suplemento Literário de Minas Gerais. Novembro de 2009. n. 1326.
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