Todo dia a exasperante rotina se repetia. Eu tinha que seguir pela rua Dr. Machado até a Farmácia Esculápio, esquina com a Bacuri, descer com o freio de mão puxado no rumo da beira, dobrar a direita no Chocron e entrar na “Casa Careca”, para comprar cinco pães e cem gramas de manteiga marca “Aviação”, acondicionadas em latas amarelas. Depois de pesada, era embrulhada numa praga de papel celofane, do qual escorria para o meu braço parece mingau de crueira, derretendo a olhos vistos sob o implacável calor da manhã. E eu ainda aturava o repetitivo chiste de rima pobre do italiano:
- Seu Caporal, quero cinco pães.
- Pães não hães!
Que lindo! A mesma graça, entra ano sai ano. Feita a compra, tinha início o percurso contrário. Subida da ladeira da Dr. Machado a partir do Chocron, cheiro de morcego exalando do solar do Barão do Solimões, uma parada para ver seu Galúcio soldando peças feitas no torno com perfeição de artista, olhos protegidos da chuva de centelhas incandescentes com óculos pretos de escafandro. Depois, nova parada para observar como estava o guarda-chuva do padre do velho Vidal. Lembram dele?
Segundo apregoava seu sócio Crispim, um sujeito branquelo, careca e bonachão, a quem faltava um generoso pedaço da orelha esquerda, esse sacerdote era sábio na previsão do tempo. Pregado na parece do interior da mercearia, a miniatura do religioso envergando batina preta e um inseparável guarda-chuva constituía atração à parte. Quando o sol estava a pino, o equipamento inclinava-se para trás, evidenciando ser dispensável; quando o toró se aproximava, o mesmo retornava a sua posição normal, protegendo o beato do aguaceiro que se avizinhava. Na verdade, tudo era controlado por um bastão de mercúrio, que oscilava ao sabor da temperatura ambiente. Para mim, moleque abestado, o tal padre era a quintessência da prestidigitação, espécie de segredo insondável que os donos da loja guardavam a sete chaves e morreram sem me revelar.
Depois dessas estratégicas paradas, a descida pela rua de terra até em casa, passando em frente ao Grupo Escolar José Veríssimo, até que era rápida. Nessas alturas, porém, o feixe de cinco pães enrolados numa tirinha miserável de papel já se soltara e não raro algum caía pelo chão, incômodo que era secundado pela melequeira geral da manteiga se espalhando por todos os lados, prenúncio de ralho ou coisa pior por parte de d. Lady. Mas o que realmente me invocava era a postura daquele sujeito, ar superior, sentado calmamente na calçada da casa do seu José Batista, vendo meu desespero, sem poupar-me do desafio:
- E aí Célio, a gente vai ou não jogar pião hoje?
O cara vivia me enchendo a paciência. Éramos vizinhos e parceiros de aventuras durante o verão, quando o vento arfante do Laguinho estufava nas alturas os coloridos papagaios empinados, porfiando entre si fiados na eficácia das linhas enceradas com vidro de magnésia moído no pilão, supostamente o melhor que existia. No jogo de peteca demonstrávamos quase a mesma habilidade, ora eu ganhando, ora ele, de modo que nunca nossos estoques de “bolivianas” ficaram desfalcados por uma que outra imprevisível derrota. Porém, o seu ostensivo desafio no jogo de pião tinha uma clara razão de ser. Ele era dono de um alentado pião do melhor jacarandá feito no torno, cujo certeiro e preciso arremesso com linha americana o tornou imbatível entre os moleques que freqüentavam o antigo matadouro. Por sua notória perspicácia, sabia ele que eu não dispunha de um igual ao seu, nem de dinheiro para comprar de quem quer que seja, fato que o estimulava às constantes provocações.
Naquele ano de 1958, quando o Brasil pela vez primeira ganhou a Copa do Mundo com um timaço de fazer inveja a esse simulacro de Seleção que hoje existe (Gilmar, Djalma Santos, Belini, Orlando e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Pelé, Vavá e Zagalo), o Amazonas foi de uma generosidade franciscana para com os obidenses. No trapiche em frente à usina da Companhia Paulista de Aniagem, onde se prensava toda a juta da região, fila de estivadores bamburravam na captura do jaraqui, com o sincronizado bailado de suas tarrafas antes de mergulharem no caudal barrento, para voltarem à superfície prenhes do peixe símbolo dos Pauxis. Menino pra todo lado gritando “pega o resto!” a cada lance mais ousado dos tarrafeadores; outros juntando as sobras para um cozido na mesa modesta dos moradores do Cariazal; outros mais, simplesmente se refrescando no banho gostoso do traiçoeiro remanso e o sujeito lá, olhando-nos de cima para baixo, escorado no poder do belo pião enfiado na ilharga do calção, pronto para o enfrentamento, mesmo ali sendo lugar de pescaria e não de uma disputa terrestre.
Paciência tem limite. Aquilo não podia continuar. Fui me aconselhar com o “Rato Branco”, serviçal da casa do Silvestre Reis, escrachado até no apelido, que tinha o diabo no couro mas sabia das coisas, tanto que era respeitado pelos demais porque era bom de porrada e (diziam) introduzira sob a pele do braço direito uma veia de poraquê, que o tornava imbatível nas competições de queda de braço na fila do mercado. Contei-lhe meu problema. Disse que aquele camarada, ao mesmo tempo meu amigo e meu vizinho, sonhava em duelar comigo num jogo de pião, mas eu não dispunha de nenhum, nem de dinheiro para comprar. Terminado o relato, ouvi compenetrado as orientações do ilustre roedor:
- Tem mesa ou cama de madeira na tua casa?
- Claro. Meus pais iam comer ou dormir aonde?
- Claro uma p... Não chateia. Tu quer ou não o conselho?
- Por que essa pergunta sobre a mesa e a cama?
- Tem serrote na tua casa?
- Tem. Mas espera aí. O que mesa, cama e serrote têm a ver com jogo de pião?
- Tu faz o seguinte. Pega o serrote, serra o pé da cama, acerta as bordas com um terçado e coloca um prego na ponta que vira um pião. Se não der, leva pro seu Inácio, bem no lado da Igreja, que ele fabrica caixão de defunto e faz pra ti. Quando ele te desafiar, pode disputar que tu vai acabar ganhando...
Com aquela idéia, larguei a pescaria de jaraqui e entrei furtivamente em casa, esgueirando-me no rumo do quarto dos meus pais. Lá estava a bela cama e para minha sorte, os quatro pés já eram torneados em formato de cone invertido, tornando desnecessária a tarefa de usar o terçado. Arranjei o prego, cortei a cabeça com um alicate, amolei na calçada e fiquei de tocaia esperando todo mundo sair para que o serrote, de ruído escandaloso, fosse utilizado. A chance apareceu quando meus velhos foram fazer compra na “A Pernambucana”, que recebera um enorme estoque de casimira “Aurora” e a Risete avisou que o preço estava uma pechincha. Apanhei a serra e decepei o pé da cama, que obviamente ficou capenga. O jeito foi quebrar um pedado do muro do quintal da dona Domingas, mãe da d. Maria Menezes (precursora das modernas cabeleireiras, ela frisava as madeixas das moças com água quente e não raro uma delas ia para a festa sem um pedaço do couro cabeludo...), nivelando-a na parte posterior, próximo à parede, para que ninguém notasse o estrago. Consegui com o Amadeu, vizinho e comandante do “Sialpe”, um pedaço de linha americana e me senti pronto para duelar com meu antagonista.
Sete e meia da manhã, um sol desmaiado surgiu atrás da Serra da Escama. Morto de preguiça fui tangido para meu dever cívico de comprar os pães e a abominável manteiga na padaria do Careca.
- Seu Caporal, quero cinco pães.
- Pães não hães!
Carcamano f.d.p. um dia tu me paga, pensei. Comprei os pães cacetes e a praga da manteiga “Aviação” que logo viraria mingau e voltei no mesmo passo. Vi seu Galúcio fabricando soldando suas peças na oficina e o padre do velho Vidal tentando cobrir a cabeça num sinal claro que iria chover. Passei pelo quintal do Dr. Emanoel Rodrigues e olhei a quantidade de motores de popa prontos para a próxima caçada de pato do mato, esporte favorito do famoso advogado. Confronte à esquina do José Veríssimo lá estava ele, posudo, com seu pião de jacarandá. Na oportunidade, novo repto me foi lançado:
- E aí Célio, é hoje?
- Como tu quiser. Agora já tenho meu pião...
Deixei na parte que me pareceu mais limpa da calçada os pães e a nojenta da manteiga, riscamos um círculo no chão para “tirar o ponto” e demos início à peleja. Infelizmente perdi (ele era mesmo um craque...) e meu pião feito da perna da cama dos meus pais foi para a roda. Em seguida, após enrolar caprichosamente a linha americana no seu garboso artefato, como que sorvendo prazerosamente cada segundo da minha angustiante expectativa, mirou, aprumou e soltou o golpe fatídico com tamanha violência, que a ponta de ferro do petardo penetrou na frágil peça de cedro improvisada, ficando encravada na mesma, inutilizando-a por completo. Adeus pé da cama, que nunca mais recuperou a performance, nem com o reparo que lhe fez o carpinteiro Vevé.
Julho de 2008. Eu acabara de jogar a preliminar de Mariano X Paraense no Estádio Ary Ferreira, em Óbidos, num calor dos infernos. Troquei de roupa e junto com o Sérgio, meu filho, posicionamo-nos na arquibancada para assistir o prélio entre as equipes titulares desses famosos times locais. Com a voz embargada por incontáveis doses da tinhosa, eis que aparece meu velho opositor, deu-me um abraço e sem meias palavras lançou dessa vez um outro desafio.
- Precisas escrever sobre o nosso jogo de pião, quando tu serraste o pé da cama do teu pai... mas não te esquece que fui eu que ganhei!
- Mas como eu vou contar um negócio que nem me lembro mais?
- Te vira, apela pra tua memória, mas não esquece. Meu pião inutilizou o teu!
No Baile dos Pauxis tornei a encontrá-lo, acompanhado de sua digna esposa. Lá mesmo comecei a reconstituir os fatos, tarefa interrompida com justiça pelo desfile de Monique, a bela Garota Óbidos 2008. Meu estimado amigo João Cândido de Amorim Pinto, não se trata de proselitismo de perdedor, porém, cinqüenta anos depois daquela peleja, está resgatado meu compromisso de narrar o episódio tal como ele aconteceu. Em contrapartida você, sempre brilhante em tudo que faz, ainda tem na consciência um pecado a ser remido. A responsabilidade, embora indireta, por uma cama de apenas três pernas, que me custou uma senhora surra com corda de manilha e até hoje não sei que fim levou.
Fonte:
http://www.obidos.com.br/
- Seu Caporal, quero cinco pães.
- Pães não hães!
Que lindo! A mesma graça, entra ano sai ano. Feita a compra, tinha início o percurso contrário. Subida da ladeira da Dr. Machado a partir do Chocron, cheiro de morcego exalando do solar do Barão do Solimões, uma parada para ver seu Galúcio soldando peças feitas no torno com perfeição de artista, olhos protegidos da chuva de centelhas incandescentes com óculos pretos de escafandro. Depois, nova parada para observar como estava o guarda-chuva do padre do velho Vidal. Lembram dele?
Segundo apregoava seu sócio Crispim, um sujeito branquelo, careca e bonachão, a quem faltava um generoso pedaço da orelha esquerda, esse sacerdote era sábio na previsão do tempo. Pregado na parece do interior da mercearia, a miniatura do religioso envergando batina preta e um inseparável guarda-chuva constituía atração à parte. Quando o sol estava a pino, o equipamento inclinava-se para trás, evidenciando ser dispensável; quando o toró se aproximava, o mesmo retornava a sua posição normal, protegendo o beato do aguaceiro que se avizinhava. Na verdade, tudo era controlado por um bastão de mercúrio, que oscilava ao sabor da temperatura ambiente. Para mim, moleque abestado, o tal padre era a quintessência da prestidigitação, espécie de segredo insondável que os donos da loja guardavam a sete chaves e morreram sem me revelar.
Depois dessas estratégicas paradas, a descida pela rua de terra até em casa, passando em frente ao Grupo Escolar José Veríssimo, até que era rápida. Nessas alturas, porém, o feixe de cinco pães enrolados numa tirinha miserável de papel já se soltara e não raro algum caía pelo chão, incômodo que era secundado pela melequeira geral da manteiga se espalhando por todos os lados, prenúncio de ralho ou coisa pior por parte de d. Lady. Mas o que realmente me invocava era a postura daquele sujeito, ar superior, sentado calmamente na calçada da casa do seu José Batista, vendo meu desespero, sem poupar-me do desafio:
- E aí Célio, a gente vai ou não jogar pião hoje?
O cara vivia me enchendo a paciência. Éramos vizinhos e parceiros de aventuras durante o verão, quando o vento arfante do Laguinho estufava nas alturas os coloridos papagaios empinados, porfiando entre si fiados na eficácia das linhas enceradas com vidro de magnésia moído no pilão, supostamente o melhor que existia. No jogo de peteca demonstrávamos quase a mesma habilidade, ora eu ganhando, ora ele, de modo que nunca nossos estoques de “bolivianas” ficaram desfalcados por uma que outra imprevisível derrota. Porém, o seu ostensivo desafio no jogo de pião tinha uma clara razão de ser. Ele era dono de um alentado pião do melhor jacarandá feito no torno, cujo certeiro e preciso arremesso com linha americana o tornou imbatível entre os moleques que freqüentavam o antigo matadouro. Por sua notória perspicácia, sabia ele que eu não dispunha de um igual ao seu, nem de dinheiro para comprar de quem quer que seja, fato que o estimulava às constantes provocações.
Naquele ano de 1958, quando o Brasil pela vez primeira ganhou a Copa do Mundo com um timaço de fazer inveja a esse simulacro de Seleção que hoje existe (Gilmar, Djalma Santos, Belini, Orlando e Nilton Santos; Zito e Didi; Garrincha, Pelé, Vavá e Zagalo), o Amazonas foi de uma generosidade franciscana para com os obidenses. No trapiche em frente à usina da Companhia Paulista de Aniagem, onde se prensava toda a juta da região, fila de estivadores bamburravam na captura do jaraqui, com o sincronizado bailado de suas tarrafas antes de mergulharem no caudal barrento, para voltarem à superfície prenhes do peixe símbolo dos Pauxis. Menino pra todo lado gritando “pega o resto!” a cada lance mais ousado dos tarrafeadores; outros juntando as sobras para um cozido na mesa modesta dos moradores do Cariazal; outros mais, simplesmente se refrescando no banho gostoso do traiçoeiro remanso e o sujeito lá, olhando-nos de cima para baixo, escorado no poder do belo pião enfiado na ilharga do calção, pronto para o enfrentamento, mesmo ali sendo lugar de pescaria e não de uma disputa terrestre.
Paciência tem limite. Aquilo não podia continuar. Fui me aconselhar com o “Rato Branco”, serviçal da casa do Silvestre Reis, escrachado até no apelido, que tinha o diabo no couro mas sabia das coisas, tanto que era respeitado pelos demais porque era bom de porrada e (diziam) introduzira sob a pele do braço direito uma veia de poraquê, que o tornava imbatível nas competições de queda de braço na fila do mercado. Contei-lhe meu problema. Disse que aquele camarada, ao mesmo tempo meu amigo e meu vizinho, sonhava em duelar comigo num jogo de pião, mas eu não dispunha de nenhum, nem de dinheiro para comprar. Terminado o relato, ouvi compenetrado as orientações do ilustre roedor:
- Tem mesa ou cama de madeira na tua casa?
- Claro. Meus pais iam comer ou dormir aonde?
- Claro uma p... Não chateia. Tu quer ou não o conselho?
- Por que essa pergunta sobre a mesa e a cama?
- Tem serrote na tua casa?
- Tem. Mas espera aí. O que mesa, cama e serrote têm a ver com jogo de pião?
- Tu faz o seguinte. Pega o serrote, serra o pé da cama, acerta as bordas com um terçado e coloca um prego na ponta que vira um pião. Se não der, leva pro seu Inácio, bem no lado da Igreja, que ele fabrica caixão de defunto e faz pra ti. Quando ele te desafiar, pode disputar que tu vai acabar ganhando...
Com aquela idéia, larguei a pescaria de jaraqui e entrei furtivamente em casa, esgueirando-me no rumo do quarto dos meus pais. Lá estava a bela cama e para minha sorte, os quatro pés já eram torneados em formato de cone invertido, tornando desnecessária a tarefa de usar o terçado. Arranjei o prego, cortei a cabeça com um alicate, amolei na calçada e fiquei de tocaia esperando todo mundo sair para que o serrote, de ruído escandaloso, fosse utilizado. A chance apareceu quando meus velhos foram fazer compra na “A Pernambucana”, que recebera um enorme estoque de casimira “Aurora” e a Risete avisou que o preço estava uma pechincha. Apanhei a serra e decepei o pé da cama, que obviamente ficou capenga. O jeito foi quebrar um pedado do muro do quintal da dona Domingas, mãe da d. Maria Menezes (precursora das modernas cabeleireiras, ela frisava as madeixas das moças com água quente e não raro uma delas ia para a festa sem um pedaço do couro cabeludo...), nivelando-a na parte posterior, próximo à parede, para que ninguém notasse o estrago. Consegui com o Amadeu, vizinho e comandante do “Sialpe”, um pedaço de linha americana e me senti pronto para duelar com meu antagonista.
Sete e meia da manhã, um sol desmaiado surgiu atrás da Serra da Escama. Morto de preguiça fui tangido para meu dever cívico de comprar os pães e a abominável manteiga na padaria do Careca.
- Seu Caporal, quero cinco pães.
- Pães não hães!
Carcamano f.d.p. um dia tu me paga, pensei. Comprei os pães cacetes e a praga da manteiga “Aviação” que logo viraria mingau e voltei no mesmo passo. Vi seu Galúcio fabricando soldando suas peças na oficina e o padre do velho Vidal tentando cobrir a cabeça num sinal claro que iria chover. Passei pelo quintal do Dr. Emanoel Rodrigues e olhei a quantidade de motores de popa prontos para a próxima caçada de pato do mato, esporte favorito do famoso advogado. Confronte à esquina do José Veríssimo lá estava ele, posudo, com seu pião de jacarandá. Na oportunidade, novo repto me foi lançado:
- E aí Célio, é hoje?
- Como tu quiser. Agora já tenho meu pião...
Deixei na parte que me pareceu mais limpa da calçada os pães e a nojenta da manteiga, riscamos um círculo no chão para “tirar o ponto” e demos início à peleja. Infelizmente perdi (ele era mesmo um craque...) e meu pião feito da perna da cama dos meus pais foi para a roda. Em seguida, após enrolar caprichosamente a linha americana no seu garboso artefato, como que sorvendo prazerosamente cada segundo da minha angustiante expectativa, mirou, aprumou e soltou o golpe fatídico com tamanha violência, que a ponta de ferro do petardo penetrou na frágil peça de cedro improvisada, ficando encravada na mesma, inutilizando-a por completo. Adeus pé da cama, que nunca mais recuperou a performance, nem com o reparo que lhe fez o carpinteiro Vevé.
Julho de 2008. Eu acabara de jogar a preliminar de Mariano X Paraense no Estádio Ary Ferreira, em Óbidos, num calor dos infernos. Troquei de roupa e junto com o Sérgio, meu filho, posicionamo-nos na arquibancada para assistir o prélio entre as equipes titulares desses famosos times locais. Com a voz embargada por incontáveis doses da tinhosa, eis que aparece meu velho opositor, deu-me um abraço e sem meias palavras lançou dessa vez um outro desafio.
- Precisas escrever sobre o nosso jogo de pião, quando tu serraste o pé da cama do teu pai... mas não te esquece que fui eu que ganhei!
- Mas como eu vou contar um negócio que nem me lembro mais?
- Te vira, apela pra tua memória, mas não esquece. Meu pião inutilizou o teu!
No Baile dos Pauxis tornei a encontrá-lo, acompanhado de sua digna esposa. Lá mesmo comecei a reconstituir os fatos, tarefa interrompida com justiça pelo desfile de Monique, a bela Garota Óbidos 2008. Meu estimado amigo João Cândido de Amorim Pinto, não se trata de proselitismo de perdedor, porém, cinqüenta anos depois daquela peleja, está resgatado meu compromisso de narrar o episódio tal como ele aconteceu. Em contrapartida você, sempre brilhante em tudo que faz, ainda tem na consciência um pecado a ser remido. A responsabilidade, embora indireta, por uma cama de apenas três pernas, que me custou uma senhora surra com corda de manilha e até hoje não sei que fim levou.
Fonte:
http://www.obidos.com.br/
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