segunda-feira, 1 de março de 2010

Heloisa Buarque de Hollanda (Longa Vida, o Poema)



Armando Freitas Filho, que neste fevereiro último comemorou seus 43 anos de vida e 20 de poesia, relatou recentemente a um razoável público no auditório da OLAC, sua forma de trabalhar: escreve de pé, frente à mesa, inclinando-se sobre o papel, ou seja, na medida do possível, em posição de sentido.

No trato social, seu grande charme é um sotaque adoravelmente sincopado, um certo “embaraço fônico”. Ou seja, alguma prudência, hesitação, no que diz respeito ao abandono emocional.

No afetivo, uma enorme fidelidade dissimulada por enérgicas representações, regras, compassos e manias (entre as quais, seu copo diário de Longa Vida CCPL 2000, o leite).

No literário, nos dá a dica:

“Esta mão que me escreve
há tanto
e tenta
dizer o que a outra
cala, não consente
segurando
o sonho
a caravela, o delírio
o incrível Hulk
que pode rebentar as costuras
os costumes
que pode
incendiar a casa
o próprio corpo
e avançar
pelo espelho adentro
contra si mesmo.”

O que identifica a longa vida e obra de Armando é, exatamente, o partido que tira deste estado de alerta, ou mais precisamente, da recusa às “facilidades”da emoção e da escrita. Em seu texto não se observa — salvo em raros momentos — aquela opção pela poesia instantânea, informalmente pessoalizada, anotada, diretamente “psicografada” do dia-a-dia que marcou a poesia brasileira recente. Entretanto, a leitura de Longa vida indica uma extrema contemporaneidade com os novos poetas: o jogo, o provérbio, o ready-made, o erotismo escancarado, a sensibilidade política, a vida como o grande tema — um inegável sabor de época. Acontece que — ainda que afinado com as questões e com o sentimento da geração 60/70 — nosso poeta escreve “só/ em último caso/ ou como quem alcança/ o último carro”.

Na apresentação de Longa vida, companheira de viagem, Ana Cristina Cesar (a misteriosa e excelente poeta de A teus pés, hit merecido da poesia 80) tenta decifrar a trama do texto (e talvez da longa vida) de Armando: “Há sempre uma dose dupla sobre a lareira, sob a vista. Há sempre uma tensão entre o vôo livre e a gaiola das loucas, entre um nômade e um sedentário, entre uma mulher que parte de avião e um homem que fica no aeroporto, entre a mesa burocrática e o impulso incendiário, entre o poema superloquaz, perito nas palavras, seus jogos, saltos mortais, e o hemisfério silencioso dos sentidos, entre o “deslizante verso discursivo” e a “lucidez dos sobressaltos” de que fala João Cabral”.

Tratando de dualidade, tentando distinguir e resolver onde a paixão/onde o texto, quando a poesia/quando a vida, o poeta não abre mão de sua marca registrada: um compromisso jurado e sacramentado (ainda que altamente emocionado) com o rigor no trato com a palavra.

Sua longa viagem poética prova e comprova esta determinação. Como não poderia deixar de ser, seu primeiro livro, de 1963, chamou-se Palavra. Tanto Palavra quanto Dual (1966), ligados à vanguarda Praxis, refletem um momento (não diria um resultado) quase que de “exercícios de escrita”, a palavra como um campo experimental rigoroso, muitas vezes de certa forma aprisionador, mas que lhe trouxe como dividendo o inegável know-how do poeta com seu instrumento. Em seguida, publica Marca registrada (1970) onde a preocupação explícita com o momento político traz-lhe alguns problemas “inevitáveis e concretos” e denuncia já um certo olhar voltado para fora, como que um reconhecimento de terreno. Munildo de um evidente domínio do texto, Armando permite-se, então, falar abertamente de si: seguem-se De corpo presente, Mlle. Furta Cor, À flor da pele (estes dois últimos experimentando com Rubem Guerschman e Roberto Maia as possíveis articulações da imagem com o texto poético), À mão livre. Entretanto, sempre atento, adverte:

“À mão livre
mas não tanto
pois escrevo
para não voar
enquanto a loucura
descabelada
por todos os ventos
sobre a escada
perde o pé
e range
dentes e degraus
enquanto escrevo
pelos ares.”

Se a questão da poesia é central em seu trabalho (”quem escreve sempre alcança/ a quem? o quê?”) a questão das viagens “viagens hors texte”não é menos complexa. Trabalhando a fundo as trilhas de seu percurso “sem carro próprio/ sob nome falso”, Longa vida, modulado como um inventário, desfia memórias (relutantes), enigmas de bares e verões em verde-amarelo, impressões de amor e morte “à tona, à toa, na vida anônima”. Fala ainda de um personagem que teme a memória (”Caço/ o que se despede:/ e não deixa nenhum sinal/ pista ou vestígio”) , que teme seu narrador (”armando suas falcratuas/ um eu que é um pseudo/ um índice onomástico/ um mar ou uma/ máscara/ a próxima cara”).

Uma observação inadiável que a leitura de Longa vida sugere: Armando escreve bem. Qualidade que vem se tornando cada vez mais rara nestes últimos tempos de proliferação indiscriminada de poetas. É seguramente esta qualidade que lhe autoriza a resgatar — no melhor estilo 80 — o desejo de ver “a vida voando/ lá fora/ em versos livres/ e brancos”.

Longa vida surpreende exatamente enquanto parece promover o cruzamento entre a preocupação formal e a “escrita da paixão”que caracterizou a poesia jovem da última década. Assim como Marca registrada parecia empenhado em promover o cruzamento entre o experimentalismo de vanguarda e com a preocupação social dos anos 60.

Sem dúvida uma longa vida bem vivida (”Valium, valei-me/ pois aos quarenta/ eu não sei se eu sou eu/ ou se eu sou ou”) a do velho Armando que insiste, entretanto, em não perder de vista os labirintos e os disfarces do poeta fingidor.

Fonte:
Jornal do Brasil – Caderno B Sábado,9/4/83. Disponível em http://www.heloisabuarquedehollanda.com.br/

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