terça-feira, 9 de agosto de 2011

Monteiro Lobato (Viagem ao Céu) XVIII – No planeta maravilhoso


Depois de muita imaginação resolveram partir para Saturno; mas antes disso consultaram o Burro Falante.

A gravidade daquele burro já vinha de muito tempo impressionando a boneca, de modo que ao ouvi-lo responder tão “sentenciosamente” (falar sentenciosamente quer dizer falar como aquele animal falava), Emília bateu na testa e disse:

— Heureca! Achei um nome para o Burro Falante: Conselheiro! ... Tudo que ele diz parece um conselho de velho — e é sempre um conselho muito bom. Viva o Conselheiro!...

E a partir daquele momento o Burro Falante passou a chamar-se Conselheiro.

Resolvido aquele ponto, Pedrinho distribuiu as pitadas de pirlimpimpim e contou — um... dois... e três! O fiunnn foi tremendo — e os cinco viajantes (inclusive o anjinho) foram despertar bem em cima dos anéis de Saturno.

Que maravilha! Os tais anéis, ou discos, eram uma planície sem fim de luz, como o arco-íris — uma lisura luminosa que rodeava o imenso planeta. Pedrinho explicou que a força de atração de Saturno era em certo ponto neutralizada pela força de atração do disco, de modo que naquela zona os seres perdiam o peso — ficavam parados no ar, flutuando na maior das gostosuras. E eles estavam justamente nessa zona onde não havia peso! Começaram, pois, a flutuar, a flutuar...

— Parece um sonho! — dizia a menina. — Estou boiando como num mar de delícias. Oh, gosto dos gostos! Oh, fenômeno!...

E boiaram, boiaram, viraram-se em todas as posições, como se estivessem sobre um invisível colchão de paina solta. O Conselheiro, coitado, sentia-se atrapalhadíssimo, porque, como boiava como os demais, ora se via com as quatro patas para cima, ora para baixo, ora para os lados. Emília jogava o anjinho no ar e ele ficava boiando sem cair. Estiveram naquela zona um tempo enorme, brincando duma coisa que nenhuma criança da Terra nem sequer imagina — brincando de boiar num fluido luminoso e deliciosíssimo.

— É uma gostosura que até enjoa a gente — disse Pedrinho num momento em que estava de pernas para cima, segurando o Conselheiro pelo rabo. — Tudo sem peso! Só agora compreendo a estupidez que é o tal peso lá na Terra. A gente vai fazer qualquer coisa e cansa, por quê? Por causa do peso...

— Mas ter um pesinho é bom — disse a menina, já com saudades dos seus quarenta quilos. — Estou tão acostumada a ter peso que isto aqui me dá a idéia de que estou aleijada — de que está me faltando um pedaço. O peso é um verdadeiro pedaço da gente...

Pedrinho explicou que se conseguissem sair daquela zona chegariam a outra em que o peso volta.

— Então vamos para lá — propôs a menina.

E lá se foram, arrastando-se como puderam. Deu certo. Na segunda zona começaram a sentir um pouco de peso, e com isso a sensação tornou-se-lhes ainda mais agradável. Podiam andar como na Terra, mas com muito cuidado, porque o esforço exigido para cada passo era mínimo. Pareciam em câmara lenta. Tiveram de aprender a andar ali. No começo faziam força demais e com um passo iam parar longe. Por fim acertaram o jogo.

Súbito, Emília gritou:

— Estou vendo uma coisa que deve ser um saturnino — e apontou em certa direção.

Era verdade. Um ser esquisitíssimo vinha na direção deles, exatinho como Dona Benta dissera — todo gelatino e transparente; mas sem forma definida — ia mudando de forma segundo as necessidades. O mais assombroso, porém, foi que o estranho saturnino parou diante deles e falou do modo mais claro e natural possível. Falou, sabem como? Falou espichando lá de dentro da gelatina o “crocotó que falava” — um crocotó que parecia uma dessas águas-vivas que há no mar.

— Bem-vindos sejam aos nossos domínios — disse ele. — Temos acompanhado a viagem de vocês através dos espaços. Sabemos tudo. Ouvimos tudo que vocês, conversaram com São Jorge lá na Lua.

— Então daqui enxergam até a Lua, que é uma isca de satélite? — perguntou Pedrinho muito admirado.

— Sim, para nós não há distâncias. Temos sentidos que vocês não podem compreender. Acompanhamos a vida de todos os seres em todos os astros dos céus. Aqueles pobres telescópios dos astrônomos da Terra fazem-nos sorrir de piedade. São puras “cegueiras” em comparação dos nossos teleolhos.

— Eu bem disse! — gritou Emília. — Eu bem disse que eles tinham telecrocotós. São os tais teleolhos...

— Sim, são os nossos olhos de ver a qualquer distância por maior que seja. E o nosso principal divertimento é esse: ver, ver tudo quanto se passa no universo. Sabemos de toda a vidinha de vocês lá no sítio. Assistimos à morte do Visconde quando caiu no mar. Vimos o tiro com que o Barão de Munchausen cortou o cabresto do burro. Rimo-nos do susto de Dona Benta ao perceber que estivera sentada no dedo do Pássaro Roca, julgando que fosse raiz de árvore.

— Não viu também aquele murro que dei no olho do barão? — perguntou Pedrinho.

— Perfeitamente — e achamos muita graça na idéia.

O assombro dos meninos não tinha limites. A boneca pediu:

— Diga então o que Dona Benta está fazendo lá no sítio.

O saturnino virou o telecrocotó em certo rumo e respondeu:

— Está sentada na redinha da sala de jantar, chorando...

— Chorando? — repetiu a menina, admirada. — Por quê?

— Porque é uma avó muito boa e não sabe por onde andam os seus netos. Meu conselho é que voltem o quanto antes.

Pedrinho fez cara de choro.

— Voltar, justamente agora que encontramos o planeta dos nossos sonhos? Isso é doloroso...

— Concordo, mas vocês têm de admitir que é um crime deixarem uma tão boa criatura largada sozinha naquele planeta feio e triste. A Terra é um dos planetas mais atrasados e grosseiros do nosso sistema solar. Voltem. Tenham dó da velhinha. Um dia poderão dar novo pulo até aqui e trazê-la. Já sabem o jeito.

Os dois meninos concordaram, depois de um longo suspiro. Sim, tinham de voltar para aquele sem-gracismo da Terra, onde os homens não sabem fazer outra coisa senão matar-se uns aos outros.

— Não há dúvida — fungou Pedrinho. — Volto; depois venho cá de novo me naturalizar saturnino. Mas será possível semelhante coisa? Temos a nossa forma, temos só cinco sentidos e estes braços e estas pernas. Aqui em Saturno todas as coisas são diferentes...

— Isso não quer dizer nada. Nós enxertaremos em vocês todos os nossos crocotós, com licença ali da Senhorita Emília.

Aquela conversa com o saturnino foi o maior dos assombros. O que ele disse, o que contou do universo, o que falou a respeito de Sírio e outras estrelas famosas, tudo era da mais absoluta novidade — e um encanto! Os meninos não cessavam de fazer perguntas, que ele respondia com a maior clareza. Quando Pedrinho indagou do que comiam, a resposta foi:

— Nós nos alimentamos de fluidos aéreos. Lá na Terra vocês vivem indiretamente da luz do Sol. A luz do Sol cria as plantas e vocês não passam de praguinhas das plantas, de animais que vivem das folhas das plantas, das sementes das plantas, das raízes das plantas. E como a planta é uma criação da luz do Sol, vocês vivem da luz do Sol — mas indiretamente. Aqui é o contrário. Vivemos diretamente da luz do Sol. Nosso corpo embebe-se da luz solar e vive — e vive muito mais que vocês lá na Terra. Vivemos trinta vezes mais. Dona Benta, por exemplo, não viverá na Terra mais que oitenta ou noventa anos — anos lá de vocês. Aqui ela viveria trinta vezes isso — ou sejam 2.400 ou 2.700 anos...

— E não ficam doentes?

— Não há doenças em Saturno. Isso de doenças quer dizer “imperfeição adaptativa”. Vocês lá na Terra são seres ainda muito pouco evoluídos, seres bastante rudimentares. Não passam de “experiências biológicas”. Seres que ainda vivem de plantas são seres que ainda estão engatinhando na estrada larga da evolução.

Os meninos piscavam os olhos no esforço de entender o que o saturnino dizia.

— Bom, brinquem mais um pouco e voltem para a Terra. Dona Benta está dando suspiros cada vez maiores...

Disse e afastou-se gelatinosamente.

Assim que se viram sozinhos, os três tiveram uma idéia para a despedida: brincarem de patinar nos anéis de Saturno. Com o pouco peso que sentiam, a coisa seria facílima e deliciosa — e puseram-se a patinar, todos, até o anjinho. Todos, menos o Burro Falante. O pobre animal ficou de lado, vendo a linda brincadeira.

Numa das voltas que Emília estava dando aconteceu passar rentinho dele.

— Venha também! — gritou-lhe a boneca. — Aproveite!

O burro sentiu uma vontade imensa de aceitar o convite. Nunca havia brincado em toda a sua vida e a ocasião era ótima.

Não havia por perto “gente grande” para “reparar”. Mesmo assim se conteve. Ele era o Conselheiro, um personagem austero e grave. Precisava respeitar o título — e continuou imóvel onde estava, com as orelhas ainda mais murchas e o olhar ainda mais triste. Jamais brincara em criança — e também não brincaria naquele momento. Seu destino era passar a vida inteira sem regalar-se com as delícias do brincar. E o Conselheiro deu um suspiro arrancado do fundo do coração.

Os meninos por fim cansaram-se daquilo. Cansaram-se de patinar nos anéis de Saturno e pararam.

— Chega — disse Pedrinho. — Estou com remorso. A coitada da vovó chorando lá na rede. Isso é judiação.

E tratou de voltar à Terra. Antes, porém, tinham de portar na Lua para pegar Tia Nastácia.
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Continua … XIX – De novo na Lua
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Fonte:
LOBATO, Monteiro. Viagem ao Céu & O Saci. Col. O Sítio do Picapau Amarelo vol. II. Digitalização e Revisão: Arlindo_Sa

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