Baseado nas cartas amorosas escritas por uma freira no século XVII, o espetáculo de Bia Lessa desdobra a personagem em duas atrizes, Luciana Braga e Carla Camurati, num palco que abriga uma cenografia natural de plantas e águas.
Interna no Convento Concepção de Beja, em Portugal, a madre Mariana Alcoforado escreve cartas ao amante, um oficial militar que servia na França. As cinco cartas escritas e postumamente publicadas foram adaptadas pelo cineasta Julio Bressane para o espetáculo dirigido por Bia Lessa.
O cenário de Fernando Mello da Costa, constante parceiro da encenadora, monta um ambiente bucólico, com o palco coberto de terra e cortado por um riacho, preenchido de árvores e pedras. A composição concreta de um bosque retrata menos o lugar de uma ação do que a subjetividade da apaixonada. O texto, de inegável veia romântica, preserva do original a descoberta do amor e, na ausência do ser amado, a dedicação ao próprio sentimento, expressa em frases como: "Odeio a tranqüilidade da minha vida antes de te conhecer".
Em crítica para a revista Veja, Arnaldo Lorençato escreve: "O palco se inunda de sensualidade na pele de Carla Camurati, enquanto Luciana Braga compõe uma religiosa de delicadeza e fragilidade surpreendentes. Num cenário magnífico recortado por um riacho, a dureza da clausura ganha a aparência de floresta. Ali, Mariana se cobre de lama e tenta o suicídio. Seu tormento beira o insuportável, realçado pela trilha sonora, que inclui Polegnala e Todora, por coros femininos de vozes búlgaras. O dramalhão, no entanto, foi evitado. Há até humor, particularmente quando o texto revela as artimanhas femininas usadas para a conquista, como cozinhar ou costurar".1
A crítica Maria Lúcia Pereira aprofunda os princípios que fundam o trabalho da encenação: "Na exploração da teatralidade está a chave do trabalho de Bia Lessa. O cenário naturalista de um bosque (feito com árvores verdadeiras) cortado por um riacho é pontuado por signos de evidente falsidade. Neste sentido, é emblemática a pomba de papier mâché, mensagem dos amantes. Ela desce grotescamente do urdimento balançando-se na ponta de um barbante. É, neste momento, portadora de uma mensagem ao público: 'Isto é teatro'. Enquanto elemento cênico contém em si seu reaproveitamento na repetição do espetáculo no dia seguinte, e no dia seguinte, até o final da temporada. É assim no teatro, está convencionado. Porém, num momento de decisão, a pomba é arrancada do fio donde pende e literalmente enterrada na lama real. Rompe-se, deste modo, a convenção implícita. Bia Lessa não respeita limites, muito menos os tácitos, e circula voluntariamente entre o real e o simbólico. O truque teatral que não conta o segredo de seu funcionamento é aliado ao mais singelo exercício de interpretação - e aqui nos referimos especificamente à maravilhosa cena na qual Luciana Braga levita e transmite, num simplório jogo de salão de mímica, seus sentimentos mais profundos a Carla Camurati. Tanta simplicidade, envolta pela essência do teatro - o jogo - proporciona um momento de suspensão no tempo onde se opera a comunhão ritualística entre palco e platéia".2
Antecedido pela ópera Suór Angélica, de Giacomo Puccini, 1990, e sucedido por Don Giovanni, outra ópera, agora de Wolfgang Amadeus Mozart, 1992, Cartas Portuguesas integra um grupo de espetáculos que retrata a forte e instigante visualidade da encenação de Bia Lessa.
Notas
1. LORENÇATO, Arnaldo. Cartas inflamadas. Revista Veja, São Paulo, ano 25, n. 18, abr.-mai., 29 abr. 1992. Veja SP, p. 68.
2. PEREIRA, Maria Lúcia. Um emocionante ritual cênico. O Estado de S. Paulo, S. Paulo, 22 abr. 1992. Caderno 2, p. 2.
Fonte:
2 comentários:
aqui JOSE AUGUSTO BICALHO(JO and CO) estilista carioca convidado por Bia Lessa para criar os figurinos da peça Cartas Portuguesas.Seria muito bom ver esta menção no texto onde falam do cenário etc...etc....Figurinos e nome de Jose Augusto constam do programa(um lindo missal prateado).......JOSÉ AUGUSTO BICALHO
Muito bom gostei
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