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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025
Silmar Bohrer (Gôndola de Versos) 09
Eduardo Affonso (Propostas afins)
Vocês já se divertiram à beça com a proposta estapafúrdia de se implantar uma linguagem neutra que, trocando um “O” por um “E”, acabaria com todes es problemes de machisme, misoginie, homofobie, transfobie etcétere.
Mas a ideia, em si, não é ruim. O que estraga é ser pouco abrangente e se limitar à questão de gênero. Há várias outras formas de opressão linguística – e a maior delas é… a opressão linguística. Eu aproveitaria que todos os livros terão que ser reescritos e mandaria ver numa linguagem realmente inclusiva.
Muita gente não entende, por exemplo, a diferença entre “mau” e “mal”. E deve se sentir muito mau contando a história do lobo mal para os filhos, sem saber quando está usando um adjetivo ou um advérbio.
Solução: uniformizamos a grafia, e daqui pra frente será “mao”. Tanto fará ser bom ou mao, andar bem ou mao acompanhado. Isso no singular, porque no plural continuará havendo males que vêm para o bem, e os bons acabarão pagando pelos maus.
De uma penada só, lá se vão 25% dos erros de português.
“Mas” e “mais” são outra desgraça que pode estar com os dias contados se adotarmos a grafia única “maes”.
O corretor ortográfico vai criar caso nos primeiros dias, maes nunca maes teremos dúvidas se é para usar a conjunção adversativa ou o advérbio de intensidade.
Outros 25% de erros eliminados.
“Menos” ou “menas”? Menes.
“Meio” ou “meia”? Meie, seja adjetivo, advérbio, numeral ou substantivo.
“Há” ou “a”? Ah! Seja artigo, verbo, preposição ou interjeição – e ah crase vai fazer companhia ao trema, ah fita para máquina de escrever e ao estado civil de “desquitada” no limbo das coisas que perderam ah razão de existir ah muito tempo.
Ah menes que você seja uma pessoa meie lenta, já terá percebido que ah inúmeras vantagens nessas alterações – ah maior delas sendo outros 25% de correções a menes ah fazer nas provas do Enem, nas matérias dos jornais, nos tuítes de ministros da Educação.
Finalmente, a pergunta que não quer calar: por que o português tem que ser tão complicado? Deve haver um porquê. Talvez porque um monte de filólogos mortos tenha decidido assim – mas por quê?
Não importa. Na reforma contra o preconceito linguístico tudo vai virar “pq”.
Pq? Pq sim. Não tem que ter pq.
E lá se vão os 25% de erros restantes.
Por isso, pensem duas vezes antes de criticar seus amigues progressistes e as fórmulas mirabolantes que eles inventaram para resolver os problemas do mundo com uma canetada. Eles podem ser çem noção mas não estão çem por cento errados. (O “ç” também é uma mão na roda, né não?)
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EDUARDO AFFONSO, arquiteto mineiro de Belo Horizonte, 1950. Colunista do jornal O Globo. Coordena a Oficina Literária Eduardo Affonso, voltada para cronistas. Participa do coletivo literário Flique Nenhum livro publicado.
Fonte:
Blog do Eduardo Affonso. 27 outubro 2020.
https://tianeysa.wordpress.com/2020/10/27/propostas-afins/
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AJ Fontes (A primeira ficou)
Nota do blog: Ontem havia sido publicada esta crônica, contudo só vim a perceber hoje que ela estava incompleta, por isso desconsiderem a de ontem, e vale a de hoje.
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A lâmpada na linha da cumeeira clareia as meias paredes que separam do dormitório e da copa, o quarto onde apetrechos de caminhadas e acampamentos cabem numa caixa organizadora, livros, dicionários, agendas antigas em outra e sabão em pó, desinfetante, água sanitária, pasta dental e papel higiênico numa terceira. Juntei a mesa plástica desmontada, o saco de ração, sapatos, retirei roupas penduradas na corda atravessada.
O chão está limpo e coberto por panos, faz dois dias. Passava das oito da noite quando trouxe Amora, a negra e grande cadela. Desde cedo da tarde se mostrava inquieta na área de serviço. Silenciosa, procurava meu olhar, caminhava pelos cantos, raspava o chão e a parede com a pata dianteira.
Instalei uma espreguiçadeira e, sentado, assisto aos movimentos repetidos: vai e vem, rói um canto da parede, deita e dá um grande suspiro e perde o olhar no cansaço.
Não adiantou os cuidados em evitar a prenhez. Um descuido e não a encontrei no quintal. Os dias seguiram, o apetite aumentou; buscava lixo e voltou, após nova escapada, com um bafo terrível. Saltou aos meus olhos o cansaço e o corpo redondo.
O imponderável presenteia o incauto e o cuidadoso. O pacote colorido, laçarote brilhante traz surpresas variáveis no valor, afinal são diferentes os olhos e corações que recebem.
A situação inusitada me excitou, confesso. O desconhecimento do pai não foi problema. Preocupei-me com a saúde dela. Cuido de Amora faz poucos meses. A suposta idade acima de cinco anos e várias barrigas, além do coração aumentado, segundo o veterinário, trouxeram dúvidas quanto a capacidade do corpo suportar mais essa.
Cochilos sucedem às observações da cena repetida. Lembrei das horas angustiantes antes do nascimento do primeiro filho, da correria em busca do anestesista durante o parto do segundo. Será difícil carregar a aquele ser com seus cinquenta quilos até o carro, dirigir até a cidade mais próxima, cerca de vinte e cinco quilômetro do sítio onde estamos.
Ela aparenta estar bem. Sofre as dores, mas o comportamento é de uma conhecedora do assunto. Cabe aguardar.
Impressiona-me a força da mulher. Nós homens não temos como avaliar, embora se diga: expelir uma pedra dos rins pela uretra se aproxima ao sentimento físico, mas é físico. Não conseguimos ao menos imaginar outros sentimentos.
Sentir, em um instante, algo novo acontecendo dentro do corpo e acompanhar as mudanças de ambos até que esse novo se projeta aos nossos olhos, iniciando um caminho só dele, mas com marcas, visíveis ou não, dessa união ímpar.
O canto dos pássaros anuncia a chegada do sol. Abro a janela e recebo os raios, frios ainda. Cuscuz, café, ovos, depois de um suco verde, revigoram.
A amiga querida descansa, diz o ronco peculiar. Os afazeres me dividem entre ficar ou sair, mas o aparente estado de tranquilidade me encoraja. Carrego o medo no bolso da algibeira, de olho para que não se arvore em crescer, rasgar as calças e me arrastar. Otimista, repito: está tudo bem!
Desliguei o carro e procuro algum som vindo da casa... nada ouço. Sem estar certo se é bom ou não desço levando compras. Largo tudo no balcão da área de serviço, e atendo o celular. Uma chamada de vídeo da namorada, buscando notícias da parturiente. Caminho para o quarto. Mostro Amora, surge um pacote translúcido, brilhoso, molhado. Silenciosa a mãe trata de remover a placenta, limpar os vestígios e massagear vigorosamente. O rebento chora.
Nasceu o primeiro!
Uma hora depois chega o segundo e nem bem se recompunha, o terceiro; tempo suficiente para os trabalhos de recebimento, um breve descanso enquanto tateiam e reconhecem o corpo e sons a partir desse novo ângulo e encontram as tetas. A vida se inicia aqui fora.
Não sei qual foi mais difícil de deixar: o ventre de minha mãe ou a casa de meus pais na juventude. Do primeiro sei o que contaram, mas busquei sair de casa desde cedo. Nesses dias o conforto, a segurança da família e a vontade de realizar as proezas imaginadas, eram os dois lados de uma gangorra.
Passa do meio-dia e perco mais uma vez a contagem. As cores variam do creme ao negrume da mãe. Um grito fino e apanho o desgarrado ou desgarrada, não sei. Cheguei a perceber um “o que você pensa que está fazendo?” no olhar e devolvi ao mesmo lugar. Seguiu-se um muxoxo e as lambidas na cria.
À tardinha, deitada, arfando, apenas observa o movimento caótico dos sete ou oito ou nove em busca de uma teta. Ajudei a limpar, juntei, com a permissão devida, todos e todas – aproveitei e fiz uma contagem que defini confiável de nove nascidos – passei panos molhados, troquei por outros secos.
Nos dias seguintes os olhos se abrem. Será que pensam eu ser o pai? Afinal me viram depois da mãe. Limpo a sujeira após as mamadas, correm de mim a esconder sob a casinha de madeira no manejo, fitaram meu rosto, as fêmeas e o macho, sentados no momento que acertava a adoção deles. Confesso que acelerei o processo ou ficaria com todos.
Passados dois meses, resta um cocozinho aqui, um xixizinho ali; sobram latidos, grunhidos, garrafas plásticas amassadas; fujo das mordidas nos calcanhares e Amora brinca; lagartas e o gato correm do assédio.
Paçoca, a primeira, ficou.
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AJ FONTES (ANTONO JOSÉ DE OLIVEIRA FONTES), pernambucano, contista e cronista, engenheiro aposentado, publicou o livro de contos: Mantas e Lençóis.
Fontes:
Flávia Suassuna (coord.). Rede solidária: coletânea de textos. Recide/PE: 2021. e-book. Enviado por Therezinha D. Brisolla
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Estante de Livros ("A Terra do Velho Chefe", de Doris Lessing)
"A Terra do Velho Chefe" é uma das histórias mais conhecidas de Doris Lessing, publicada em sua coleção "Histórias Africanas" de 1965. A narrativa é uma reflexão sobre a descolonização e a desintegração das estruturas sociais tradicionais na África, vista através dos olhos de uma jovem garota branca que cresce em uma fazenda na Rodésia do Sul (atual Zimbabwe).
Resumo
A história segue a vida de uma menina de 14 anos, filha dos donos de uma fazenda europeia em uma região outrora tribal da África. A narradora descreve suas interações com o velho chefe tribal Mshlanga, que representa a resistência cultural e a tradição em um mundo em rápida mudança. A relação entre a menina e o chefe é marcada por um respeito mútuo, mas também por uma clara divisão cultural e social.
Temas Principais
Desenraizamento e Desintegração Cultural:
A história aborda a desintegração das estruturas sociais tradicionais e a perda de identidade cultural devido à colonização e à modernização. O velho chefe Mshlanga simboliza a resistência à mudança e a preservação das tradições ancestrais.
Racismo e Desigualdade:
Lessing explora as crueldades do racismo e da segregação racial nas fazendas europeias da Rodésia do Sul. A narradora, apesar de ser uma criança branca, começa a questionar as injustiças e desigualdades que observa ao seu redor.
Relação entre Culturas:
A história destaca a complexidade das relações entre as culturas colonizadora e colonizada. A narradora desenvolve um respeito profundo pelo chefe Mshlanga, que lhe ensina sobre a importância da terra e da tradição.
Personagens
A Narradora:
Uma garota de 14 anos que cresce em uma fazenda europeia na Rodésia do Sul. Sua visão da vida muda ao longo da história, à medida que ela começa a questionar as normas sociais e raciais ao seu redor.
Velho Chefe Mshlanga:
Um líder tribal que representa a resistência cultural e a tradição. Sua relação com a narradora é marcada por um respeito mútuo, mas também por uma clara divisão cultural e social.
Estilo e Técnica
Narrativa em Primeira Pessoa:
Lessing utiliza a perspectiva em primeira pessoa para proporcionar uma visão íntima e pessoal das experiências da narradora. Isso permite que o leitor se identifique com a protagonista e compreenda suas mudanças internas.
Descrições Detalhadas:
Emprega descrições ricas e detalhadas para criar uma atmosfera autêntica e envolvente. As paisagens da África e a vida na fazenda são retratadas com precisão e profundidade.
Simbolismo:
O velho chefe Mshlanga e a terra são símbolos poderosos de resistência e tradição. A narrativa utiliza esses símbolos para explorar temas mais amplos de desenraizamento e desintegração cultural.
Impacto e Relevância:
"A Terra do Velho Chefe" é uma obra-prima da literatura pós-colonial que continua a ressoar com os leitores devido à sua exploração profunda dos temas de desenraizamento, desintegração cultural e racismo. A habilidade de Lessing em criar personagens complexos e uma narrativa envolvente faz desta história uma leitura obrigatória para quem deseja entender as complexidades da história e da cultura africana.
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Doris Lessing (1919-2013) foi uma escritora britânica nascida em Kermanshah, Irã, em 22 de outubro de 1919. Seus pais eram britânicos, e a família se mudou para a Rodésia do Sul (atual Zimbabwe) quando ela tinha cinco anos2. Doris cresceu em uma fazenda, onde foi exposta às duras realidades da vida rural e às complexidades das relações raciais.
Ela começou a escrever cedo e publicou seu primeiro romance, "The Grass Is Singing", em 1950. Este livro abordava a relação entre um casal branco e seu servo africano, e já mostrava o interesse de Lessing pelas questões sociais e raciais2.
Lessing é mais conhecida por seu romance "O Carnê Dourado" (1962), que é considerado um marco do feminismo na literatura. A obra explora a vida de uma escritora feminista e suas lutas pessoais e políticas2. Ao longo de sua carreira, ela escreveu mais de 50 livros, incluindo romances, contos, ensaios e até mesmo ficção científica.
Em 2007, Doris Lessing foi agraciada com o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se a pessoa mais idosa a receber o prêmio até então. O comitê do Nobel descreveu sua obra como "uma épica da experiência feminina, que com ceticismo, fogo e poder visionário, submeteu uma civilização dividida a uma análise"1.
Lessing faleceu em 17 de novembro de 2013, em Londres, aos 94 anos. Sua obra continua a ser amplamente lida e estudada, e ela é lembrada como uma das grandes vozes da literatura do século XX.
José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: Copilot. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Edy Soares (Fragata da Poesia) 72
Luís da Câmara Cascudo (Maria Gomes)
Um homem viúvo tinha tantos filhos que não os podia alimentar nem vestir convenientemente. Quase sempre, na hora das refeições, uma das crianças ficava com fome. O Pai lastimava-se de sua miséria e, na falta de outro auxílio, deliberou abandonar um dos filhos na floresta. Tirou a sorte e recaiu na filhinha Maria que era muito inteligente, bonita e trabalhadora.
O homem levou a mocinha para a floresta e a deixou debaixo de uns pés de araçá, recomendando que se orientasse pelas pancadas do machado com que ele ia derrubar uma árvore para tirar uns favos de mel de abelhas.
Maria ficou, ficou, ficou. As horas passavam e o dia estava escurecendo quando ela ouviu umas pancadas. Procurou caminhar na direção do som e encontrou apenas o cabaço amarrado a um galho. O vento é que o fazia bater e provocava o barulho.
Vendo-se perdida, Maria andou, andou, andou e, ao anoitecer, subiu a uma árvore e de lá avistou o telhado de uma casa. Desceu e caminhou até deparar um casarão muito velho quase em ruínas, num descampado que metia medo aos mais corajosos.
Muito cansada e faminta, Maria rodeou a casa, entrou por uma porta larga e viu que as paredes estavam cheias de instrumentos de música e havia uma rede armada a um canto. A moça segurou um violino e tocou, tocou, tocou. De repente apareceu uma mesa coberta de iguarias fumegantes e apetitosas.
Uma voz misteriosa disse:
– Maria Gomes? O jantar está na mesa!
Maria jantou à vontade. Quando acabou, a voz se ouviu:
– Maria Gomes? Seu quarto é o último, no corredor!
A moça encontrou um quarto preparado de tudo, muito confortável, com roupa para mudar e objetos de uso. Deitou-se e dormiu tranquilamente.
Passaram-se muitas semanas. A moça tocava música; durante o dia, arranjava a casa, limpando-a. Não via pessoa alguma. Apenas a voz misteriosa dirigia o serviço.
Numa noite, a voz informou:
– Maria Gomes? Seu pai está doente. Quer ir vê-lo?
– Quero! – disse Maria Gomes.
A voz continuou:
– Amanhã pela manhã estará um cavalo branco selado esperando à porta. Dentro daquela gaveta há muito dinheiro. Leve quanto desejar para sua família. Tenha todo cuidado em obedecer a duas condições: primeira é não dizer onde e como está vivendo. A segunda é atender aos relinchos do cavalo. Quando ele der o primeiro relincho, despeça-se de todos. Ouvindo o segundo, esteja no meio do caminho e ao terceiro meta o pé no estribo. Se perder o cavalo nada mais posso fazer. Não esqueça!...
No outro dia tudo sucedeu como a voz ensinara. Maria encontrou o cavalo, com sela, montou-o e num minuto estava em casa do pai.
O velho melhorou logo que a viu e recebeu muito dinheiro, ficando todos satisfeitíssimos com a visita da moça que julgavam morta e devorada pelas feras da mata.
No meio da conversa, Maria ouviu o relincho do cavalo branco. Imediatamente abraçou o pai, os irmãos e as irmãs, recusando todos os oferecimentos, e correu para a estrada. Nada dissera de sua vida, embora fosse muito interrogada.
Ao segundo relincho do cavalo, a moça estava bem perto do animal e, mal este deu o terceiro sinal, Maria meteu o pé no estribo e foi transportada velozmente para o casarão misterioso no meio da floresta.
Assim outros tempos correram. Duas vezes Maria Gomes visitou seu pai. Na última ocasião o velho, já bem alquebrado pela idade e doença, faleceu. Maria chorou muito, agarrada com os irmãos. Soluçava tão alto que não ouviu o primeiro relincho do cavalo branco. Percebendo o segundo, correu como uma bala mas o terceiro relincho não a alcançou em ponto de montar.
O cavalo partiu e Maria Gomes continuou correndo atrás do cavalo, gritando, chamando e chorando. Já estava exausta quando o animal voltou, coberto de espuma e se deteve esperando que ela o montasse.
– Se você não corresse atrás de mim eu voltaria para matá-la à força de coices –, disse o cavalo encantado.
No outro dia a voz explicou:
– Maria Gomes? Você já tem me servido muito. Agora eu devo ajudar você e completar minha sina. Vista-se de homem e monte o cavalo branco do qual nunca mais se separe e ouça todos os conselhos que ele lhe der. Será para sua e minha felicidade.
A voz emudeceu. Maria dormiu. Pela manhã vestiu-se de homem, encheu os bolsos de dinheiro, montou o cavalo branco e galopou até um reinado próximo.
Aí procurou empregar-se e, sendo robusto, benfeito e simpático, falando com desembaraço, encontrou o lugar de jardineiro no palácio do Rei.
O príncipe vinha todas as manhãs olhar as flores e conversar com o jardineiro com quem acabou sendo amigo íntimo. Sem saber por quê, ia-se apaixonando pelo rapaz. Os olhos do jardineiro pareciam duas joias. O príncipe dizia à rainha velha: Minha Mãe do coração, Os olhos de Gomes matam, De mulher sim, d’homem não!
A rainha velha dissuadia o filho dessa impressão, mas o príncipe teimava, teimava, teimava cada vez mais inseparável do Gomes.
Maria Gomes colocara o cavalo numa manjedoura vizinha ao seu quarto e não saía sem ele. Nunca montou outro animal apesar dos oferecimentos do príncipe.
Este vivia repetindo que os olhos de Gomes eram de mulher. A rainha velha aconselhou-o:
– Leve Gomes para uma caçada. Na hora de dormir arme as redes debaixo do jasmineiro grande que é encantado. As flores caem em cima das mulheres e as folhas em cima dos homens. Pela manhã, bote reparo onde ficaram as flores...
O príncipe foi com Gomes caçar. Armaram as redes, pela tardinha, debaixo do jasmineiro. O príncipe adormeceu logo e Gomes depois. As flores caíam na rede de Maria e as folhas em cima do príncipe. O cavalo branco que estava perto aproximou-se, relinchou e as flores caíram no príncipe e as folhas em Gomes.
Pela manhã o príncipe estava que parecia uma noiva ou um anjo, todo vestidinho de jasmins. Ficou decepcionado e voltou ao palácio sem saber da verdade.
A rainha velha deu outra orientação:
– Leve Gomes para um banho no rio. O jeito é você ficar sabendo...
Foram os dois. O príncipe caiu logo n’água e Gomes começou a despir-se lentamente, conforme o cavalo lhe dissera. Quando ficou apenas com a camisa, o cavalo começou a pular, a piafar, atirando patadas e desembestou pelo campo, obrigando Gomes e o príncipe, este nu em pelo, a correrem para aquietá-lo. Quando o conseguiram, Gomes estava molhado de suor e o príncipe cansadíssimo.
A rainha velha escolheu outro caminho:
– Convide ele para almoçar no palácio. Se for mulher sentar-se-á em cadeira baixa e esperará que a sopa esfrie.
O príncipe convidou Gomes e este foi ouvir o cavalo que lhe explicou tudo. No almoço, Gomes escolheu uma cadeira alta e tomou a sopa bem quente.
A rainha velha não desanimou:
– Quando estiverem conversando, em roda, sacuda uma laranja para ele. Se for mulher, habituada com a saia, abrirá as pernas para ter maior espaço e melhor aparar a fruta. Se for homem, juntará as pernas.
O cavalo, que adivinhava, avisou a Gomes. Sacudiram a laranja e Gomes apertou as pernas.
A rainha velha falou ainda:
– Só resta uma forma. Durma uma noite no mesmo quarto.
O príncipe convidou Gomes para um trabalho no palácio e o prolongou tanto que o falso rapaz foi obrigado a ficar para dormir nos aposentos do amigo. O príncipe esperou que Gomes adormecesse mas a moça resistiu toda a noite. Assim ainda a segunda, mas, na terceira, não podendo com as pálpebras, dormiu. O príncipe passou a mão pelo busto do amigo e encontrou a saliência dos seios.
– Eu bem sabia que você era mulher e não homem. Como estou apaixonado, prepare-se para casar comigo.
Pela manhã Maria Gomes foi onde estava o cavalo e contou tudo.
– Sei perfeitamente. Já chegou meu tempo de liberdade. Daqui a dias é 13 de junho, dia de Santo Antônio, meu padrinho. Peça ao Rei velho que marque umas cavalhadas para esse dia, convidando todo mundo. Eu comparecerei e te levarei comigo porque teu noivo sou eu!
Maria Gomes ficou radiante e foi pedir ao Rei velho que anunciasse umas cavalhadas, com jogo de argolinhas, para o dia de Santo Antônio. O Rei velho, que era muito influído para essas festas, convidou toda a gente e preparou um terreiro enorme, com arquibancadas para os fidalgos e as famílias assistirem.
No dia de Santo Antônio o terreiro ficou negrejando de gente. Cavaleiros sem conta compareceram, vestindo luxuosamente. Logo ao começar a justa surgiu um cavaleiro desconhecido, coberto de prata, magnificamente montado e correu argolinhas com todos os outros vencendo-os facilmente. Trouxe todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do Rei muito lisonjeado.
O príncipe achou o cavaleiro muito antipático e não o aplaudiu.
No segundo dia, o cavaleiro voltou, vestindo roupa de ouro, e venceu a todos, entregando as argolinhas à rainha velha.
No último dia o cavaleiro, vestindo diamantes, derrotou todos os adversários e pôs as argolinhas no colo do príncipe, que virou o rosto para não fazer a vênia de agradecimento.
Nesse momento o cavaleiro atirou uma fita azul em Maria Gomes. Esta segurou uma ponta com o bico do pé e a outra com os lábios, fechando os olhos, como lhe dissera o cavalo, dias antes. Instantaneamente encontrou-se na garupa do cavalo que o cavaleiro montava.
Rei, rainha, príncipe, povo, todos correram para prender o raptor mas ninguém viu senão a poeira.
O cavaleiro galopou até o casarão velho. Parou e desceu Maria Gomes. Assim que esta pisou no chão, ouviu-se um estrondo e o casarão transformou-se num lindo palácio, resplandecente de luzes e cheio de criados, fidalgos e camareiros. Maria Gomes casou-se com o cavaleiro que era o cavalo encantado, e foram felizes como Deus com os anjos.
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LUÍS DA CÂMARA CASCUDO nasceu em Natal/RN, em 1898 falecendo na mesma cidade em 1986. Foi um historiador, sociólogo, musicólogo, antropólogo, etnógrafo, folclorista, poeta, cronista, professor, advogado, jornalista e escritor brasileiro. Passou toda a sua vida em Natal e dedicou-se ao estudo do folclore e da cultura brasileira. Foi professor da Faculdade de Direito de Natal, hoje Curso de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), cujo Instituto de Antropologia leva seu nome. Deixou obra volumosa e de grande relevância, em particular sobre história, folclore e cultura popular. Recebeu o Prêmio Machado de Assis pela Academia Brasileira de Letras, em 1956, pelo conjunto de sua obra.
Fontes>
Luís da Câmara Cascudo. Contos Tradicionais do Brasil. Publicado originalmente em 1946. Disponível em Domínio Público.
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Estante de Livros ("Histórias de Fantasmas", de Charles Dickens)
"Histórias de Fantasmas" (Ghost Stories) é uma coleção de contos escrita por Charles Dickens, publicados pela primeira vez em 1º de janeiro de 1866, onde ele explora o sobrenatural com sua habilidade única de capturar a essência da vida vitoriana.
Dickens utiliza sua habilidade narrativa para explorar o medo e o desconhecido. As histórias são ricas em detalhes e atmosfera, mergulhando o leitor em um mundo onde o sobrenatural se cruza com a realidade cotidiana.
Temas:
Os temas principais incluem a culpa, a vingança, o medo do desconhecido e a fragilidade humana diante das forças sobrenaturais. Dickens frequentemente retrata personagens que são assombrados não apenas por fantasmas, mas por suas próprias consciências e ações passadas.
Estilo:
O estilo é descritivo e detalhado, criando uma atmosfera sombria e opressiva. Ele usa a ambientação vitoriana para adicionar autenticidade às suas histórias, muitas vezes incorporando elementos de sua própria vida e das crenças da época.
Personagens:
Os personagens de Dickens são complexos e muitas vezes moralmente ambíguos. Eles são desenhados de forma a refletir as tensões sociais e psicológicas da era vitoriana, tornando as histórias não apenas assustadoras, mas também reflexivas sobre a natureza humana.
Impacto:
"Histórias de Fantasmas" é um clássico do gênero e influenciou muitos autores posteriores. As histórias são não apenas exemplos brilhantes de narrativa de terror, mas também comentários sociais disfarçados de contos de fantasmas.
Resumos dos principais contos:
O Sinaleiro:
Um sinaleiro de trem começa a ver visões de um fantasma que aparece ao lado dos trilhos. Cada vez que o fantasma aparece, um acidente trágico segue. A história gira em torno do sinaleiro e de um visitante, enquanto tentam entender e prever os acontecimentos assombrosos.
Para ser lido ao anoitecer:
Um grupo de amigos se reúne para contar histórias de fantasmas. Um dos amigos relata uma experiência pessoal em que foi assombrado pelo espírito de um homem morto em um duelo. A atmosfera sombria e os detalhes vívidos criam uma sensação de medo e suspense.
A visita do Sr. Testator:
Este conto fala sobre um homem que é assombrado pelo espírito de um conhecido. O espírito aparece a ele em diversas ocasiões, causando medo e incerteza. A trama explora a ideia de culpa e redenção através das assombrações.
O Beco do Fantasma:
A história segue um homem que se muda para uma casa nova em um beco assombrado. Ele começa a perceber atividades paranormais e tenta descobrir o segredo por trás do fantasma que assombra o lugar.
A Noite de Natal:
Neste conto, um homem tem uma série de encontros com fantasmas na noite de Natal. Cada espírito revela algo sobre seu passado, presente ou futuro, levando-o a uma transformação pessoal e moral.
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Análise do conto "O Sinaleiro" de Charles Dickens
"O Sinaleiro" é um dos contos mais emblemáticos de Charles Dickens e exemplifica sua habilidade em criar atmosferas de suspense e terror psicológico.
Resumo: "O Sinaleiro" narra a história de um sinaleiro de trem que é assombrado por visões de um fantasma perto de seu posto de trabalho, um túnel ferroviário. As visões do fantasma são sempre seguidas por desastres ferroviários ou mortes, levando o sinaleiro a viver em constante temor. A história é contada do ponto de vista de um visitante que se interessa pela estranha situação do sinaleiro e tenta ajudá-lo a compreender as visões.
Temas:
Fatalismo e Destino:
A inevitabilidade dos acidentes após as aparições do fantasma sugere um forte sentido de destino, onde os eventos trágicos parecem predestinados e inescapáveis.
Medo e Loucura:
O conto explora como o medo pode levar à deterioração mental. O sinaleiro vive em constante ansiedade e paranoia, o que levanta questões sobre a linha tênue entre sanidade e loucura.
Isolamento:
O sinaleiro trabalha em um local isolado e sombrio, o que contribui para sua sensação de solidão e desespero. Seu isolamento físico reflete seu isolamento psicológico.
Personagens:
O Sinaleiro: Ele é um homem dedicado ao seu trabalho, mas as aparições do fantasma e os subsequentes desastres o deixam em um estado de pavor constante. Sua luta para entender e controlar as visões adiciona uma camada de tragédia pessoal à narrativa.
O Visitante/Narrador: Ele serve como o ponto de vista externo, tentando racionalizar os eventos que o sinaleiro experimenta. Sua descrença inicial se transforma em uma tentativa genuína de ajudar, mas ele permanece impotente diante das forças sobrenaturais.
Ambiente:
A ambientação do conto é sombria e opressiva, com descrições vívidas do túnel ferroviário e do posto de trabalho do sinaleiro. A escuridão e a desolação do local criam uma atmosfera de mistério e medo, realçando o terror psicológico.
Estilo e Técnica:
Narrativa em Primeira Pessoa:
A escolha de Dickens de usar um narrador em primeira pessoa permite ao leitor vivenciar a história através dos olhos do visitante, aumentando a sensação de imersão e realismo.
Detalhamento:
Emprega descrições ricas e detalhadas para criar uma atmosfera palpável. O leitor pode quase sentir a umidade e ouvir os sons do ambiente do sinaleiro.
Simbolismo:
O fantasma pode ser visto como um símbolo dos próprios medos e ansiedades do sinaleiro, bem como das forças incontroláveis do destino.
Impacto e Relevância:
"O Sinaleiro" é um conto atemporal que continua a ressoar com os leitores devido à sua exploração de temas universais como o medo, o destino e a fragilidade humana. A habilidade de Dickens em criar suspense e uma atmosfera tensa faz deste conto uma peça clássica da literatura de terror.
Fontes:
José Feldman (org.). Estante de livros. Maringá/PR: Copilot. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Jerson Brito (Asas da poesia) 08
JERSON LIMA DE BRITO, nasceu em Porto Velho/RO, em 1973, onde reside. Graduado em Administração e Direito pela Fundação Universidade Federal de Rondônia. Sonetista, trovador e cordelista, é membro fundador da Academia Brasileira de Sonetistas (Abrasso), integrante do Fórum do Soneto e Delegado da União Brasileira de Trovadores (UBT) em Porto Velho. Exerce o cargo de Técnico Federal de Controle Externo na SECEX-RO, tendo participado de algumas Mostras de Talentos do TCU. Neto de nordestinos, na infância teve os primeiros contatos com os versos, lendo os folhetos de cordel que seu pai comprava. Já na fase adulta, depois dos 30 anos, deu os primeiros passos na literatura escrevendo sobretudo cordéis. Posteriormente, aderiu aos sonetos e outras modalidades poéticas. Premiado em diversos concursos de trovas, sonetos e cordéis.
Monsenhor Orivaldo Robles (O que fica do que passou)
Tirante a amplitude da circunferência abdominal, a dificuldade de subir ladeira, a urgência em levantar à noite várias vezes, o esforço de fazer a memória pegar no tranco e a facilidade de chorar até em comercial de detergente, não posso dizer que os anos me pesem muito. Tempo houve em que tudo era mais fácil. Ainda assim, não me queixo. Aborrecem-me saudosistas de olhos sempre fixos no passado. Não sofro por não ter de volta o que já foi. “Tudo tem seu tempo” (Ecl 3,1). Comento situações que vivi porque me ensinaram alguma coisa. “O saber não ocupa lugar”, dizia o pai. Já ouvi que, se alguém fala: “Tenho muita experiência”, o que quer dizer é: “Já fiz muita burrada na vida”. Pode ser. Sem negar as tolices que cometi, entendo que a idade também me forneceu lições determinantes de bem viver.
Exemplo: quem viveu meia dúzia de décadas lembra como funcionavam as coisas em família. Pai e mãe davam ordens, filhos obedeciam. Não se respeitava a individualidade dos filhos? Pais eram dominadores? Havia casos, sim, não dá para esconder. Afinal poucos tinham ouvido falar de psicologia. Ainda hoje, apesar do muito que progredimos, quantos podem considerar-se verdadeiro pai ou mãe? Naquela época, então... Às crianças não se davam chances de escolha. Moradia, comida, vestuário, calçado, brinquedo, tudo era decidido pelos pais. Roupa e sapato passavam de filhos mais velhos para mais novos. Sem arrufo, nem esperneio. Sequer em sonho passava pela cabeça de um adulto que criança lhe questionasse uma decisão. Não há como não reconhecer a melhora que conseguimos. Hoje, pais se empenham em acertar na formação dos rebentos. Não se permitem domesticá-los. Nem agir como ditadores.
Alguns, entretanto, talvez tenham virado o fio. Na ânsia de evitar excesso de autoridade optaram por autoridade nenhuma. O ambiente familiar virou do avesso. Antes era quartel, agora virou zorra. Há famílias em que o leme de comando foi entregue a uma gracinha de três anos. Nem fala direito, mas decide tudo. Os pais se julgam antenados. Sei. Esperem mais dez anos para ver.
Outro ponto: cedo aprendi que um homem vale tanto quanto a sua palavra. As pessoas ponderavam bem o que iam falar. Porque, uma vez proferida, palavra não tinha volta. Entrava em vigor com a força de compromisso. Testemunha, assinatura, firma reconhecida, registro público, para quê? O importante tinha sido empenhado: a palavra, que outra coisa não era senão o próprio ser da pessoa externado pela sua voz. Que garantia maior exigir? Ninguém pulava para trás desdizendo afirmação anteriormente feita. Por lucrativa que fosse a vantagem ou rendoso o interesse, honra não se negociava. Ninguém punha em dúvida este aforismo: homem que se vende, ainda que por um mísero centavo, sempre recebe mais do que vale. Bom tempo, sem dúvida, em que, de olhos fechados, se confiava no que a pessoa dizia. Quem sabe, por saudade ou anseio pela volta desse tempo foi que Thiago de Mello escreveu, no Estatuto do Homem: “Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. (...) O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino”. Em termos de recursos de comunicação hoje nos encontramos a anos-luz do passado. Ninguém há que não aprecie as fantásticas invenções da técnica e da ciência. Bom seria se o mesmo se verificasse também no respeito à verdade.
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MONSENHOR ORIVALDO ROBLES nasceu em Polôni (SP) em 1941. Estudou em Jales e Poloni e ingressou no Seminário Nossa Senhora da Paz, em São José do Rio Preto, em 1953. Cursou Filosofia em Curitiba (PR), graduando-se na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, de Mogi das Cruzes SP, com diploma reconhecido pela USP, São Paulo. Graduou-se em Teologia no Studium Theologicum de Curitiba, afiliado à Pontifícia Universidade Lateranense, de Roma. Lecionou no Colégio Estadual Dr. Gastão Vidigal, e no Instituto de Educação, em Maringá (PR) (1967-1969). No Colégio Estadual e na Escola Normal de Paranacity (PR) (1970-1972). Por quase onze anos trabalhou como pároco de Marialva, de onde saiu no início de 1983 para assumir, por seis anos, o cargo de reitor do Seminário Arquidiocesano Nossa Senhora da Glória - Instituto de Filosofia de Maringá. Em 1989 assumiu a Paróquia Santa Maria Goretti, em Maringá, onde trabalhou por mais de 20 anos. Desde 2009, trabalhou na Catedral Metropolitana de Maringá, exercendo a função de vigário paroquial. Foi palestrante convidado a discorrer, em colégios ou outros núcleos humanos, sobre temas ligados à cidadania, formação pessoal e sobre ética pessoal ou pública. Em 2012 teve publicado o livro "Celeiro Desprovido", com 270 páginas, contendo 118 crônicas e artigos escritos desde 1995. Em 2017, foi publicado o livro dos 60 anos da Diocese de Maringá. Foi articulista mensal ou semanal, por mais de quinze anos, de jornais editados em Maringá, além de ter matérias reproduzidas em revistas ou blogs da região.Faleceu de enfisema pulmonar, em 2019, em Maringá/PR.
Fonte:
Recanto das Letras. Publicado em 19 dez 2011.
https://www.recantodasletras.com.br/cronicas/3395981
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José Feldman (Esquecimento turbulento)
Era uma manhã ensolarada na cidade, e o senhor Astolfo, um avô de 71 anos com uma energia surpreendente para a idade, estava a caminho do mercado com sua neta, Clara, já na fase aborrecente. Eles sempre se divertiam juntos, e aquela manhã não seria diferente. Astolfo estava vestido com sua clássica camisa listrada e um chapéu florido que sua ex-esposa lhe havia dado, enquanto Clara usava fones de ouvido, imersa em seu mundo musical.
Assim que o ônibus chegou, eles entraram e se acomodaram em um banco perto da janela. Astolfo começou a contar histórias sobre quando ele era jovem, enquanto Clara revirava os olhos, mas com um sorriso no rosto.
— Você sabe, Clara, na minha época, ônibus era muito mais divertido! — começou Astolfo.
— Claro, vovô! E você também caminhava 10 quilômetros na chuva, né? — brincou Clara.
— Não! Eu ia de ônibus! — Astolfo respondeu, rindo.
Depois de algumas paradas, o ônibus chegou a um ponto onde Astolfo decidiu que era hora de descer. Ele olhou pela janela e viu uma loja de ferramentas que lhe chamou a atenção.
— Vou descer aqui! — pensou e se levantou rapidamente. Mas, na empolgação, esqueceu de avisar a neta.
Ao descer do ônibus, Astolfo mal percebeu que Clara ainda estava sentada e, quando ele pisou na calçada, o ônibus começou a se afastar.
— Clara! — gritou ele, percebendo que ela não tinha vindo junto. O ônibus começou a acelerar, e a expressão de Astolfo mudou de surpresa para pânico. Começou a correr atrás do ônibus.
— Vovô! Volta! — gritou Clara, agora percebendo que ele havia descido sem aviso.
Ela pulou de seu assento e se aproximou da janela, olhando para ele com os olhos arregalados.
Os passageiros do ônibus, vendo a cena que se desenrolava, começaram a rir e a incentivar Astolfo.
— Vai, seu moço! Corre! — gritou uma senhora de cabelo grisalho, batendo palmas.
— Mais rápido, campeão! — gritou um jovem com um boné de lado.
Um passageiro distraído, sem estar ciente do ocorrido:
– Deixa de ser muquirana, rapaz, tá querendo economizar no ônibus? Corre atrás do táxi que economiza mais!
Astolfo estava determinado. Com o chapéu quase caindo, ele começou a correr com todas as suas forças. O ônibus, por sua vez, parecia estar em um filme de ação, com motoristas e passageiros assistindo à cena como se fosse um espetáculo.
— Clara! — ele gritava, enquanto as pernas pareciam não responder à sua vontade de correr mais rápido. — Espera!
Clara, do outro lado, gritava:
— Vovô, vem mais rápido! O ônibus não vai esperar!
O motorista, vendo a cena no retrovisor, decidiu dar uma freada para que Astolfo pudesse alcançá-los. O ônibus parou abruptamente, e a situação se transformou em um verdadeiro espetáculo.
Astolfo, aliviado por ter conseguido alcançar o ônibus, fez um esforço final e se lançou em direção à porta. Mas, em vez de conseguir entrar, ele acabou batendo na traseira do ônibus com "cara de tacho", quase escorregando. A cena foi tão cômica que todos os passageiros explodiram em risadas.
— Olha a cara do vovô! — Clara não conseguiu conter a risada, enquanto Astolfo se endireitava, ruborizado, mas também rindo da própria situação.
— Ah, que susto! — ele disse, tentando recuperar a compostura. — Eu pensei que você iria embora!
— E eu pensei que você estava se preparando para a São Silvestre! — respondeu Clara, ainda rindo.
O motorista, com um sorriso, abriu a porta para Astolfo entrar e disse:
— Vamos lá, seu moço. Suba logo antes que eu mude de ideia!
Astolfo, agora mais calmo, entrou no ônibus, e os passageiros continuaram a rir e a aplaudir.
— Isso foi uma corrida épica! — gritou o jovem do boné.
Astolfo se sentou ao lado de Clara, que ainda estava se recuperando da risada.
— Nunca mais vou descer sem avisar você, Clara! — ele disse, respirando fundo.
— Eu espero que sim, vovô! Assim você não vira o “Super Vovô” das corridas de ônibus! — ela brincou.
E assim, enquanto o ônibus seguia seu caminho, Astolfo e Clara continuaram a rir, prometendo que, na próxima vez, ele definitivamente avisaria antes de descer. Aquele dia se tornaria uma das memórias mais engraçadas da relação entre avô e neta.
Fontes:
José Feldman. Peripécias de um jornalista de fofocas & outros contos. Maringá/PR: Plat. Poe. Biblioteca Voo da Gralha Azul.
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Panaceia de Textos
Nilto Maciel (O oráculo)
Guilhermartins orgulhava-se de sua sem par biblioteca que, de vez em quando, aparecia na imprensa. Dizia o colunista social: O intelectual Guilhermartins, dono da mais rica coleção de alfarrábios, jantava ontem ao lado da bela Antonieta Brochado. O repórter vulgava: Chega-se a duvidar da existência do Tratado do Amor do Diabo, de Abulcámim Abdelhákem, tal a sua raridade.
Ao lado das fileiras de franceses, brasileiros, javaneses, acumulavam-se pilhas de revistas e jornais: O Chauffeur Moderno, Revista do Foot-Ball, O Positivista Mineiro, Diário da América, Gazeta do País, Revue des Cinq Mondes, Il Fanfulla, La Hacienda, The Marine Engineer e outros.
Perguntado em que coisas gastara seu tempo enquanto vivera, disse que lera desde A Aarônica Aba Ababá, novela mentirosa sobre os costumes dos índios ababás, escrita pelo cearense José de Alenquer, até Zwinglio Zuruó, biografia moleque de autoria do soviético Alexey Chirikov.
Perguntado quanto tempo havia que era leitor, disse que havia oitenta ou setenta e nove.
Estas e outras perguntas e respostas encontram-se publicadas nos jornais, assim como as segundas, um tanto modificadas, como afirmações de outras pessoas, em periódicos mais antigos. Por exemplo, é da edição de 27 de novembro de 1937 do Diário da América o seguinte trecho do pesquisador Salomão Souto: “A Aarônica Aba Ababá, novela fantástica sobre os costumes dos índios ababás, foi escrita por José de Alenquer.”
A primeira refeição de Guilhermartins consistia de café com manchetes. Um gole aqui, um golpe ali, um sorvo agora, um corpo morto no canto da página, uma sorvedura apressada, uma ditadura derrubada. Dos títulos passava às matérias e o golpe se enchia de sangue, estrelas, tanques nas ruas, pronunciamentos, prisões, decretos, viva o general.
Esse hábito de não comer pão nem mamão, leite ou azeite após o sono se constituiu ao longo de décadas de falta de tempo para fazer uma refeição mais rica, porque apetite não lhe faltava, nem sua fazenda parecia pequena.
Vivendo assim, não podia sonhar senão realidades, quer dizer, realidades futuras, fatos vindouros, porém, logicamente relacionados aos do passado dia. Assim, se antes de pegar no sono lia sobre o nascimento do filho da princesa, no sonho lhe aparecia a relação dos prováveis nomes reais do infante às mãos do príncipe. Pulava da cama, agarrava os jornais e ria de mais um crime da imprensa – todos copiavam seus sonhos.
Entre suas previsões mais assombrosas citam-se o lançamento do Sputnik, a destruição de Israel, a publicação de A Cachoeira das Eras, de Carlos Emílio Corrêa Lima, e a morte de Stalin.
Um crítico, de sua amizade, chegou a chamar-lhe de o oráculo da era atômica. Guilhermartins riu e explicou: a História é uma novela; o novelista, um gênio anônimo. Os teístas o insultaram. O gênio tinha nome, sim senhor: Deus. Os ateístas defenderam-se: não existia esse tal gênio.
Disse mais Guilhermartins: considerava-se apenas o mais atento e inteligente espectador, daí poder ler o próximo capítulo antes de publicado. E recusou convites para polemizar. Faltava-lhe tempo para falar. Mandava um pequeno texto sobre a questão. Discutissem-no à vontade.
De fato, estafetas e jornaleiros não paravam de bater à sua porta, sobraçando pacotes das mais variadas procedências. Jornais da Jordânia, revistas revanchistas alemãs, boletins de laboratórios farmacêuticos, informativos panteístas, publicações de guerrilheiros e terroristas, relatórios acadêmicos e divulgações de seitas novas.
Não se esquecia de si mesmo Guilhermartins. Colecionava tudo o que a imprensa publicava sobre sua pessoa. Na primeira folha do álbum, a notícia de seu nascimento. A partir daí, entrevistas, artigos, crônicas, reportagens.
Uma dessas crônicas, do poeta Carlos André, começa assim: “Há quarenta anos conheço e pratico esse raro Guilhermartins, e ainda não me arrependi de o ter achado. Pois o achei, posto que o procurasse sem o conhecer. Valeu como achar a edição príncipe de O Grande Pânico, de Airton Monte."
Tomam três ou cinco folhas as reportagens sensacionalistas sobre seu divórcio. Num deles, sua mulher o chama de maníaco, leitor inveterado, comedor de traças, intelectual onisciente, o diabo.
Um dos artigos mais pomposos sobre sua pessoa intitula-se “O Mago Guilhermartins” e o equipara a Wronski, o inventor da máquina de predizer.
Apesar da enorme quantidade de publicações que diariamente recebia, Guilhermartins sabia de cor os nomes de todas elas e até os dias em que deveria recebê-las. Deu-se então de um dia o estafeta esquecer-se de levar-lhe o Informativo Cabalístico. O assinante vomitou insultos: irresponsável, inimigo da informação, mulherengo, nazista. E o entregador de jornais perdeu a paciência: maníaco, judeu, alienado, filho de satã. E saiu aos brados.
Fulminado por tão duras palavras, Guilhermartins sentou-se sobre os pacotes, abatido, triste, decepcionado.
– Eu, maníaco? Sim, por que não? De que me serve o conhecimento ? Para que passo a vida a ler, a me informar de tudo? Tenho vivido aqui, cercado de livros, revistas, jornais, envelhecido diante de tudo isso. Que fiz afinal da vida? Ou ainda é tempo de mudar, de fugir dessa caverna, de sair do ovo, de pular para o mundo?
E saltou para a rua, a gritar que sabia de tudo, conhecia tudo, o passado e o presente e até um pouco do futuro. Cercaram-no curiosos e ele subiu a uma janela. Pôs-se a falar de guerras e pazes, enchentes e secas, golpes e revoluções, tudo sem nenhum sentido, misturado, confuso.
– É o sábio Guilhermartins.
– Um doido varrido.
– O diabo em pessoa.
Pouco a pouco, todos se afastaram e ele se calou. Coçou a cabeça, arregalou os olhos, sorriu. E correu aos jornais e emissoras. Noticiassem: Guilhermartins convocava a população para uma conferência sobre o conhecimento humano. Na maior praça de esportes da cidade. Entrada franca. A partir do fim da tarde. Sem horário previsto para o encerramento. Podiam decretar greve geral. Assim, todos estariam livres para comparecer ao espetáculo.
Não falaram de greve, porém, milhares de pessoas se atropelaram desde o começo da noite diante do estádio. A cavalaria não sossegou de pisotear a multidão.
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Nilto Maciel nasceu em Baturité/CE em 1945. Formou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará. Em parceria com outros escritores, no ano de 1976 criou a revista Saco. Transferiu-se no ano seguinte para Brasília, trabalhando na Câmara dos Deputados, Supremo Tribunal Federal e Tribunal de Justiça do DF. Em 2002 foi para Fortaleza/CE onde residiu até a sua morte em 2014. Venceu inúmeros concursos literários, e escreveu diversos livros, tendo contos e poemas publicados em esperanto, espanhol, italiano e francês. Além de contos e romances publicados, também Panorama do Conto Cearense, Contistas do Ceará, Literatura Fantástica no Brasil. Alguns livros publicados: Contos Reunidos vol. I, são os 66 contos escritos por Nilto em seus livros Itinerário (1974 a 1990), Tempos de Mula Preta (1981 a 2000) e Punhalzinho cravado de ódio (1986). O volume II conta com 122 contos dos livros As Insolentes patas do cão (1991), Babel (1997) e Pescoço de Girafa na Poeira (1999).
"Nilto possui esta capacidade de fazer com que nossas almas percorram desde um estado de profunda tristeza ao de êxtase. Não é apenas um escritor, são muitos escritores dentro de um só. A cada conto terminado, aflora o anseio pelo próximo. Aonde Nilto nos conduzirá agora? Cada conto é um conto, que faz com que nossa imaginação nos leve às vezes a adentrar dentro dele e participar, deixando que nos levemos pelo seu encanto, pela sua linguagem simples e deliciosa." (José Feldman, em Nilto Maciel o mago das almas, 18/12/2010)
Fontes:
Nilto Maciel. Punhalzinho Cravado de Ódio, contos. Secretaria da Cultura do Ceará, 1986. Enviado pelo autor.
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