sexta-feira, 16 de julho de 2010

Carolina Maria de Jesus (Quarto de Despejo)

Introdução

Quarto de Despejo (diário de uma favelada), de Carolina Maria de Jesus, embora tenha despertado a atenção de vários autores norte-americanos., é uma obra que ainda está a merecer uma análise mais aprofundada por parte da crítica nacional. É importante ressaltar que foram vendidos em torno de um milhão de exemplares em cerca de quatorze países. É uma das obras brasileiras mais vendidas, tendo sido traduzida em mais de treze línguas.

Ao ser publicado em São Paulo, em agosto de 1960, o livro obteve imediato sucesso, com a venda de trinta mil exemplares, surpreendendo a própria editora, que recebeu pedidos de todo o país.

Estranhamente, porém, apesar do sucesso obtido com Quarto de Despejo, os outros livros de Carolina (Casa de alvenaria, Diário de Bitita, Pedaços da fome e Provérbios) nenhuma repercussão tiveram ao mundo literário nem despertaram o interesse do público brasileiro.


É necessário registrar alguns detalhes da vida da autora para que se possa compreender a importância de seus escritos e explicar como uma pessoa da sua condição social possuía tantas informações sobre a vida política e social da época e uma sensibilidade rara para entender o mundo.

Carolina Maria de Jesus saiu de Sacramento, pequena cidade do Triângulo Mineiro, em 1947, fugindo da pobreza da zona rural.

Perambulou pelo interior do Estado até chegar a São Paulo, onde trabalhou como doméstica em casa de pessoas importantes, como a família Zerbini. Não se adaptando ao trabalho doméstico, Carolina mudou-se para a hoje extinta favela do Canindé, nos arredores da cidade, passando a trabalhar como catadora de papel. Naquela época era um trabalho até certo ponto “rentável” devido à precariedade dos serviços de coleta de lixo.

Negra, jovem, bonita, inteligente, mãe solteira, independente, Carolina despertava a inveja das vizinhas e a cobiça dos homens.

Alfabetizada até o 2º ano primário, desenvolveu e cultivou o gosto pela leitura e o hábito de escrever. Tudo indica que deve ter tido acesso a algumas obras dos grandes autores brasileiros nas casas em que trabalhou, o que lhe manteve acesso o desejo de ser “artista” e explica a menção a poetas como Casimiro de Abreu e Castro Alves. Tais informações não teria uma menina que houvesse estudado até o 2º ano primário em uma escola do interior.

Carolina dividia seu tempo entre as tarefas de catar papéis, cuidar dos afazeres domésticos (que, na verdade eram poucos, pois quase nada havia a cozinhar, lavar ou arrumar no pequeno barraco) e a escrever o seu diário, onde registrava os fatos corriqueiros de uma favela.

A publicação de Quarto de Despejo se deve ao jornalista Audálio Dantas, que entendeu a importância do diário da favela do Canindé.

Incumbido de fazer uma reportagem sobre a inauguração de um parque infantil naquela favela, Dantas ouviu uma mulher gritar “Vou colocar vocês no meu livro”. Curioso em saber de que “livro” se tratava, o jornalista foi levado pela própria Carolina ao seu barraco. Mostrou-lhe então alguns cadernos recolhidos no lixo, nos quais registrava o dia-a-dia da favela, a fome, as dificuldades para conseguir alimento, as brigas, as mortes, enfim, o cotidiano de uma sociedade miserável, à margem da humanidade.

Audálio Dantas, após muitas dificuldades, conseguiu que a livraria Francisco Alves publicasse a obra. Inicialmente, pretendia lançar três mil exemplares, mas conseguiu aditar trinta mil, em pouco tempo esgotados.

As dificuldades por que passava Carolina eram tantas que, no dia do lançamento do livro, teve de sair a catar papel para conseguir dinheiro que lhe permitisse comprar comida para os filhos.

Paradoxalmente, o mundo que a homenagearia e a escolheria como “escritora”, recusava-se a ver a miséria em que vivia aquela mulher. Reconhecida de início como uma revelação – uma mulher negra, pobre, favelada, semi-alfabetizada, mãe solteira -, Carolina teve um brilho efêmero. O sucesso da obra se explicaria pelo fato de ter sido lançado num momento em que estavam em voga a contracultura e a bossa nova. Mas começava uma nova era, em que predominaria, de início, uma “censura branca” a certas manifestações artísticas que poderia torna-se incômoda para o poder estabelecido.

Há que se considerar o momento político por que passava o Brasil naqueles anos, o que pode ter influenciado negativamente na divulgação de uma obra que revelava um lado “poder” e miserável da vida, que a classe dominante preferia ignorar. Carolina passou a representar um papel importante na sua comunidade, tinha consciência política excepcional para uma pessoa de sua condição social, o que poderia ser uma “ameaça” ao modelo político que começava a se desenhar naquele momento. Os favelados já lhe diziam: “Carolina, já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime”. Esse fato talvez explique a recusa dos editores em publicar seu último livro, Provérbios, que foi por ela mesma financiado.

Carolina Maria de Jesus chegou a ser mundialmente conhecida com a publicação de seu primeiro livro. No entanto, após o fracasso de suas últimas obras, voltou a viver na pobreza, falecendo em 1977, ignorada por todos.

José Carlos Sebe Bom Meihy, estudioso da obra de Carolina, informa que, com a ajuda dos filhos da autora, localizou “uma caixa com trinta e sete cadernos, contendo cinco mil cento e doze páginas”, em que constavam poemas, contos, quatro romances e três peças de teatro, em meio a receitas de bolos, contabilidade doméstica e lições escolares dos filhos.

Finalmente, cumpre ressaltar a intervenção de Audálio Dantas na escrita de Carolina. O jornalista informa que fez algumas correções no texto, colocou algumas vírgulas, retirou outras, suprimiu alguns trechos, por repetidos, mas manteve a grafia original, limitando-se ao ordenar a narrativa de forma coerente. Esses dados são essenciais ao se estudar a linguagem usada pela autora. De qualquer forma, tudo indica que o jornalista não substituiu palavras ou expressões empregadas por Carolina, as quais são fundamentais para a compreensão do estilo da autora.

Síntese da obra

Quarto de desejo é um relato de fatos verídicos vivenciados ou presenciados pela autora, que faz questão de registra-los quase que diariamente.

Em seu diário, Carolina Maria de Jesus descreve a favela do Canindé, as pessoas e o tipo de vida que levam. Relata as brigas constantes entre marido, mulher e vizinhos, a fome, as dificuldades para se obter comida, as doenças a que estão sujeitos os moradores da favela, seus hábitos e costumes, as mortes, o suicídio, a presença constante da miséria de uma sociedade marginalizada e esquecida pelos governantes.

15 de julho de 1955. Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela.

Assim tem início o diário de Carolina, que terminará em 1º de janeiro de 1960:

1.º de janeiro de 1960
Levantei as 5 horas e fui carregar água.

Ao longo desses anos, a autora registra a vida na favela, a sua luta diária contra a fome, o esforço para criar com dignidade os filhos José Carlos, João e Vera Eunice.

A fome é uma constante ao longo da obra:

Como é horrível ver um filho comer e perguntar: “Tem mais?” Esta palavra “tem mais” fica oscilando do cérebro de uma mãe que olha a panela e não tem mais.

E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia:

- Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome!
Eu estou triste porque não tenho nada para comer.

Quando consegue algum alimento, a narradora reflete sobre sua condição de pessoa expulsa do mundo humano:

Quando eu levava feijão pensava: hoje eu estou parecendo gente bem – vou cozinhar feijão. Parece até um sonho!

A miséria que presencia é tão chocante que Carolina acha que alguém poderia não acreditar no que conta:

... Há de existir alguém que lendo o que eu escrevo dirá... isto é mentira! Mas, as misérias são reais.

Com grande senso crítico, a autora destaca as visitas do padre à favela:

De manhã o padre veio dizer missa. Ontem ele veio com o carro capela e disse aos favelados que eles precisam ter filhos. Penso: porque há de ser o pobre quem há de ter filhos – se filhos de pobre tem que ser operário? (...) Para o senhor vigário, os filhos de pobre criam só com pão. Não vestem e não calçam.

O contraste entre a favela e a cidade é percebido com acuidade e senso crítico por Carolina:

Quando eu vou na cidade tenho a impressão de que estou no paraíso. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da América do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas.

Fatos corriqueiros como brigas entre marido e mulher, entre as mulheres e os bêbados, a presença da Rádio Patrulha, mortes por intoxicação com alimentos putrefatos são narrados com detalhes por Carolina:

Eu já estou tão habituada a ver brigas que já não impressiono.
Despertei com um bate-fundo perto da janela. Era a Ida e a Amália. A briga começou lá na Leila. Elas não respeitam nem a extinta. O Joaquim interviu pedindo para respeitar o corpo. Elas foram brigar na rua.

Ao olhar atento da narradora nada escapa:

... Nas favelas, as jovens de 15 anos permanecem até a gora que elas querem. Mescla-se com as meretrizes, contam suas aventuras [...] Há os que trabalham. E há os que levam a vida a torto e a direito.
As pessoas de mais idade trabalham, os jovens é que renegam o trabalho. Tem as mães, que catam frutas e legumes nas feiras. Tem as igrejas que dá pão.

Carolina demonstra ser uma pessoa exatamente atualizada em relação ao que se passa na vida política do país, o que se comprova pelas constantes referências aos políticos em destaque na época, como Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Adhemar de Barros e Juscelino Kubitschek.

A exploração da boa-fé do povo pelos políticos na época de eleições, as visitas dos candidatos à favela, os pequenos agrados e as promessas não cumpridas são registradas pela narradora de forma crítica e consciente.

... Quando um político diz nos seus discursos que está ao lado do povo, que visa incluir-se na política para melhorar as nossas condições de vida pedindo o nosso voto prometendo congelar os preços, já está ciente que abordando este grave problema ele vence nas urnas. Depois divorcia-se do povo. Olho o povo com os olhos semicerrados. Com um orgulho que fere a nossa sensibilidade.

Destacam-se também na obra referências a autores da literatura brasileira, como Castro Alves e Casimiro de Abreu, a personalidades conhecidas nacional ou internacionalmente, como Assis Chateaubriand, Elisabeth Taylor, o Príncipe do Japão, a revista estrangeira Reader´s Digest, que lhe devolveu os originais de um livro (“A pior bofetada para quem escreve é a devolução de sua obra.”)

Sempre em atrito com os vizinhos por causa dos filhos, Carolina diz:

- Os meus filhos estão defendendo-me. Vocês são incultas, não pode compreender. Vou escrever um livro referente a favela. Hei de citar tudo que aqui se passa. E tudo que vocês me fazem. Eu quero escrever o livro, e vocês com estas cenas desagradáveis me fornece os argumentos.

No entanto, não foi só isso que Carolina relatou. Além de registrar o cotidiano da favela, mostrou-se grande conhecedora dos problemas da vida de toda uma sociedade.

Estrutura da Obra

Quarto de Despejo não é apenas a autobiografia de uma favelada catadora de papéis. É também um documento sobre a vida de uma favela. Registrado sob a forma de diário, é uma seqüência de fatos ordenados cronologicamente, situados no tempo por meio de datas. Nesse sentido, faz lembrar o Diário de uma jovem, escrito pela menina judia Anne Frank. Alguns acontecimentos são relatados mais de uma vez, talvez porque a autora faça questão de repeti-los ou porque se esqueceu de que já os havia mencionado.

Trata-se de uma narrativa linear, entremeada por reflexões da narradora que demonstram profunda sensibilidade e senso crítico.

Quarto de Despejo não se enquadra em um gênero literário fixo, podendo-se aproxima-lo, quando muito, da linha memorialista. São relatos de fatos verídicos, reprodução de diálogos e considerações sobre a vida dos favelados.

1) Ambiente: A autora descreve o ambiente físico – a favela e seus barracos – por meio de detalhes, sem preocupação de fornecer uma visão geral. Os pronomes aparecem ao longo do texto, na medida em que aqueles aspectos são relevantes para a compreensão do fato que narra ou para mostrar a miséria que reina naquela comunidade. O fornecimento precário de energia elétrica, a inexistência de água encanada e de rede de esgotos, embora pagassem por esses serviços, a falta de banheiros, a sujeira, a imundice, a presença de ratos e pulgas nos barracos são sempre mencionados por Carolina.

O fio não dava para ligar a luz. Precisava emenda-lo. Sou leiga na eletricidade.
... Já faz seis meses que eu não pago a água. 25 cruzeiros por mês. E por falar em água, o que eu não gosto e tenho pavor é de ir buscar água.
Eu mandei o senhor Dario entrar. Mas fiquei com vergonha. O vaso noturno estava cheio.

Em diversas passagens, Carolina deixa clara a imagem que tem da favela:

... Cheguei na favela: eu não acho jeito de dizer que cheguei em casa. Casa é casa. Barracão é barracão. O barraco tanto no interior como no exterior estava sujo.
... Eu classifico São Paulo assim: o Palácio é a sala de visita. A Prefeitura é a sala de jantar e a cidade é o jardim. E a favela é o quintal onde jogam o lixo.

Essas descrições são, às vezes, marcadas por certo humor, como no episódio em que conta como a chuva alagou a favela:

As pessoas de espírito jocoso dizem que a favela é a cidade náutica. Outros dizem que é a Veneza Paulista.

A favela e suas misérias constituem assim o pano de fundo do registro de uma classe social marginalizada e até hoje ignorada pelas autoridades.

2) Contexto histórico: Os fatos narrados por Carolina abrangem um período de transição na história do Brasil. Iniciando-se em 1955 e terminando em janeiro de 1960, o diário registra fatos de relevância social e política na cidade de São Paulo. Vivia-se um momento de estabilidade social e de certa euforia no contexto político, com o início da construção de Brasília, que seria inaugurada em 21 de abril de 1960. Todo o país se voltava para o “grande acontecimento” que era a construção de uma nova capital idealizada por um Presidente da República bastante popular entre as classes mais baixas. No entanto, os problemas sociais, a fome, a falta de moradia, de saneamento básico permanecem ignorados pelas autoridades políticas, tão envolvidas com o novo projeto presidencial.

Jânio Quadros e Adhemar de Barros são figuras constantemente mencionadas por Carolina. Carlos Lacerda, conhecido por sua língua afiada e como grande orador, futuro governador do Estado da Guanabara e deputado federal nessa época, aparece no diário de Carolina, muitas vezes de forma irônica.

Há ainda referências a fatos da época, como a presença dos artistas da companhia cinematográfica Vera Cruz, que participaram da filmagem de um documentário sobre a vida de um famoso favelado, o Promessinha.

São mencionados por Carolina jornais, como o Diário da Noite, e revistas de grande circulação, como O Cruzeiro, que apresentou uma reportagem sobre a autora sob o título “Retrato da favela no Diário da Carolina”.

Quase todos os acontecimentos que, de certa forma, despertavam o interesse de Carolina são descritos no diário, sejam os que ocorrem na favela, sejam as notícias que lê nos jornais.

3) Foco narrativo: A obra apresenta uma narrativa em primeira pessoa, como é natural no diário. Os fatos são apresentados sob a óptica da narradora que, ao mesmo tempo que o narra, tece considerações sobre a vida, a situação dos pobres e dos favelados, a atitude dos políticos, a exploração dos comerciantes e dos atacadistas, o desperdício de alimentos.

É uma visão unilateral, pessoal e, de certa forma, subjetiva, na medida em que a própria narradora é também protagonista. Pode-se dizer, portanto, que, ao lado do tempo exterior representado pelo registro cronológico dos acontecimentos, há um tempo interior representado pelos momentos de reflexão da narradora.

Ao traçar um panorama dos hábitos e costumes do seu meio social, Carolina expressa a sua visão por meio da observação dos fatos e das atitudes das pessoas que conhece, destacando-se, ela mesma, como um elemento principal sobre o pano de fundo, que é a favela.

4) Personagens: Quarto de Despejo é uma autobiografia. Não se poderia, portanto, falar em “personagens” na acepção atribuída a esse termo pela crítica literária aos protagonistas de uma obra de ficção. Melhor seria denominar as pessoas que aparecem no diário de “pessoas” mesmo ou “figuras”. Não são elas criação da imaginação da narradora, mas sim pessoas que realmente existiram. Carolina Maria de Jesus “retrata” a si mesma e as pessoas que com ela conviveram.

Trata-se, pois, de um relato construído em torno da própria Carolina – autora-narradora. A ela juntam-se as outras figuras que fazem parte do seu cotidiano, como os filhos, os inúmeros vizinhos e conhecidos, os amigos e os amantes. Há ainda referência aos nordestinos, em número cada vez maior na favela. São tantas as pessoas a quem se refere que seria impossível menciona-las. Há que se destacar, porém, o senhor Manoel, amigo e, depois, seu amante, o cigano, Orlando Lopes, o cobrador da luz, senhor Pinheiro, presidente do Centro Espírita, e o repórter Audálio Dantas.

Carolina é uma pessoa inteligente, curiosa, com grande senso crítico da realidade. Vivendo em um meio promíscuo, em que as brigas e o alcoolismo são uma constante, Carolina procura manter-se afastada dos vícios para que possa cuidar bem de seus filhos. São aspectos marcantes da sua personalidade o gosto pela leitura e a preocupação com a educação dos filhos. Suas opiniões sobre as condições em que vivem os favelados, os catadores de lixo, as atitudes dos políticos e da Igreja são sempre pertinentes e extremamente atuais.

É importante assinalar a postura um tanto ambígua da narradora em relação aos negros. Há momentos em que ela deixa transparecer preconceito contra os de sua raça, ao dizer que os negros não eram dados ao trabalho. Além disso, ela só se relaciona afetivamente com os brancos. Em certo momento, ela diz:

Despertei pensando no cigano, que é pior do que o negro.

Já em outra passagem, Carolina diz:

...adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rústico. Eu até acho o cabelo negro mais educado do que o cabelo de branco.

É interessante notar que Carolina sempre associa a cor negra a tudo que é ruim para ela:

Olhava para o meu barraco envelhecido. As tabuas negras e podres. Pensei: está igual a minha vida.
A minha (vida), até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro.
Comeram e não aludiram a cor negra do feijão. Porque negra é a nossa vida. Negro é tudo que nos rodeia.

Entre as muitas considerações ou reflexões de Carolina, vale a pena ressaltar algumas:

Eu não consegui armazenar para viver, resolvi armazenar paciência.
Eu fiz uma reforma em mim. Quero tratar as pessoas que eu conheço com mais atenção.
O meu sorriso, as minhas palavras ternas e suaves, eu reservo para as crianças.
Não se vê mais os corvos voando as margens do rio perto dos lixos. Os homens desempregados substituíram os corvos.
Pelo que observo, Deus é o rei dos sábios. Ele pois os homens e os animais no mundo. Mas os animais quem lhes alimenta é a Natureza porque se os animais fossem alimentados igual os homens, havia de sofrer muito. Eu penso isto, porque quando eu não tenho nada para comer, eu invejo os animais.
A enfermidade que atinge o preto, atinge o branco. Se o branco sente fome, o negro também. A natureza não seleciona ninguém.
“Enfim, o mundo é como o branco quer. Eu não sou branca, não tenho nada com estas desorganizações.
Temos só um jeito de nascer e muitos de morrer.
Carolina é uma pessoa que sabe de tudo, que se interessa por tudo:
Ele é o homem mais bem remunerado da favela. Trabalha para o Conde Francisco Matarazzo.
Hoje eu estou lendo. E li o crime do Deputado de Recife. Nei Maranhão.
Eis o que estava escrito no jornal do dia 26 de junho de 1958:

Zuza, pai de santo, em cana.

Ao se referir às touradas de Madri, à fábula da rã e da vaca, de La Fontaine, ao cavalo de Tróia, entre outros assuntos da cultura universal, a narradora demonstra um conhecimento invulgar para uma pessoa de sua condição social.

Aspectos marcantes na obra

Embora a autora, com sua excepcional percepção da vida, aborde muitos temas importantes e atuais, há alguns aspectos que predominam na obra: a fome e a miséria – o “Quarto de Despejo” – e a consciência político-social. Em torno desses temas, Carolina tece comentários sobre tudo de que tem notícia, sobre as informações que obtém por meio de jornais e revistas que, na maioria das vezes, lê nas bancas.

1) A fome: É, por assim dizer, o leit-motiv da obra. Quase tudo gira em torno da fome, do sofrimento da mãe ao ver os filhos pedindo alimento, das mortes devido à ingestão de alimentos putrefatos situação dramática que ainda se vê nos dias de hoje.

E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome.
Vi os homens jogar sacos de arroz dentro do rio. Bacalhau, queijo, doces. Fiquei com inveja dos peixes que não trabalharam e passam bem.
Estou tão indisposta que se eu pudesse deitar um pouco! Mas eu não tenho nada para os meninos comer.
...Saí triste porque não tinha nada em casa para comer. [...] Parece que o meu pensamento repetia:
-Comida!Comida!Comida! [...] E estou sem dente. Magra. Pudera! O medo de morrer de fome!
Quando eu encontro algo no lixo que eu posso comer, eu como. Eu não tenho coragem de suicidar-me. E não posso morrer de fome.
...Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos.
...Quando cheguei em casa estava com tanta fome. Surgiu um gato miando. Olhei e pensei: eu nunca comi gato, mas se estivesse numa panela ensopado com cebola, tomate, juro que comia. Porque a fome é a pior coisa do mundo.
Eu disse para os filhos que hoje nós não vamos comer. Eles ficaram tristes.
Quando o Nilton começou a passar fome, foi com a mãe.
Pensei: a fome também serve de juiz.
A pior coisa do mundo é a fome. É o único registro do dia 26 de agosto de 1959
.

2) O “quarto de despejo”: Os homens, como seres humanos, têm necessidade de separar e classificar as coisas de acordo com sua função – as limpas das sujas e as úteis das inúteis. Na sociedade descrita por Carolina, há um grupo que trabalha exclusivamente com as coisas sujas e inúteis, com o lixo ( numa época em que não se pensava em reciclagem), de tal forma que com elas se identificam.

Assim Carolina reconhece-se como “lixo”, como um ser que está no Quarto de Despejo para ser jogado fora.

Enquanto estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num Quarto de Despejo.
Sou rebotalho. Estou no Quarto de Despejo, e o que está no Quarto de Despejo ou queima-se ou joga-se no lixo.
Depois pensei: eu não saio do Quarto de Despejo, o que posso saber o que se passa na sala de visita?
Mas ele deve aprender que a favela é o Quarto de Despejo de São Paulo. E que eu sou uma despejada.
Favela, sucursal do inferno, ou o próprio inferno.

3) Consciência política e social: A consciência da situação política do país e do papel que deveria ser exercido pelos políticos transparece em vários trechos. Carolina está a par do que acontecia não só em São Paulo como em outros Estados. Muitas dessas referências são eivadas de crítica e de fina ironia.

Eu quando estou com fome quero matar o Jânio, quero enforcar o Adhemar e queimar o Jucelino.

Mas o povo está interessado nas eleições, que é o cavalo de tróia que aparece de quatro em quatro anos.
Ao meu lado estava a mulher do nortista que dormia com a mulher do Chó. Estava nervosa e falava tanto. Parece que tem a língua elétrica. Parecia o Carlos Lacerda quando falava do Getúlio.
As intrigas delas é igual a de Carlos Lacerda que irrita os nervos.
Uma senhora disse que foi pena! A bala que pegou o major podia acertar no Carlos Lacerda.
Você já viu um cão quando quer segurar a cauda com a boca e fica rodando sem pega-la?
É igual o governo do Jucelino.
Os políticos só aparecem aqui nas épocas eleitoraes. O senhor Cantídio Sampaio quando era vereador em 1953 passava os domingos aqui na favela. [...] Mas na Câmara dos Deputados não criou um projeto para beneficiar o favelado. Não nos visitou mais.
As dificuldades corta o afeto do povo pelos políticos.
... A notícia do jornal deixou-me nervosa. Passei o dia xingando os políticos, porque eu também quando não tenho nada para dar aos meus filhos fico quase louca.
Ele só dá os pedaços de bolacha. E elas saem contentes como se fossem a Rainha Elisabethe da Inglaterra quando recebeu os treze milhões em jóias que o presidente Kubstchek lhe enviou como presente de aniversário.
Os exploradores do povo, os mais fortes, os que podem determinar os preços dos alimentos, respaldados por um sistema capitalista predador, não escapam à crítica de Carolina:
... Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. É o atacadista.
O tratamento dado às crianças nos abrigos de Menores – as FEBENS da época – já era um problema de que muitos tinham conhecimento. Carolina questiona a maneira como esses menores são tratados.
Percebi que no Juizado as crianças degrada a moral. Os Juízes não tem capacidade para formar o caráter das crianças. O que é que lhes falta? Interesse pelos infelizes ou verba do Estado?
Ao conhecer prostitutas que haviam sido criadas no abrigo de Menores, Carolina exclama: Pobres órfãs do Juiz!
Ao se referir a Moisés, que protegia os judeus, a narradora ressente-se da falta de um líder negro que defendesse a sua raça:
Já nós os pretos não tivemos um profeta para orar por nós.
Os norte-americanos não escapam da crítica de Carolina:
Fico pensando: os norte-americanos são considerados os mais civilizados do mundo e ainda não convenceram que preterir o preto é o mesmo que preterir o sol.

Estilo/Linguagem

1) Carolina Maria de Jesus possui um estilo próprio característico, fluente. Interesse e curiosidade desperta a linguagem usada pela autora. É uma pessoa semi-alfabetizada, que comete erros gramaticais elementares em contraste com um vocabulário erudito, conseguindo assim exprimir seus pensamentos com a maior facilidade.

Talvez seja uma das únicas obras brasileiras que retratam fielmente não só a maneira de falar das pessoas incultas como a de escrever. Note-se também que a autora não usa palavras de baixo calão, a não ser em um outro caso, e, assim mesmo, para reproduzir a fala de outras pessoas. Apesar de conviver com o “lixo” da cidade, Carolina mantém uma linguagem “pura”. Os erros gramaticais não comprometem a compreensão de sua mensagem.

Eu chinguei o Chico de ordinário, cachorro...
Os pasteis é um acontecimento aqui em casa.
Outros trazia água do Serviço, nos garrafões.

2) Sua linguagem é pontilhada pelo lirismo, pelas metáforas, pelas comparações inusitadas. Alguns exemplos ilustram essa linguagem que se poderia encontrar nos grandes autores:

Parece que esse cigano quer hospedar-se no meu coração.
Por isso que eu digo que a favela é o Gabinete do Diabo.
A cidade é um morcego que chupa o nosso sangue.
As brisas suaves perpassam conduzindo o perfume das flores.
A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encera.
Parece que a minha vida estava suja e agora estão lavando.
A voz de pobre não tem poesia.
A língua das mulheres é um navio. Fica incendiando.
Parece que eu vim ao mundo predestinada a catar. Só não cato a felicidade.
O dia está triste igual a minha alma.

3) Aspecto que se destaca no estilo de Carolina Maria de Jesus é o fato curioso de uma semi-alfabetizada usar termos cultos, pouco conhecidos e raramente utilizados a não ser na linguagem escrita, e emprega-los adequadamente. Assim, encontram-se, entre outras:

- mulheres atrabiliarias
- história do infausto Miguel Colona
- a noite está tepida
- sinfonia matinal
- sou rebotalho
- um homem que não é nipônico
- os maus elementos que mesclam-se com eles
- é pungente a condição dos pracinhas.
- Ablui as crianças
- Aleitei-as (as crianças)
- A vida ia ficar insípida
- Melancia deturpada

Em certos momentos, a autora entrega expressões não propriamente eruditas mas pouco usadas na linguagem coloquial:

Deixei o leito as 5 e meia.
Despertei as 2 da madrugada.
Essas frases, aliás, são repetidas ao longo de todo o diário, talvez para mostrar a monotonia, o trabalho repetido todos os dias, assim como “Levantei e fui catar papel”

Conclusão

Quarto de Despejo é mais do que o retrato de uma favela. É a denúncia das condições de vida de uma comunidade marginalizada, por alguém que dispunha de poderosa arma e que soube utiliza-la como nenhum outro: a palavra. E dessa arma Carolina Maria de Jesus fez o uso devido. Relatou, descreveu, mostrou o sofrimento, as agruras da fome, preocupada não com apuro formal da linguagem , mas com o conteúdo de sua mensagem. O sonho de escrever um livro com “os argumentos” que os favelados lhe forneciam realizou-se.

Carolina Maria de Jesus seria uma grande personalidade do mundo literário, na opinião dos poucos autores que se dedicaram ao estudo de suas obras. O trecho seguinte, citado no estudo “Carolina Maria de Jesus: Emblema do Silêncio”, de José Carlos Sebe Bom Meihy, demonstra bem o grau da consciência política dessa autora semi-alfabetizada:

“O Brasil é um jovem de um metro e noventa de altura com a pretensão de homem feito, só que está muito doente, com o coração fraco e desanimado. Foi tratado com o cruzeiro e o tratamento não foi producente. Continuou anêmico.Então, decidiram chamar um médico dos Estados Unidos que lhe aplicou uma injeções de dólares. O Brasil teve apenas uma melhora temporária. Mas, o Brasil queria é se curar, queria ficar forte. Resolveu consultar um médico da Inglaterra que deu-lhe umas pílulas de fibras esterlinas e não surtiu o efeito desejado. O Brasil já está perdendo a esperança de readquirir a sua potência orgânica. Mas ele não desanimou e procurou um médico alemão que lhe deu umas gotas de marcos. Sua esperança se renovou: vou estabelecer-me e entrar numa competição. Mas as suas esperanças foram se derrapando quando aconselharam a procurar um médico russo. Ele não aceitou, ficando com receio de tomar o remédio rublo que é, porém, semelhante a uma atadura que lhe tolhe todos os movimentos. Preferiu, então, continuar fraco a ser predominado e os seus compatriotas não poderem brincar nem os três dias dedicados ao Rei Momo. Mas o Brasil já está pensando em fazer um transplante: retirar o coração militar e colocar um coração civil”.

Fonte:
professor Teotônio Marques Filho in Vestibular 2001, UFM, Estudo das Obras, Gráfica e Editora O LUTADOR, Belo Horizonte.

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