sábado, 12 de setembro de 2009

José Carlos Brandão (Parada em Ventania)

Aqui venta sempre desse jeito, sim senhor. Acho que é por isso que chamaram aqui de Ventania. Em Dois Córregos também venta muito. Foi a minha irmã, a Cida, que me contou. Não, eu não conheço lá. O senhor não está vendo as minhas pernas? Eu não conheço lugar nenhum, eu só conheço aqui. A Cida é quem me conta as coisas. Ela diz que Dois Córregos não é muito grande, mas que é muito maior do que aqui. E deve ser bem maior mesmo, pelas coisas que ela conta que tem lá. É, sim senhor, eu só conheço as coisas de ouvir contar. Ah, também já vis as figuras de umas revistas que a Cida emprestou uma vez.

O senhor está cansado de esperar? Sente um pouco, fique à vontade. Logo passa um trem. Eu não sei se esse pára aqui, tem algum que pára. Mas o senhor viu o horário na estação, não é? Aqui a gente tem todo o tempo do mundo, não é preciso pressa. Pode olhar as coisas, não se acanhe. Tem sempre muita coisa para se ver. Eu não tenho muleta, não senhor. A Cida vem na hora do almoço, depois da escola, não sei a hora certa. Ela faz a comida, faz o meu prato, depois leva para o meu pai e a minha mãe lá na roça. Depois ela fica ajudando lá até de noite.

Mas o senhor parece que está impaciente. A gente precisa não se aborrecer com as coisas. Eu gosto muito de conversar. Se eu não estou chateando o senhor, eu continuo. É a Cida quem conversa comigo, quando ela está em casa e tem tempo e paciência. O meu pai às vezes tem tempo, mas não tem paciência nunca. Ele só fala "essa desgraça, essa desgraça", e olha minhas pernas moles, e bebe pinga. A minha mãe só fica chorando. Mas a Cida não, ela dorme na mesma cama que eu e fica ouvido enquanto eu falo tudo que eu penso. Eu durmo um pouco de dia e não tenho sono logo de noite e então eu falo, eu falo muito e ela me escuta. Às vezes parece que ela está dormindo, mas ela fala que está prestando atenção. O senhor também parece que sabe prestar um pouco de atenção.

Eu aprendi muito bem como prestar atenção. É assim que eu passo o dia. Mas eu presto atenção só no que me interessa. É esse o segredo. O senhor fica olhando esse relógio bonito toda hora. O senhor não viu aquele sabiá-poca ali no mamoeiro, não é? Olhe como ele faz com a cabeça, como ele ergue o pescoço e gira para um lado e para o outro. Olhe como ele fareja o ar, como ele vigia tudo.

O senhor fica olhando feito bobo as minhas pernas. Eu já aprendi a viver com elas. Eu não sei o que deu em mim, não. Foi uma doença que ninguém sabe o que é. Um dia elas começaram a bambear, logo ficaram assim molengatas até hoje. Eu até já pensei em me matar. Não era melhor acabar com a vida do que só dar trabalho, não prestar para nada? Foi o que eu falei para o meu pai. Ele ficou louco da vida, disse que ninguém pode mudar as coisas.

Ainda lembro daquela hora. A minha mãe olhou para mim e começou a chorar. Então eu ri para ela, eu queria mostrar que tudo estava bem, afinal eu até estava rindo. Mas ela chorou mais ainda.

Foi naquele dia que o padre veio aqui em casa e começou a rezar e a falar que era a vontade de Deus. Foi então que meu pai explodiu. Ele disse que só a vida tem remédio para a vida. Mandou o padre embora e pegou o garrafão de pinga. Eu admiro muito o meu pai, ele gosta muito de mim.

E é assim que é a minha vida. Eu não sou muito triste, não. Só de vez em quando. A gente se acostuma com as coisas. Eu comecei a gostar de ficar aqui parado na porta de casa. Eu tenho muito tempo. Fico ruminando as coisas, imaginando. Gostando de imaginar coisas boas. E também eu tenho tanta coisa para olhar. Aqui nunca acontece nada, mas eu fico olhando o mato e cada vez gosto mais das coisas que eu estou vendo.

Tem gente que acha que eu fiquei meio bobo, mas eu não me importo. Acho até bom assim ninguém fica com dó de mim.

O senhor não está com dó de mim, não é? O senhor parece que já se cansou de me ouvir, não é. Desculpe não ter nada para lhe oferecer. Tem água no pote, se o senhor está com sede. Se o senhor gosta de pinga, também tem, está atrás da porta. Tinha um pedaço de bolo, a Cida levou na escola. Ela nunca leva lanche, hoje ela levou. É até ruim, é capaz dos outros ficarem com lombriga.

O senhor já vai? Daqui a pouco tem um trem, sim senhor, mas eu não sei se esse pára aqui. Também pode ser de carga. Um tempo eu prestava atenção nos trens. Eu conhecia todos, só de ouvir. Eu só queria pegar um e ir para bem longe, numa cidade grande, bobagem minha.

Mas o senhor já vai mesmo? Não quer ficar mais um pouco? Eu estava gostando de falar com o senhor. Prefere esperar o trem na estação? O senhor não disse nada. Bom. Se quer ir, o senhor que sabe. Então até logo, senhor.
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Sobre o autor:
José Carlos Mendes Brandão publicou quatro livros de poesia: O Emparedado (1975); Exílio (1983), Prêmio José Ermírio de Moraes, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro do ano; Presença da Morte (1983), Prêmio “V Bienal Nestlé de Literatura Brasileira”; e Poemas de Amor (1999). Recebeu ainda o Prêmio Nacional de Literatura “Cidade de Belo Horizonte” (2000), por um romance inédito.
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Fontes:
http://www.gargantadaserpente.com/coral/contos/jc_ventania.shtml5/9/2009
http://poesiacronica.blogspot.com/
Imagem = http://www.geocities.com/Athens/Sparta/8579/trem42.jpg

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