segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Carlos Motta (O Homem Insignificante)



1
Não era baixo nem alto. Nem gordo nem magro. Não ganhava bem nem mal.
Classe média, sustentava a família – mulher e filho - morando num apartamento de dois quartos, 55 metros quadrados, num bairro da periferia, comprado com a ajuda do sogro e do dinheiro do FGTS.

Almoçava fora de casa, ia ao trabalho no Palio 99 que levava uma vez por ano ao mecânico - de confiança – perto da padaria. Voltava só depois das 8 horas da noite. Comia alguma coisa que a mulher tinha feito no almoço, via o Jornal Nacional, lia a Folha, que comprava religiosamente na banca perto do emprego. Dormia um sono agitado, tinha a pressão alta, mas não consultava nenhum médico. Preferia o remédio que o farmacêutico lhe vendia, com a garantia de que era um lançamento, tiro e queda e tal. Consultava a bula e fingia sacar tudo aquilo que as letrinhas prometiam e advertiam.

2
O dia em que voltou para casa com o coração disparado, quase na boca, a adrenalina solta no corpo cansado, começou com nuvens e terminou com chuva.

E foi a chuva a responsável por tudo.

Se o asfalto da rua do posto de gasolina onde, por R$ 60 mensais guardava seu Palio, estivesse seco,
talvez,
muito provavelmente,
com certeza absoluta,
aquele Gol verde tivesse parado apenas poucos metros depois de ter as rodas travadas pela ação instintiva do seu motorista que meteu o pé no freio quando o moleque largou a mão gorducha da mãe e correu desembestado sabe-se-lá-para-que-direção apenas que era para onde não deveria ir ou seja: o meio da rua com o asfalto molhado e escorregadio.

A buzina estridente fez com que virasse a cabeça para a esquerda e fosse atingido de frente por pingos d’água agressivos e gelados. Aí, nesse instante, seu olhar se congelou numa cena de cinema, uma tragédia descolorida pelo anoitecer precoce devido às nuvens opressivas daquele dia úmido.

pensou

não pensou

e se atirou com toda a força que pôde ao encontro daquela figurinha de vermelho e verde e tão viva que se movia como um personagem desarticulado de desenho animado.

3
Ao tocar a campainha do apartamento no sexto andar não esperava que sua mulher fosse se atirar em seus braços e dizer eu te amo como nos filmes.

Nem que seu filho viesse lhe contar que era o melhor aluno da escola que custava mais que o salário mínimo por mês e não tolerava mensalidades atrasadas.

Nada disso.

Sabia que naquela noite o sofá desbotado,
as cadeiras meio bambas,
a parede de cor indefinida,
os talheres gastos,
o prato lascado,
a comida insossa,
as notícias velhas da televisão e do jornal
e até mesmo o beijo mecânico de sua mulher murcha
e sem graça e a indiferença ingênua de seu filho
raquítico e pálido
teriam um gosto único e especial.

Porque naquela noite ele não era o homem insignificante que acostumara toda a sua vida a ser.

Fonte:
MOTTA, Carlos. O riso frouxo do homem insignificante: 50 historietas tragicômicas. E-book, 2009.

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