Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela – seu olho mágico para a vida.
Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, espremido entre prédios altos e algumas árvores insistentes. No fundo, gostaria de morar frente ao mar e ser acordada pela brisa fresca, com cheiro de peixe vivo. Mas já era conformada com a fumaça, os barulhos urbanos e os pássaros da resistência.
Deu sua espiada matinal até onde seu campo de visão permitia. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de combustível no carro (sim, morava em frente a um posto de gasolina e suas histórias). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do frentista ao percebê-la em trajes de dormir.
Era um dia cinzento e frio. Notou faces carrancudas, castigadas pela vida. Um homem sem grandes expectativas busca consolo nos copos de botequim, antes de ser subjugado pela obediência às normas. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. A menina de uniforme, abraçando a mochila, como que a esconder os jovens seios teimosos a romper-lhe a blusa fina. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma segunda-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada da sirene da garagem. O carro branco não saía da toca. As janelas do apartamento estavam estranhamente fechadas. Estava frio, era fato, porém ele não parecia ser do tipo que fecha janelas por queda de temperatura. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
A buzina estridente dos carros, no sinal de trânsito, a desviaram por segundos – ambulância pedindo passagem. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, encosta o mais que pode na esquadria, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta à janela algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em perguntar ao porteiro. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Há quanto tempo nem recebia lista telefônica... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a sua janela. Silêncio.
Trabalha o tempo inteiro distraída, aquilo em sua mente. Não se recorda do trajeto de casa ao Centro, nem de ter cumprimentado os colegas. Conversa com as pessoas apenas com uma parte do cérebro. A outra está lá. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a velocidade dos ansiosos. Liga a televisão, mas não consegue acompanhar a taxa do dólar e nem as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, no quarto andar. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar, aguardando a porta da garagem abrir-se ao primeiro que chegasse ou saísse do prédio. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela – seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, espraiado no horizonte, no encontro entre céu e mar. A brisa marinha a embaraçar-lhe os cabelos. No fundo, o cheiro de peixe a deixava enjoada. Gostaria de morar longe do mar e ser acordada pelo canto suave de pássaros no campo, com cheiro de café e pão de queijo. Mas já era conformada com a corrosão do sal, o condomínio de emergentes e os engarrafamentos do bairro mais caro da cidade.
Deu sua espiada matinal até onde sua varanda alcançava. Do décimo quinto andar podia ver até o umbigo de Deus. Ventava muito. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de margarina com zero por cento de gordura no desjejum (sim, morava em frente a um casal de meia idade e com meia-vida). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do rapaz do apartamento em diagonal ao seu, quando a viu em trajes de dormir.
Era um dia claro e ensolarado. Notou as pessoas miúdas, feito formigas atarefadas, com prováveis níveis de glicose acima do recomendável. Gravatas, "notebooks", celulares, malhas colantes em corpos excessivos, crianças esquisitas, domésticas indomesticáveis. Um homem sem grandes expectativas busca consolo no rebolado da babá mulata com a criança. Lança-lhe alguns impropérios e reúne forças de macho para mais um dia carregando pedras. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. A menina de uniforme, com a mochila nas costas, exibindo os jovens seios adestrados a romper-lhe a blusa fina. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma terça-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada das cortinas abrirem-se no apartamento em frente. O carro branco não saía da toca. As janelas do apartamento estavam estranhamente fechadas. Estava calor, era fato, e ele não parecia ser do tipo que fecha janelas para não entrar poeira. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
Os gritos da criança esquizofrênica do vizinho de porta, em novo surto, a desviaram por segundos. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, encosta o mais que pode na quina da varanda, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em perguntar ao porteiro. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Mas nem sabia o nome do sujeito... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a sua janela. Silêncio.
Trabalha o tempo inteiro agoniada. Não se recorda do trajeto de casa ao Centro, nem de ter cumprimentado os colegas. Não conversa com ninguém. Seu cérebro está em regime de emergência. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a pasmaceira dos deprimidos. Liga o "home theater", mas não consegue acompanhar a queda da bolsa e nem as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, do outro lado. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela – seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, encoberto pela neblina entre as montanhas. O vento cortante a eriçar-lhe os pêlos. No fundo, o cheiro de pão de queijo a engordava. Gostaria de morar na cidade, no burburinho, onde as coisas acontecem. Ser acordada por buzinas e sirenes. Ver gente e seus problemas, de casa para a lida. Mas já era conformada com a vidinha pacata e preguiçosa, com as casas parecidas na rua privativa de moradores.
Deu sua espiada matinal até onde sua janela alcançava e seu jardim permitia. A neblina já estava se desfazendo e o orvalho havia deixado seus rastros úmidos nos banquinhos de jardim, nas pétalas e em algumas faces. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de camisa limpa e passada (sim, morava em frente a um casal evangélico, que pregava a vinda do Messias, que só chegava bem mais tarde, quando o marido já havia ido para a igreja). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do rapaz que entregava o pão e leite na porta, ao arrancar-lhe, com a imaginação adolescente, os trajes de dormir.
Era um dia claro, embora sem sol. Notou as pessoas fechadas em seus casacos e seus mundinhos, feito ostras friorentas. Sobretudos, sobre nada. Senhores e senhoras varrendo quintais e suas próprias folhas de outono. Esposas lânguidas e gordas. Crianças rosadas, livres e mal educadas. Domésticas domesticadas. Mocinhas em bandos, com seus seios jovens e pontudos, disputando os galanteios grosseiros dos rapazes. Casacos, jaquetas, suéteres. Um homem sem grandes expectativas busca consolo no rebolado da babá mulata, que passa com a criança, e na branquinha em sua terceira dose, para suportar a dose que é seu trabalho de recolher os lixos. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma quarta-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada das cortinas abrirem-se na casa do outro lado da rua. O carro branco não saía da toca. As janelas estavam estranhamente fechadas. Estava frio, era fato, mas ele não parecia ser do tipo que fecha janelas. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
O mugido da vaca que passava solene pela rua, a desviou por segundos. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, debruça o mais que pode no parapeito da janela, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em fazer ruídos no portão. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Mas nem sabia o nome do sujeito... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a casa. Silêncio.
Trabalha o tempo todo desesperada. Não se recorda do trajeto e nem dos colegas. Não conversa. Não parece ter cérebro. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a solidão dos homens. Liga o rádio, mas não consegue lembrar a letra daquela música sertaneja, nem acompanhar as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, do outro lado. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/
Imagem = Montagem sobre pintura de Salvador Dali
Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, espremido entre prédios altos e algumas árvores insistentes. No fundo, gostaria de morar frente ao mar e ser acordada pela brisa fresca, com cheiro de peixe vivo. Mas já era conformada com a fumaça, os barulhos urbanos e os pássaros da resistência.
Deu sua espiada matinal até onde seu campo de visão permitia. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de combustível no carro (sim, morava em frente a um posto de gasolina e suas histórias). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do frentista ao percebê-la em trajes de dormir.
Era um dia cinzento e frio. Notou faces carrancudas, castigadas pela vida. Um homem sem grandes expectativas busca consolo nos copos de botequim, antes de ser subjugado pela obediência às normas. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. A menina de uniforme, abraçando a mochila, como que a esconder os jovens seios teimosos a romper-lhe a blusa fina. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma segunda-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada da sirene da garagem. O carro branco não saía da toca. As janelas do apartamento estavam estranhamente fechadas. Estava frio, era fato, porém ele não parecia ser do tipo que fecha janelas por queda de temperatura. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
A buzina estridente dos carros, no sinal de trânsito, a desviaram por segundos – ambulância pedindo passagem. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, encosta o mais que pode na esquadria, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta à janela algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em perguntar ao porteiro. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Há quanto tempo nem recebia lista telefônica... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a sua janela. Silêncio.
Trabalha o tempo inteiro distraída, aquilo em sua mente. Não se recorda do trajeto de casa ao Centro, nem de ter cumprimentado os colegas. Conversa com as pessoas apenas com uma parte do cérebro. A outra está lá. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a velocidade dos ansiosos. Liga a televisão, mas não consegue acompanhar a taxa do dólar e nem as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, no quarto andar. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar, aguardando a porta da garagem abrir-se ao primeiro que chegasse ou saísse do prédio. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela – seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, espraiado no horizonte, no encontro entre céu e mar. A brisa marinha a embaraçar-lhe os cabelos. No fundo, o cheiro de peixe a deixava enjoada. Gostaria de morar longe do mar e ser acordada pelo canto suave de pássaros no campo, com cheiro de café e pão de queijo. Mas já era conformada com a corrosão do sal, o condomínio de emergentes e os engarrafamentos do bairro mais caro da cidade.
Deu sua espiada matinal até onde sua varanda alcançava. Do décimo quinto andar podia ver até o umbigo de Deus. Ventava muito. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de margarina com zero por cento de gordura no desjejum (sim, morava em frente a um casal de meia idade e com meia-vida). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do rapaz do apartamento em diagonal ao seu, quando a viu em trajes de dormir.
Era um dia claro e ensolarado. Notou as pessoas miúdas, feito formigas atarefadas, com prováveis níveis de glicose acima do recomendável. Gravatas, "notebooks", celulares, malhas colantes em corpos excessivos, crianças esquisitas, domésticas indomesticáveis. Um homem sem grandes expectativas busca consolo no rebolado da babá mulata com a criança. Lança-lhe alguns impropérios e reúne forças de macho para mais um dia carregando pedras. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. A menina de uniforme, com a mochila nas costas, exibindo os jovens seios adestrados a romper-lhe a blusa fina. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma terça-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada das cortinas abrirem-se no apartamento em frente. O carro branco não saía da toca. As janelas do apartamento estavam estranhamente fechadas. Estava calor, era fato, e ele não parecia ser do tipo que fecha janelas para não entrar poeira. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
Os gritos da criança esquizofrênica do vizinho de porta, em novo surto, a desviaram por segundos. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, encosta o mais que pode na quina da varanda, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em perguntar ao porteiro. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Mas nem sabia o nome do sujeito... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a sua janela. Silêncio.
Trabalha o tempo inteiro agoniada. Não se recorda do trajeto de casa ao Centro, nem de ter cumprimentado os colegas. Não conversa com ninguém. Seu cérebro está em regime de emergência. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a pasmaceira dos deprimidos. Liga o "home theater", mas não consegue acompanhar a queda da bolsa e nem as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, do outro lado. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Naquela, como em todas as manhãs, mal acordou, foi para a janela – seu olho mágico para a vida. Sentiu prazer em reparar no amanhecer ao longe, encoberto pela neblina entre as montanhas. O vento cortante a eriçar-lhe os pêlos. No fundo, o cheiro de pão de queijo a engordava. Gostaria de morar na cidade, no burburinho, onde as coisas acontecem. Ser acordada por buzinas e sirenes. Ver gente e seus problemas, de casa para a lida. Mas já era conformada com a vidinha pacata e preguiçosa, com as casas parecidas na rua privativa de moradores.
Deu sua espiada matinal até onde sua janela alcançava e seu jardim permitia. A neblina já estava se desfazendo e o orvalho havia deixado seus rastros úmidos nos banquinhos de jardim, nas pétalas e em algumas faces. Não pôde se furtar de participar (passivamente) da discussão entre o casal, logo cedo, por falta de camisa limpa e passada (sim, morava em frente a um casal evangélico, que pregava a vinda do Messias, que só chegava bem mais tarde, quando o marido já havia ido para a igreja). Também não abriu mão do olhar de raio ávido do rapaz que entregava o pão e leite na porta, ao arrancar-lhe, com a imaginação adolescente, os trajes de dormir.
Era um dia claro, embora sem sol. Notou as pessoas fechadas em seus casacos e seus mundinhos, feito ostras friorentas. Sobretudos, sobre nada. Senhores e senhoras varrendo quintais e suas próprias folhas de outono. Esposas lânguidas e gordas. Crianças rosadas, livres e mal educadas. Domésticas domesticadas. Mocinhas em bandos, com seus seios jovens e pontudos, disputando os galanteios grosseiros dos rapazes. Casacos, jaquetas, suéteres. Um homem sem grandes expectativas busca consolo no rebolado da babá mulata, que passa com a criança, e na branquinha em sua terceira dose, para suportar a dose que é seu trabalho de recolher os lixos. A mulher bem vestida, exibindo olhos aflitos por atenção, cujo coração doía mais que o calo no calcanhar. O velho doente, curvado sobre os anos, a catar papéis no chão. A senhora infrutífera, que certamente deixaria seus bens ao cachorrinho agasalhado, conduzido com orgulho.
Tudo normal para uma quarta-feira, não fora o atraso do vizinho. Os minutos se passavam, e nada das cortinas abrirem-se na casa do outro lado da rua. O carro branco não saía da toca. As janelas estavam estranhamente fechadas. Estava frio, era fato, mas ele não parecia ser do tipo que fecha janelas. Aparecia sempre sem camisa, e foi esse o motivo de ter-lhe chamado a atenção. O que teria acontecido? Ontem ainda o vira de relance, televisão ligada, mulher passando para lá e para cá, luz do quarto dos filhos apagada. Foi vencida pelo sono, não chegou a vê-lo desligar tudo para recolher-se.
O mugido da vaca que passava solene pela rua, a desviou por segundos. De volta aos devaneios, onde estaria o cara? Aperta os olhos, debruça o mais que pode no parapeito da janela, mas não obtém respostas. Olha o relógio, está atrasada. Decide esperar um pouco. Melhor, enquanto se arruma, vai e volta algumas vezes. E nada. Aflita, pensa em fazer ruídos no portão. Não, seria dar muita bandeira. Talvez buscar o telefone na lista. Mas nem sabia o nome do sujeito... Por um instante pensou ter visto a cortina mexer. Sim, com certeza mexeu. Mas quem? Não tinha mais tempo, saiu para o trabalho. Na rua, a sensação de estar sendo observada. Lança um último olhar para a casa. Silêncio.
Trabalha o tempo todo desesperada. Não se recorda do trajeto e nem dos colegas. Não conversa. Não parece ter cérebro. Algo em seu íntimo dizia que as coisas não iam bem.
Volta para casa, esperando ver a vidraça escancarada. Nada. O mesmo lacre.
Toma seu banho e janta com a solidão dos homens. Liga o rádio, mas não consegue lembrar a letra daquela música sertaneja, nem acompanhar as notícias mais sangrentas. Seu pensamento está lá, do outro lado. Teria saído de madrugada? O carro estava lá, ela havia se certificado ao chegar. Novamente cansada, deixou-se adormecer sem certezas.
Fontes:
http://recantodasletras.uol.com.br/
Imagem = Montagem sobre pintura de Salvador Dali
Um comentário:
O conto de Lilian Maial, como tudo o que ela escreve é muito bom mesmo. Achei excelente o carrossel de dias iguais que ela soube tão bem descrever.
Um grande abraço de parabéns e obrigada, José Feldman
Maria Lindgren
m-lindgren@uol.com.br
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