sábado, 26 de setembro de 2009

Euclides da Cunha (Ondas)



No túmulo de um inglês

És bem feliz,mylord!... na tua tumba fria
Um sono gozas, bom — no seio da soedade
Feliz!... não tens o Sol de tu'Albion sombria
Mas tens o olhar de Deus — O Sol da eternidade!...

És bem feliz mylord a triste ventania
Soluça nos ciprestes os cantos da saudade...
Quem sabe se te traz — em vozes de agonia—
Os risos e as canções de tua mocidade!...

Estás livre do splen... invejo-te deveras...
Do túmulo a sombra espanca as pálidas quimeras.
— Em teu berço de pedra embala-te a soidão...

És bem feliz mylord — assim antes eu fora!...
Tu tens a calma eterna, a solidão sonora
E tu não tens — feliz — não tens — teu coração...
Rio — 2 de Novembro 1883.
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Este túmulo está no cemitério de Catumbi — tornou-se-me saliente saliente pela isolação em [que] se acha — quase em pleno mato — completamente separado dos outros. Antes de ler a inscrição na lousa — onde este soneto fiz — adivinhei ser de um inglês...

Poema inédito e manuscrito do caderno de adolescência Ondas, escrito aos 17 anos. Euclides acrescentou-lhe a uma nota explicativa no final da página. Mantida ortografia original.
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Página vazia

Quem volta da região assustadora
De onde eu venho, revendo inda na mente
Muitas cenas do drama comovente
Da Guerra despiedada e aterradora,

Certo não pode ter uma sonora
Estrofe, ou canto ou ditirambo ardente,
Que possa figurar dignamente
Em vosso Álbum gentil, minha Senhora.

E quando, com fidalga gentileza,
Cedestes-me esta página, a nobreza
Da vossa alma iludiu-vos, não previstes

Que quem mais tarde nesta folha lesse
Perguntaria: "Que autor é esse
De uns versos tão mal feitos e tão tristes"?!!

Obs.: Esses versos faziam parte de um álbum da jovem Francisca Praguer Fróes, que ganhou o poema do então engenheiro e jornalista — de volta da "região assustadora" (leia-se Canudos) de onde vinha, "revendo inda na mente/ Muitas cenas do drama comovente/ Da Guerra desapiedada e aterradora" — no dia seguinte de seu retorno à capital baiana, conforme ele datou abaixo da assinatura: 14 de outubro de 1897.
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ESTRELAS

São tão remotas as estrelas, que
apesar da vertiginosa velocidade da luz, elas se
apagam e continuam a brilhar durante séculos.
Morrem os mundos...Silenciosa e escura,
Eterna noite cinge-os. Mudas, frias,
Nas luminosas solidões da cultura
Erguem-se, assim, necrópoles sombrias...
Mas, pra nós, di-lo a ciência, além perdura
A vida, e expande as rútilas magias..
Pelos séc'los emfora a luz fulgura
Traçando-lhes as órbitas vazias.
Meus ideais! extinta claridade -
Mortos, rompeis, fantásticos e insanos,
Da minh'alma e revolta imensidade...

E sois ainda todos os enganos
E toda a luz e toda mocidade
Desta velhice trágica aos vinte anos..
Se acaso uma alma se fotografasse
De sorte que, nos mesmos negativos,
A mesma luz pusesse em traços vivos
O nosso coração e a nossa face
E os nossos ideais, e os mais cativos
De nossos sonhos...Se a emoção que nasce
Em nós, também nas chapas se gravasse,
Mesmo em ligeiros traços fugitivos:
Amigo, tu terias com certeza
A mais completa e insólita surpresa
Notando - deste grupo bem no meio -
Que o mais belo, o mais forte, o mais ardente
Destes sujeitos é precisamente
o mais triste, o mais pálido, o mais feio.
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EU QUERO

Eu quero à doce luz dos vespertinos pálidos
Lançar-me, apaixonado, entre as sombras das matas
_ Berços feitos de flor e de carvalhos cálidos
Onde a Poesia dorme, aos cantos das cascatas...

Eu quero aí viver _ o meu viver funéreo,
Eu quero aí chorar _ os tristes prantos meus...
E envolto o coração nas sombras do mistério,
Sentir minh'alma erguer-se entre a floresta de Deus!

Eu quero, da ingazeira erguida aos galhos úmidos,
Ouvir os cantos virgens da agreste patativa...
Da natureza eu quero, nos grandes seios túmidos,
Beber a Calma, o Bem, a Crença _ ardente a altiva.

Eu quero, eu quero ouvir o esbravejar das águas
Das ásperas cachoeiras que irrompem do sertão...
E a minh'alma, cansada ao peso atroz das mágoas,
Silente adormecer no colo da solidão...
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ONDAS

Correi, rolai, correi _ ondas sonoras
Que à luz primeira, dum futuro incerto,
Erguestes-vos assim _ trêmulas, canoras,
Sobre o meu peito, um pélago deserto!

Correi... rolai _ que, audaz, por entre a treva
Do desânimo atroz _ enorme e densa _
Minh'alma um raio arroja e altiva eleva
Uma senda de luz que diz-se _ Crença!

Ide pois _ não importa que ilusória
Seja a esp'rança que em vós vejo fulgir...
_ Escalai o penhasco ásp'ro da Glória...
Rolai, rolai _ às plagas do Porvir!
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DANTÃO

Parece-me que o vejo iluminado.
Erguendo delirante a grande fronte
_ De um povo inteiro o fúlgido horizonte
Cheio de luz, de idéias constelado!

De seu crânio vulcão _ a rubra lava
Foi que gerou essa sublime aurora
_ Noventa e três _ e a levantou sonora
Na fronte audaz da populaça brava!

Olhando para a história _ um século e a lente
Que mostra-me o seu crânio resplandente
Do passado através o véu profundo...

Há muito que tombou, mas inquebrável
De sua voz o eco formidável
Estruge ainda na razão do mundo!
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MARAT

Foi a alma cruel das barricadas!
Misto e luz e lama!... se ele ria,
As púrpuras gelavam-se e rangia
Mais de um trono, se dava gargalhadas!...

Fanático da luz... porém seguia
Do crime as torvas, lívidas pisadas.
Armava, à noite, aos corações ciladas,
Batia o despotismo à luz do dia.

No seu cérebro tremente negrejavam
Os planos mais cruéis e cintilavam
As idéias mais bravas e brilhantes.

Há muito que um punhal gelou-lhe o seio...
Passou... deixou na história um rastro cheio
De lágrimas e luzes ofuscantes.
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VERSO E REVERSO

Bem como o lótus que abre o seio perfumado
Ao doce olhar da estrela esquiva da amplidão
Assim também, um dia, a um doce olhar, domado,
Abri meu coração.

Ah! foi um astro puro e vívido, e fulgente,
Que à noite de minh'alma em luz veio romper
Aquele olhar divino, aquele olhar ardente
De uns olhos de mulher...

Escopro divinal _ tecido por auroras _
Bem dentro do meu peito, esplêndido, tombou,
E nele, altas canções e inspirações ardentes
Sublime burilou!

Foi ele que a minh'alma em noite atroz, cingida,
Ergueu do ideal, um dia, ao rútilo clarão.
Foi ele _ aquele olhar que à lágrima dorida
Deu-me um berço _ a Canção!

Foi ele que ensinou-me as minhas dores frias
Em estrofes ardentes, altivo, transformar!
Foi ele que ensinou-me a ouvir as melodias
Que brilham num olhar...

E são seus puros raios, seus raios róseos, santos
Envoltos sempre e sempre em tão divina cor,
As cordas divinais da lira de meus prantos,
D'harpa da minha dor!

Sim _ ele é quem me dá o desespero e a calma,
O ceticismo e a crença, a raiva, o mal e o bem,
Lançou-me muita luz no coração e na alma,
Mas lágrimas também!

É ele que, febril, a espadanar fulgores,
Negreja na minh'alma, imenso, vil, fatal!
É quem me sangra o peito _ e me mitiga as dores.
É bálsamo e é punhal.
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Fonte:
CUNHA, Euclides da. Ondas. São Paulo: Martin Claret, 2005.

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