quarta-feira, 2 de setembro de 2009

Age de Carvalho (Caldeirão Literário do Pará)



Aqui, em meu país
irremediavelmente nordestino e miserável,
à luz elétrica de meu século,
sob todos os alfabetos do medo e da fome;

aqui,
entre o homem e o homem
(como dois sistemas totais
num universo de águas inacabado),
aqui vivo.

De Arquitetura dos ossos (1980)

BOCA

a minha e a tua:
o ímã das línguas lança promessas,
letra-sobre-letra

À vera,
a tempestuosa mão da rasura
subjaz
negra no plural dos pêlos
à procura do selo mais profundo,

funda.

De Arena, areia (1986)


FAZER COM, FAZER DE

Estar, entre
estrelas e pedras,
interrompido

Resto de
ervas, tempo, entre dentes
detém-se
a palavra-refém,

réstia.
De Pedra-Um (1989)


SANGUE-SHOW

Esse o tempo—
em-sempre da serpente,
seu recobrado sentido
circular nas glebas
do sangue.

Chão,
subcutáneo, chão—
aqui se apaga
a veia vida/obra,
aqui a cobra
(intra-
vírgula
venenosa) insinua
entre ramas brilhantes
seu eterno s:

aqui, é-se.

Revista Inimigo Rumor, 7 (1999)

CORCOVADO

à Nelci Frangipani

Uma última vez
antes de subirmos,
braços abertos sobre
a flora brava, aqui
em baixo, onde colho
a despedida –

o tempo
só de abraçar
o abricó-da-praia,
meu amigo,
enquanto tu, trezentas
e terrena, davas
comida aos gatos.

POEMA COMPLEMENTAR SOBRE O RIO
A José Maria de Vilar Ferreira

O rio consagrado: a vazante
lembrança que escoa em maré
baixa e retorna — água escura
— na preamar

O rio sagrado: invólucro do céu
e margem, e duas margens
dos caboclos amantes. O rio

passado: cismando na crisma, paresque
dumas lembranças que trabalham a solidão:
o paralelo das margens, uma igara partida,
as águas sujas que sempre voltam.

A CADELA

Caminhava grave pela casa
a cadela.
A cabeça quieta era sua altivez
quadrúpede no centro da cozinha.
Caminhava. Os olhos, costelas,
o mar de ossos, o coração
pardo e lento – caminhava.
A manhã debruçava-se pela janela: cristais no pó,
o púcaro da china, horas de louça
batendo nas palavras na sala da casa.
A cadela caminhava, dura,
secular.
(Domingo dormia
prolongado como um funcionário feriado).
Vivera demais. Descansava à sombra,
perto do quarador.
Sonhava farta, invisível,
a cadela azul,
nua
(o sexo velho e molhado,
um caranguejo arcaico sob o rabo).
Dormia, vazia.
Outubro doía longe, na Ásia,
quando a Fuluca anunciou: "A Catucha morreu".

De ROR (1980-1990)
São Paulo: Claro Enigma, 1990

IN ABSENTIA

E: ainda uma chance —
uma pedra se refolha
para o repouso,
o instante é
sempre presença

Ror de erros,
recolho repetidos
o que ainda me pertence

NISSO

que ascendeu
se revelou
e esqueceu

ponhamos uma pedra

SUMA

Quantas vezes
ainda por repetir?

Estão comigo, todas
de segunda mão,
não classificadas

ó anel
círculo mancha ervas
sombra relva irmã
estrela erro tumba
por companhia

pedra pedra pedra

A JOÃO CABRAL DE MELO NETO

só dizer
o que sei
e duvido saber, o sal
pela mão
do rio-sem
resposta —
um luxuoso dizer, de vagar sem onda
e vaga, fluvial, não aliterado;

um dizer repetido na diferença,
barrento, semi-dito, em Não fechado;

ou o não-dito, rios sem discurso,
nome por dizer ou dizer empedrado;

dizer sim o raro e claro do poema,
dizer difícil e atravessado, com margem
de erro.
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Fonte:
Antonio Miranda. www.antoniomiranda.com.br

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